terça-feira, 28 de outubro de 2014

MAIS ALGUMAS RECORDAÇÕES DO VELHO BIBLIOTECÁRIO

Edson Negromonte

Durante a convivência com Sven, ambos descobriram a poesia, o adolescente e o velho, embora este não perpetrasse versos, somente os lia, com uma entonação peculiar em determinadas palavras, às vezes em certas frases, inteiras, com a voz pastosa, sempre, como se estivesse cansado, num cantochão algo teatral, como se remoesse pequenas, pequeninas pedras entre os dentes amarelados pelo tabaco. Sua melhor interpretação acontecia em algumas passagens de “A Canção do Velho Marinheiro”, de Coleridge. Ao final, o jovem sempre o aplaudia. calorosamente; a brincadeira fazia parte de um acordo tácito. Apesar das orientações, os primeiros versos do velho bibliotecário ocorreram sob a influência da música popular, dos Beatles, de Dorival Caymmi, coisas como “The Fool on the Hill”, “The Long and Winding Road”, “O Mar”, “O Vento”, “Suíte dos Pescadores”, sem saber que assim estava se afiliando irresponsavelmente à tradição dos antigos trovadores provençais. Veio a descobrir isso somente muitos anos mais tarde, ao tomar contato com a poesia concreta, com as traduções de Arnaut Daniel e Rimbaut d’Aurenga.

Durante o tempo em que conviveu com o velho Sven, a sua paixão contagiou o adolescente (um vírus que não mais o abandonaria: a paixão pelo mar, fosse verde, azul, vermelho ou negro, lodacento ou de águas cristalinas), levando-o a ler obras clássicas na íntegra, dos grandes navegadores, as edições completas, não as recontadas, adaptadas, fáceis de encontrar. Saiu, então, à caça de “Vida e Aventuras de Robinson Crusoé”, em dois volumes, incluindo a breve passagem, como fazendeiro, por terras brasileiras, e “Viagens de Gulliver”, com a quase sempre extirpada passagem pelo país dos houyhnhnms. Viajou a bordo de “Marujos Intrépidos - Uma História dos Grandes Recifes”, lado a lado com Kipling. Deve-se acrescentar também que “Dois Anos de Férias”, de Júlio Verne, levou-o a devanear sobre as possibilidades de se refugiar numa ilha próxima, a do Cardoso, da Cotinga, dos Valadares... Pensando melhor, a ilha das Cobras seria ideal. Podia muito bem morar no farol e escrever, à imitação de Alphonse Daudet, “Poemas do Meu Farol”. Em meio a tais lembranças, veio-lhe, sabe-se lá de que meandros da memória, (ah, como essa fêmea, a memória, prega-nos peças), a palavra “faroleiro”, associada à figura do coelho Pernalonga, encostado num poste, de perna cruzada, roendo uma cenoura. Associou-a imediatamente com uma cena de “Aconteceu Naquela Noite”, com Claudette Colbert e Clark Gable, de orelhas enormes, camiseta e chapéu, também roendo uma cenoura, à imitação do coelho sacana. Assustou-se com a velocidade das imagens, achando que a sua propalada capacidade de fazer pontes entre informações colhidas a esmo, aqui e ali, lá e acolá, não estava assim tão danificada como pensara. Voltou, propositadamente, ao velho Sven, o qual não era tão velho assim quando o conheceu; talvez tivesse por volta de quarenta anos, um pouco mais, um pouco menos. Deu, então, com os olhos na estreita lombada de um livro, sabia que era dele, não conseguia lê-la, então puxou o cordame da memória. O título? Sabia-o perfeitamente, embora não pudesse lê-lo, a vista cansada, mas tinha certeza, “O Menino e o Mar”, sim, de Sven, do velho e bom Sven, todo ambientado na pequena cidade onde o velho bibliotecário voltara a morar após tantos anos de exílio voluntário. Não, jamais saíra do país por problemas políticos; era um exílio auto-imposto, sentimental, cultivado, uma forma de flagelar a si mesmo, entre a consciência e a inconsciência, dentro das fronteiras do próprio país, a terra dos homens-elefante, da elefantíase da memória. Quando, um dia, foi embora dali, no final dos anos 70, ainda não sabia disso. Agora, bem mais velho, estava pondo ordem na casa dos sentimentos, no palácio das emoções, no castelo das recordações, argamassa de areia, cal e óleo de baleia, e sangue, filetes de sangue; tinha agora todo o tempo do mundo naquele emprego, que conseguira graças à intervenção de Candinho.

“O Menino e o Mar” tornara-se um livro paradidático, da Coleção Jovens do Mundo Todo. Por que cargas d’água? Achava nociva a obrigatoriedade da leitura nas escolas. Antes, os meninos podiam sair em liberdade em busca das afinidades eletivas, da educação sentimental, e descortinar novos horizontes, sem as enfadonhas fichas de leitura.

– A leitura como obrigação só faz afastar os jovens dos livros – disse de si para si mesmo. – Hoje, lê-se muito mais nas escolas do que antigamente, mas com que peso a literatura é encarada por esses pequenos leitores, mentes em formação que na idade adulta estarão incapacitadas para abrir as páginas de um bom livro única e exclusivamente por deleite. Odiarão os livros, ao invés de amá-los.

Por sorte, pode se dar ao luxo de prosseguir em leituras erráticas (como um vagabundo tocando em surdina, título de um livro de Knut Hamsun; sua vida estava indissoluvelmente atrelada aos livros), descobrindo bons autores, de acordo com o próprio alvitre, tudo por sua conta e risco, embora Sven torcesse o nariz para certos nomes. O interesse podia vir através de títulos intrigantes ou, até mesmo, da ilustração da capa. Lembrou-se, então, de Monteiro Lobato, que na década de 40, recém-chegado dos Estados Unidos, passou a propagandear o livro como um produto, mercadoria exposta em mercados, farmácias, postos de gasolina, à disposição, como creme dental, sucrilhos e fiambrada. Daí, a ilustração e as cores da capa passarem a fazer parte do produto, diferentemente da política editorial anterior, herdeira da tradição européia, cujas capas eram ricas tipograficamente, mas de embalagem pouco convidativa. Depois de Lobato, a indústria editorial brasileira nunca mais seria a mesma. Digam o que quiserem sobre os seus quiproquós com os modernistas, mas o homem era um visionário. Pode-se até perdoá-lo por ter omitido em sua tradução de “Robinson Crusoé” a passagem do náufrago pelo Brasil.

A chuva não parava, o dia cinzento, convidativo à introspecção, o bibliotecário teve necessidade de firmar os olhos para ler algumas lombadas, numa conhecida brincadeira. Adivinhava-lhes os nomes e não podia mais enganar a si mesmo, sabia que precisava ir urgente ao oculista, lhe pingariam um colírio doloroso e depois o mandariam ler alguma coisa. Não conseguiria, evidentemente. Quem consegue? Lembrou-se então de Borges, o bruxo argentino, cego, pedindo às pessoas que iam visitá-lo no apartamento de Buenos Aires que anotassem os poemas que laboriosamente lapidara durante a noite eterna dos dias anteriores, lembrou-se da irônica personagem do bibliotecário cego do romance “O Nome da Rosa”. Não, não queria esse fim para si mesmo. Mesmo porque não haveria um Eco local para eternizá-lo. Amanhã, iria sem falta ao oculista.

Ao mudar-se para Curitiba, aos 20 anos, o velho bibliotecário passou a frequentar o único sebo da cidade (hoje, a capital paranaense conta com excelentes casas de livros usados). Assim, foi acumulando livros e mais livros no quarto de pensão onde morava. Ao mudar-se para Campinas, quatro grandes malas continham as suas preciosidades livrescas, grande parte em antigas edições de papel jornal, em meio a poucas peças de roupa: uma calça, cinco camisetas, cuecas e uns pares de meias. Esses volumes em papel jornal, que vão se desfazendo sob a ação do tempo, são o retrato da política de Guerra, quando o papel bom, de qualidade, era desviado para as frentes de batalha. Assim, os excelentes títulos da Editora Globo, do Rio Grande do Sul, são hoje encontrados em petição de miséria, desfazendo-se, e a preço de banana. Lembrou-se da gasta edição de “Um Gosto e Seis Vinténs”, a irretocável biografia de Paul Gauguin, de Somerset Maughan, comprada no Sebo do Mosquito, em Florianópolis, pela bagatela de um cruzeiro, na década de 80.

As estantes, em casa, tinham muitos livros de poetas, de poesia, de estudos sobre poesia, de biografias de poetas, em fileiras duplas, a casa era humilde, de poucas paredes, quase todas tomadas pelos livros. A solidão e o amor aos versos levaram-no a publicar dois livros de poesia, aos quais somente os mais chegados tinham acesso. Não que se envergonhasse deles, nem que modesto fosse, mais o medo de parecer arrogante, pois sabia, desde menino, que em terra de cego, quem tem um olho é caolho. Sempre em gestação, tinha um inédito que escrevera e reescrevera várias vezes, não por capricho, nem por excesso de zelo, mas por não ter encontrado editor que por ele se interessasse, também não saíra em busca. Achava o título o máximo: “A Tal da Poesia”, uma traquinagem com “O Tao da Física”, de Fritjof Capra. Agora, pensando bem, a graça do título se esvaíra com o passar do tempo, ninguém mais lançava o tao disso, o tao daquilo. Perdera a oportunidade. Como a poesia lhe era cara, não conseguia entender por que certos prosadores torcem o nariz para a arte poética. Novamente, a teia da memória fazia das suas: o grande escritor William Faulkner, em entrevista à Paris Review, afirmava que todo romancista é um poeta fracassado, que impossibilitado para escrever poemas, tenta a forma do conto e, fracassando na arte da narrativa curta também, faz finalmente a opção pelo romance. Onde lera isso? Será que a grande aranha estava jantando as moscas do seu cérebro? Tinha certeza de que a poesia, a verdadeira poesia, deveria ser, antes de tudo, a arte da concisão, a alta voltagem da palavra, o resgate da língua. Onde lera isso? Em certa época, deixou-se envolver pela poesia visual.

Não publicou nenhum desses poemas, devido ao alto custo dos fotolitos. Mas também ao excesso de elaboração que esse tipo de poesia exige. Passou dez anos burilando um único poema, tridimensional, feito a partir do rótulo da aveia Quaker, onde substituíra o tradicional quacre pela foto de Walt Whitman, descendente de quacres, trabalhando a mesma tipologia, criando outras palavras, outros significados, até completá-lo com chave de ouro. Em vez de “peso líquido: 250g”, “solo líquido: logo”. Extasiou-se ante a própria obra, explicando para si mesmo, como se conversasse com um igual (onde estariam os seus pares?), que o “solo líquido” é o terreno pantanoso da poesia, e “logo” remete ao logos filosófico e, ao mesmo tempo, à razão e ao advérbio de tempo. Tempo, essa abstração tão palpável, nada pantanosa, onde sempre sentira chafurdar os pés. Lembrou-se de um clube barra-pesada da cidadezinha, o qual só existe agora na memória de alguns habitantes, e muito poucos, o Não Tem Tempo, cuja placa encontra-se no gabinete do secretário de cultura, como a cabeça de um leão. Assim foram se atropelando trechos de música, tempo, tempo, tempo, és um senhor tão bonito, como a cara de meu filho, o tempo não para no porto, não apita na curva, não espera ninguém, tempo, tempo, falta um pouco ainda, eu sei, pra você correr macio. Durante certo tempo, também praticou poemas matemáticos, decompondo uma única palavra, trabalhando as inúmeras variações, associações, embaralhando-a, descobrindo novos vocábulos a partir da palavra-matriz. Por exemplo, a decomposição de poesia deu origem ao refrão: e Poe, após o ópio, passeia a pé. Noutra dessas elucubrações, feitas à noite, sob a inspiração de uma bruxuleante lamparina, durante um blecaute, quando toda a cidade ficara às escuras, a palavra nicromante fora decomposta em várias outras, dando origem ao verso "A memória caótica trará à tona o crânio e atônito encontrarei na areia a cimitarra". Ou "Monocrômica, anacrônica, atraente, arcaica, não amei-te ao meio, amei-te à maneira inteira". Percebe-se, assim, a que precipícios chegara a poesia do velho bibliotecário, às raias da rarefação. Sozinho, batera palmas de alegria, como uma criança ao receber um presente, quando descobriu na palavra nicromante o nome da cidade que lhe era tão cara, eternamente deitada aos pés da Serra do Mar, como uma baleia encalhada, decompondo-se, assim como o velho bibliotecário, cetáceo em decomposição; as entranhas, a primeira, a segunda pele, a mais exterior das peles, a mente, a memória, a perda da memória, feitas, construídas, do óleo daquela baleia que, desde o dia da sua chegada à cidade, ele, aos 15 anos, percebera ali parada, julgando-a adormecida, como se baleias pudessem adormecer impunes no raso da maré baixa.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

O DIÁRIO DE BORDO DO GRUMETE FERNANDO SEABRA, DADO À LUZ PELO PROFESSOR MODESTO CASTRO DA SILVA, NO ÚNICO INTUITO DE CLARIFICAR ALGUNS PONTOS OBSCUROS DA HISTÓRIA DO BRASIL

Edson Negromonte

Introdução

O pequeno diário de bordo, aliás, umas poucas folhas, do grumete Fernando Seabra foi encontrado há algum tempo, dois anos e cinco meses, para ser exato, na biblioteca de um amigo, descendente do Barão de Antonina, o mais ilustre historiador das quimeras capelistas, um apaixonado e contumaz colecionador de manuscritos e obras raras da nossa história, principalmente daquilo que se convencionou chamar de proto-história, que deseja permanecer incógnito. Paixão que levou-o já aos confins do mundo em busca das nossas raízes, a lugares ainda ermos e quase selvagens, mesmo nos dias de hoje, em que os homens entendem que já exploraram o que tinha de ser explorado no globo terrestre e se lançam agora a viagens interplanetárias. Assim, se há luz, com certeza a treva se manifestará. Aquilo que os homens de ciência julgam indigno de se debruçar pode ser o depositário mais fiel dos segredos da própria história, daquilo que buscam, e quando o roçam, escarnecem; um simples grão de areia encerraria toda a história da humanidade. O que não dizer, então, de documentos que se julgavam perdidos e, até mesmo, fictícios? Portanto, não me canso de enaltecer a paixão do amigo, a qual tornou-se, para mim, de grande valia.

Este diário de bordo (como resolvi chamá-lo, por conveniência) do dito grumete parecerá para muitos uma falsificação, para outros um engodo. Não pretendo aqui provar a autenticidade de coisa alguma. Para mim, é autêntico e é o que basta, mesmo porque a umidade e os bichos do tempo já se encarregaram de lhe comer boa parte, talvez as mais saborosas, as quais tratei de reconstruir como uma divindade qualquer no alvorecer do mundo, a quem tudo é permitido. Deve-se levar em conta que esta é a transcrição atualizada de um documento dito apócrifo, para leitura mais fluente.

Este pequeno diário de bordo, ou o que dele restou,, tornou-se desde então o meu mar oceano, ao qual dediquei anos a fio, de sonhos, pesadelos e delírios de náufrago, desde o intrincado cavername até o sonho líquido das palavras dos antigos homens marítimos, de delírio renascentista. É o testamento do salitre quinhentista às novas gerações que, assim como os seus antepassados, também passarão os dias nos trapiches, a observar a imensa massa de água salgada a fluir e refluir, no exasperante e monótono vaivém das garrafas lançadas ao mar. Deixando de delongas, passemos à leitura do diário do grumete Fernando Seabra.


Do ocorrido no domingo e na segunda-feira, 8 e 9 de março de 1500.

Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, venho dar conta ao sereníssimo Rei de Portugal D. Manuel I, mas principalmente à gente comum, meus iguais, de tudo quanto vi e ocorreu durante a viagem pelos mares e terras que a Portugal pertencem por ordem e graça do Santo Papa. Peço perdão a El-Rei se as palavras não são adequadas aos vossos finos ouvidos mas a minha escola é pouca e trairia a minha gente, a arraia-miúda, se de outro modo escrevesse, pois outros homens nesta nau; o escrivão Pero Vaz de Caminha ou o capitão-mor Pedro Álvares ou o piloto Pero Escolar ou o cartógrafo João Estrangeiro, dito Mestre João, poderão fazer melhor que este vosso humilde servo. Os homens citados estão melhor preparados a dar conta de melhor maneira sobre os acontecimentos, tanto à Vossa Alteza quanto aos homens cultos; assim sendo, eu, humildemente, peço permissão para relatar tudo o que vi e ouvi em minha viagem ao homem comum, meu igual, pois a palavra justa me faltaria, e não daria eu conta nem ao Senhor Sereníssimo e muito menos ao homem rude das ruas, ávido das aventuras e histórias do além-mar, de tudo quanto estou eu disposto a ver na viagem rumo ao desconhecido. E que a ignorância da pouca idade não me leve à pretensão de me achar tão ou mais importante que qualquer navegante anterior a mim.

Durante muitos dias e noites, e dias e mais noites ainda, como um espião do espírito, estive eu a rondar o porto, a observar o movimento dos barcos, das naus, dos que chegavam, mas principalmente dos que partiam. Os que chegam trazem as novas das terras ao longe, aonde os olhos, por mais que os esforce um forçado, não conseguem jamais divisar, mas toda a vez que uma nau deixava o porto um pouco de mim partia junto com ela. Velas enfunadas revelavam de pronto a agitação dos marinheiros, como se eu mesmo estivesse com eles partindo. De tudo, dos preparativos para a viagem a Calicute, fiquei sabendo pelo falatório das ruas, que meu ouvido é atento e nada perco do que se conta nos becos dessa Lisboa febril, com todo o tipo de gente que tal centro de comércio pode atrair, negociantes, banqueiros, espiões. Sei de tudo, pois ninguém liga muito para um menino curioso; aprendi a ouvir e deveras calar as coisas todas e muitas mais depois de ser abandonado pelo meu pai. Comentava-se nos cantos das hospedarias sobre uma armada de treze naves em direção às Índias e que o próprio Rei D. Manuel, em pessoa, iria à missa de embarque dos corajosos homens; dispostos à descoberta das novas terras, os novos mundos. Diz-se até que de novas gentes, diferentes da nossa. Apesar de isso ter ouvido da boca de marinheiros sempre bêbados, nas tavernas, todos eram unânimes em afirmar que o mundo não é só Lisboa e que essa é a maior armada que já atravessou o oceano, composta de uma naveta para os mantimentos, duas caravelas e dez naus . E disso já o sabia eu. Assim, acorri eu também ao porto de partida, já sentindo na boca o gosto do sal grosso. Lá estava, disso dou parte, o Sereníssimo Rei e creio não estar mentindo se dissesse toda a Lisboa. Como sou pequeno e magriço, fui me intrometendo por entre aquela gente de preto, a qual vai sempre de luto ao embarque dos que ousam enfrentar mares revoltos e monstros marinhos, em luto antecipado, mas nada disso me amedrontou. Apesar dos dezesseis anos, e não conseguindo mais ficar em terra enquanto via tantos conhecidos partindo, e sem conhecimento mínimo de navegação, não saberem sequer a diferença entre bússola e astrolábio, mas devo também dizer que nem eu o sabia até então. Dizem até, à boca miúda, na agora distante Lisboa, que mesmo o Capitão-Mor Pedro Álvares nunca pisara uma embarcação. Perdão a El-Rei se digo asneiras. À noite do dia oito, com lua e céu estrelado, prenúncio de tempo bom, enquanto faziam-se os preparativos para a partida, consegui burlar a vigilância da nau e me embarafustei, feito ratazana, nave adentro, o coração explodindo, mãos trêmulas, de suor pegajoso. Ainda agora, ao disso lembrar, as têmporas me latejam, tudo girava à minha volta na escuridão daquele lugar úmido, o porão. O cheiro do porão é muito forte e dá vontade de vomitar, não sei se por causa desse fedor nojento, pois já deve ter ratos e baratas aqui dentro, apesar de ser novo o navio. Devo confessar que o medo de ser descoberto, pois com certeza seria jogado ao mar, não deixava-me pregar os olhos. Se me descobrissem, sabe-se lá o que me esperaria, além das serpentes marinhas capazes de arrasar uma cidade inteira com um único movimento da cauda, ou coisa pior até. Devo novamente relatar que, antes mesmo da partida, já tinha coisa podre no porão e que o ar não se podia respirar de tão pestilento. A ânsia trouxe de novo o medo quando ouvi os passos de alguém descendo a escada e se aproximando, com uma lanterna na mão. Supliquei à proteção divina que me guardasse, mas a minha respiração ofegante estava muito alta. Tentei parar de respirar, sem erguer os olhos, acocorado num canto escuro. Eu precisava conhecer as terras novas. As histórias que os marinheiros contam das Índias são de encher os olhos do cristão: ouro, prata, especiarias, mulheres seminuas, dançarinas capazes de deixar o homem em êxtase só com um movimento dos quadris. Tantas são as riquezas que tornarão o nosso rei D. Manuel muito mais rico ainda. Para minha sorte, o desgraçado da lanterna acabou indo embora e tanto tempo passou-se que, apesar do cheiro ruim, acabei adormecendo.


Do ocorrido na terça, aos 10 de março de 1500.

Devo dar parte de que acordei com o despenseiro do navio brandindo uma grande faca em minhas faces e gritando para que eu saísse dali, perguntando-me o que estava eu a fazer ali escondido. Pedi que não me matasse, dizendo-lhe que meu pai fora copeiro de El-Rei, ao que ele olhou-me com fúria e disse que eu era o filho de uma rameira. Gritei então com todas as minhas forças que tivesse pena de mim, o filho de um copeiro e uma rameira, na esperança de que outros da tripulação ouvissem e em meu auxílio viessem. O rebuliço foi tal e tamanho que parte da tripulação acorreu ao porão. Não tardou para que um homem, em roupas de veludo e ar de fidalgo aparecesse e os marinheiros logo lhe dessem passagem. Moderado, o uchão falou-lhe que eu deveria ser lançado ao mar, ao que a marinhagem assentiu, temerosa do azar que um latebroso traz às naus. O fidalgo ordenou então que todos se calassem e voltassem aos seus afazeres. Eu fui levado à presença do Capitão-mor, o qual estava em sua cabine, em meio a uma azáfama de mapas vários, em conversação com um outro muito distinto, que depois fiquei sabendo se tratar de João Estrangeiro, dito Mestre João, homem que escreve fluente em variadas línguas e sabe de navegação muito mais que qualquer capitão em toda a esquadra. Pero Vaz, este o nome do fidalgo que trazia-me pelo braço, desculpou-se pela intromissão e apresentou-me como um rato de porão ao Capitão-mor e ao cartógrafo, um clandestino. O Capitão-mor Pedro Álvares olhou-me de cima a baixo, de olhos severos e sobrancelhas espessas. Devo aqui dizer que clamei por piedade que não me jogasse ao mar, porque o sabia homem de bom coração e que eu, na verdade, não queria trazer azar a ninguém, somente conhecer as novas terras de além-mar, pois a vida já tinha sido dura demais comigo, tomando-me cedo a mãe e que duplamente órfão fiquei quando meu pai, copeiro do rei, caíra em desgraça, sendo degredado sabe-se lá para onde, de que não queria mais andar pelas ruas de Lisboa, vivendo da caridade alheia, de que poderia na nau capitânia fazer qualquer tarefa, e compensar a minha fraqueza trabalhando dobrado, de que o capitão-mor me concedesse a chance de servir a El-Rei D. Manuel, o primeiro. Enquanto o Capitão Pedro Álvares observava atento a minha figura, os meus olhos não conseguiam se despregar de uns pedaços de presunto sobre a mesa, os restos do almoço. Enquanto os três homens se entreolhavam e decidiam, a fome era tanta e tamanha que eu ataquei as sobras da mesa do capitão-mor. O meu atrevimento por certo causou dó aos três homens, tanto que fui mandado a ajudar no convés, junto com os outros grumetes da marinhagem. Assim, tornei-me parte efetiva da nau capitânia, de três mastros, chamada São Gabriel.


Do ocorrido nos dias de março de 1500.

Dizem os capitães, que sou todo ouvidos, de uma terra nova antes de Calicute, a qual, segundo Mestre João, já está nos mapas de Pero Vaz Bisagudo. Isso eu sei porque tenho os ouvidos atentos e a boca fechada, sei tudo ouvir e tudo calar. Quatro dias depois da nossa partida, passamos pela ilha das Canárias e seguimos viagem até Cabo Verde, aos 22 dias deste mês de março, com mar calmo, sem contratempos. Mas no dia seguinte, uma das embarcações perdeu-se das outras, a do fidalgo Vasco de Ataíde, também chamado de Taíde e irmão de Pero de Ataíde, o capitão da caravela São Pedro. O capitão-mor Pedro Álvares fez várias buscas à nau do muito honrado Vasco de Ataíde, mas embalde. Era como se o mar houvesse tragado embarcação e toda a tripulação. Seguimos viagem, embora a marinhagem, principalmente o despenseiro, quisesse novamente me jogar ao mar, dizendo ser eu o culpado pela fatalidade de Vasco de Ataíde. Salvou-me ter caído nas graças do capitão-mor, mas principalmente nas boas graças de Pero Vaz, o qual me fizera o seu secretário. Isso quer dizer que eu já não fazia mais o trabalho pesado do tombadilho, o que me dava também certas regalias, como uma comida melhor. Às vezes, partilhava da mesa de Pero Vaz, chegando a beber com ele um copo do seu melhor vinho. Sobre certos homens da equipagem da armada é preciso dar conta à Vossa Sereníssima Majestade, mas principalmente à gente da minha laia, pois que estou cercado de grandes nomes da navegação. O primeiro, a quem muito me afeiçoei, é frei Gaspar, monge franciscano, meu confessor, homem culto, apesar da pouca idade; deve ter por volta de vinte a vinte e dois anos. É um dos religiosos preferidos de frei Henrique de Coimbra, também franciscano e confessor, dizem, de D. João II. Se não fosse a sua intervenção também a meu favor, frente à marinhagem, que o tem em muito boa conta, teria eu virado comida dos monstros marinhos, durante algum descuido noturno. Entre os capitães, tenho muito apreço por Bartolomeu Dias e seu irmão Diogo, ambos de muita fama por terem dobrado o Cabo da Boa Esperança, antes das Tormentas. Versado em matemática e astronomia, o intrépido Bartolomeu parece trazer dentro de si uma sombra que, mais cedo ou mais tarde, o levará à morte. Pelo menos, eu assim o vejo, assim como vejo uma grande sombra a pairar sobre as cabeças de quase todos os homens da armada, mas o que mais me causa apreensão é Bartolomeu Dias. Homem digno de ser imitado no trato com os homens, é o vice-comandante Sancho de Tovar, da sota-capitânia El-Rei, e digno de pena é Nuno Leão da Cunha, da Anunciada, visto de viés por toda a equipagem, por estar a serviço de banqueiros florentinos em busca do lucro advindo do tráfico das especiarias, embora todos estejam em busca de riquezas mas ninguém admita. O meu protetor Pero Vaz é homem muito letrado, tem por volta de 50 anos e participou da Batalha de Toro, aos 25 anos de idade; diz ele que fez de mim o seu grumete, o que quer dizer, segundo ele, um criado para lhe servir o vinho. Notícias sobre o capitão-mor serão dadas mais tarde que agora frei Gaspar está a me chamar para as rezas e as nuvens já encobrem a lua.


Do ocorrido a bordo.

A vida a bordo da nau capitânia deve ser a mesma das outras naus, quando o mar está calmo, como tem estado até o dia de hoje. Os víveres são racionados, e a cada marinheiro compete uma ração para a semana, de carne salgada de porco e peixe, sardinhas e esturjões, biscoitos, água e vinho, queijo, ovos, alho, cebola, uvas passas, às vezes algumas frutas, principalmente os figos, quase sempre destinados ao capitão, ao escrivão e ao piloto. A marinhagem, se comprime no convés à hora de dormir, cada um a seu turno, sendo que os melhores lugares são os mais próximos da proa, onde se está a coberto das vagas. Somente o capitão-mor Pedro Álvares e o escrivão Pero Vaz dispõem de cabines, cada um com a sua. Às vezes me é permitido dormir no chão da cabine de Pero Vaz, meu protetor, em uma alcatifa. O resto dos homens se acomoda como melhor pode, de acordo com a ordem e a hierarquia, sendo destinado ao baixo escalão, quer dizer, os grumetes os piores lugares, de geral próximos à popa, desabrigada e sob o açoite intenso das vagas. Na popa, fica também o balde no qual os oficiais aliviam as tripas, o qual é preso numa corda grossa e é arrastado pela água para a limpeza. À marinhagem são destinadas as assim ditas jardineiras, em número de duas, as quais se encontram na proa, uma de cada lado, e que vem a ser uma tábua com dois buracos onde sentam-se os homens para aliviar as tripas. Limpam-se eles com uma corda grossa, desfiada nas pontas, a qual está sempre limpa, devido a ação da água do mar. Muitos homens da tripulação estão já assados por causa da água salgada. A bexiga se alivia na amurada. Enquanto não se está trabalhando, os mancebos cantam sobre a terra, as saudades da terra, das cachopas, tocando as suas gaitas. A Mestre João apraz distrair a marinhagem com relatos de viagens e a orientação pelas estrelas. Aos marinheiros, apraz ouvi-lo quando não estão entretidos com jogos de dados, os quais são proibidos mas aos quais se faz vista grossa, desde que os homens não se desentendam entre si. Devo dizer que temos bons gaiteiros entre nós, os da tripulação da São Gabriel.


Do ocorrido aos 21 de abril de 1500, terça-feira.

A alegria dos marinheiros foi muito grande ao avistarem botelhos e rabos-de-asno, mais que evidente sinal de terra próxima, conquanto estivéssemos há mais de mês envoltos pela água salgada, em desespero, apesar do tempo quase sempre calmo.


Do ocorrido aos 23 de abril, uma quinta-feira.

Avistou-se terra e isso causou grande alvoroço entre os homens, depois de tanta água, mas de tempo quase sempre bom. Foi descido então um batel para ver que gente era aquela na praia, de corpos nus e pardos. As praias são de muita vegetação, abundante. Devo aqui dar parte que eu, o grumete Fernando Seabra, fui um dos primeiros a por os pés em terra, pois que estava eu no batel também, a mando do capitão-mor Pedro Álvares. À minha frente, somente Nicolau Coelho, experiente navegador que não pode se entender com as gentes do lugar, mais ou menos uns vinte homens, todos nus e de arcos e flechas. A um sinal de Nicolau Coelho, eles deitaram por terra as suas armas. Nicolau Coelho deu a um deles a sua própria carapuça, a qual tirou da própria cabeça, à guisa de entendimento. Deram-lhes eles em troca um sombreiro de penas de papagaio, creio eu, e um cordão de conchas miúdas. Nada nem ninguém conseguia entendê-los e creio que nem eles a gente. Permanecemos entre essa gente até perto do anoitecer, devo acrescentar que com alguma apreensão, posto que são homens muito bem constituídos e que facilmente nos fariam prisioneiros. No dia seguinte, levantou um vento quente, prenúncio de temporal, o que obrigou a armada a buscar abrigo melhor perto de um rio, num porto mais seguro.


Do ocorrido na sexta-feira, dia 24 de abril.

Dois dessa gente de pele parda foram trazidos a bordo da nau capitânia, sob ordens do capitão-mor Pedro Álvares. Eram gentis em gestos e tão inocentes que se assustaram à vista de uma galinha. O capitão-mor tentou com eles se entender através de gestos, embalde. Tentou-se também falar com eles em latim, mas nada nem ninguém pode lhes compreender. Ao cair da tarde, qual infantes, deitaram-se e adormeceram no convés, ao que o capitão-mor mandou cobri-los, posto que as suas vergonhas estavam à mostra e isso causava vergonha a nós, homens acostumados às vestes. Apesar do calor, o capitão trajava veludo, enquanto a marinhagem trabalhava de peito nu e pés descalços. Devo aqui dizer também que essa gente das novas terras parecia a mim tão atraente quanto uma bússola. Fiquei a admirar-lhes por muito tempo o sono calmo e profundo. No dia seguinte, foram levados de volta à terra, onde para pasmo meu estava uma multidão de homens. Entre eles, quatro moças, de vergonhas à mostra, as quais todos os homens se admiravam de olhar e a elas não causava-lhes vergonha o mostrar as próprias vergonhas. De não se poder despregar os olhos das suas vergonhas, e nem mesmo o escrivão Pero Vaz de Caminha, meu protetor, o qual assombrou-se, como nós, os da marinhagem, de serem raspadas. Uma delas chamava a atenção de meus olhos, por ser muito bonita, de cabelos negros, luzidios e longos, que lhe desciam pelas espáduas. Devo aqui dizer que voltei contra a minha vontade à nau capitânia, por ordem de Pero Vaz, e que mesmo ao degredado Afonso Ribeiro não lhe foi permitido o pernoite, por ordem do Capitão, entre aquela gente, que o trouxe de volta à praia. De volta à nau, não pude adormecer, com a vista tomada pela beleza das gentes da terra nova, de pele ora avermelhada, ora de bronze. Faz essa gente muito gosto nos guizos, com os quais são fartamente presenteados por aqueles que vão à terra, para saber do ouro e da prata que se supõe haver mais para dentro, apesar de não usá-los como adorno. Os seus principais enfeites são as penas de aves, várias e desconhecidas para nós, sendo que somente as dos papagaios conhecemos, de vários tamanhos, menores e maiores que uma galinha. Eles têm as penas de aves como uma grande riqueza. Creio que o seu adorno principal é um osso de animal que enfiam no beiço inferior, o qual o atravessa todo, não os impedindo de falar com desenvoltura. As mulheres não trazem adornos, somente poucas pinturas em algumas partes do corpo e nem em todo ele, somente partes dele, mas muitos homens têm o corpo todo pintado.


Do ocorrido em 26 de abril de 1500, no domingo de Páscoa, e nos dias seguintes.

O muito católico capitão-mor Pedro Álvares ordenou que todos os homens assistissem missa num ilhéu, oficiada por frei Henrique, sobre o achamento
dessa terra. Todos os homens lá estavam, ouvindo a pregação com devoção, enquanto a gente da terra folgava na praia. A gente do lugar é amigável e a mim parece o paraíso terrestre, com vergonhas à mostra e sem pecados. Fazem eles questão de nos oferecer os seus bens mais preciosos, como penas coloridas de aves, conchas muito brancas, pedras coloridas e frutas de sabores que nunca tínhamos provado. Em tudo nos imitam e alguns de nós os imitam também, principalmente quando fazem algazarra, o que não é do agrado do capitão Pedro Álvares. Vossa Alteza, creio eu, faria gosto em ver os homens de vossa marinhagem com os corpos também pintados de vermelho e preto, a folgar entre essa gente. A alguns dos vossos marinheiros é concedido pelos capitães permanecer em terra entre eles, o que eles não permitem. Não sei porquê, mas ao anoitecer, somos levados de volta à praia e obrigados a dormir em nossas naus. Assim, passo os meus dias entre a gente da terra, em companhia de outro grumete, da nau Trindade, chamado Simeão. O fidalgo Pero Vaz está a escrever uma longa carta destinada ao nosso Sereníssimo Rei, D. Manuel I, a qual será levada por Gaspar de Lemos, o comandante da naveta. Sobre o capitão Pedro Álvares, tenho intenção de escrever algo nos próximos dias, posto que, apesar de muito sério e de poucas palavras, somente as necessárias, é do meu agrado. A ele, há de se fazer justiça. Por crer que não me reste mais tempo, pois a minha fuga já está planejada, juntamente com Simeão, da Trindade, devo então dizer que o capitão-mor é homem de princípios, todos dele dependem, pois a todos ouve, sempre avaliando as palavras dos seus capitães, com dignidade e interesse. Assim, devo acrescentar que o honrado capitão-mor desta armada, Pedro Álvares, é digno representante de Vossa Alteza, D. Manuel I. Devo ainda aqui dizer que peço perdão pela imprecisão de algumas datas, apesar de Pero Vaz ter-me dando a honra de ser o responsável pela marcação do tempo no relógio de areia desta nau, o qual se encontra em sua cabine. Peço a Vossa Alteza que leve em conta a pouca idade deste seu servo, o grumete Fernando Seabra. Creio que a Mestre João, homem entendido nas estrelas, seria mais cabível essa atribuição do que a rapaz encantado com as belezas da terra.


Do ocorrido nos últimos dias de abril ou no primeiro dia de maio de 1500.

Foi erguida em sítio determinado pelo Capitão uma grande cruz de madeira, a qual contou, além da força de Vossos marinheiros, com a força dos homens da terra, para ser erguida. Entre nossos homens, havia a gente da terra para assistir a missa desta sexta-feira. Entre eles, uma única mulher que, assim como as outras vistas na praia, também trazia nua a sua vergonha. Bartolomeu Dias ordenou a um dos marinheiros que desse um pano para ela se cobrir, o que não foi de valia pois ao sentar-se a sua vergonha ficava à mostra e disso ela não dava conta. Devo aqui dar parte a El-Rei que eu, assim como muitos outros marinheiros, não pude tirar os olhos dessa mulher e da sua vergonha. Confessado o meu pecado a frei Gaspar, esse religioso homem não se mostrou surpreso com a minha atitude, asseverando que a inocência é um atributo do paraíso, o qual perdemos e jamais conquistaremos, posto que já nascemos com o pecado original. Por qualquer acontecimento, essa gente tem por costume cantar numa algaravia muito próxima a das aves. A eles, me parece, não lhes agrada o som das nossas gaitas, assim como o gosto do nosso vinho, o qual cospem logo fora, com repulsa. É essa gente de tamanha inocência que a mim aprazaria viver entre eles até o último de meus dias, nesta Ilha de Vera Cruz, por obra e graça de Nosso Senhor Jesus Cristo.


CONCLUSÃO

Essas são as últimas palavras escritas do grumete Fernando Seabra, em seu diário improvisado, finalizando este relato que será de grande valia para os estudiosos da história pátria. Num trecho da famosa carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel I, o escrivão oficial da descoberta do Brasil, diz o seguinte: "Creio, Senhor, que com estes dois degredados que aqui ficam, ficarão mais dois grumetes que esta noite se saíram em terra, desta nau, no esquife, fugidos, os quais não retornaram mais. E creio que ficarão aqui porque de manhã, aprazendo a Deus, fazemos nossa partida daqui". Este trecho corrobora a hipótese de que os dois grumetes que resolvem permanecer de livre e espontânea vontade em terras brasileiras são mesmo Fernando Seabra e o seu companheiro de aventuras e desventuras, Simeão, junto com os dois degredados: Afonso Ribeiro, citado nominalmente na carta de Caminha, e mais outro, do qual não se sabe o nome.

A mim, hoje o depositário de confiança deste documento, após a morte de meu amigo, cujo nome permanecerá incógnito, de acordo com a sua vontade, resta o orgulho de trazer alguma luz à problemática do descobrimento da terra brasileira, através das palavras de um mareante que, ao invés de seguir a viagem a Calicute, houve por bem se estabelecer entre os primeiros habitantes desta terra, indo assim contra a corrente histórica pessimista, a qual insiste em fazer do povo brasileiro somente o repositório da sífilis. Asseguro ainda às novas gerações que estes primeiros portugueses que aqui estiveram eram a nata da navegação da época, sendo que Pedro Álvares Cabral, apesar de não ser um navegador experimentado, como bem o mostra o diário do grumete, estava investido como diplomata, uma espécie de embaixador da boa vontade, às ordens de D. Manuel I, o Venturoso, para corrigir as barbaridades anteriores perpetradas pelo impiedoso e controverso Vasco da Gama na Índia. Nunca será suficiente destacar as personalidades de Pero Vaz de Caminha, o responsável pelas primeiras palavras sobre a terra brasileira e os seus primeiros habitantes, cuja carta tornou-se um documento monumental tanto da cultura portuguesa quanto da brasileira, e o grande herói camoniano Bartolomeu Dias, o retrato mais fiel do homem destemido de sua época, presente em “Os Lusíadas”, o grande poema épico português, que viria a falecer justamente nas imediações do Cabo da Boa Esperança, o qual lhe deve o nome, ao cruzá-lo pela segunda vez.




TRANSCRIÇÃO FONÉTICA DO DIÁRIO DE BORDO DO GRUMETE FERNANDO SEABRA


do ocurrido domingo e segda viii e xi de marzo MD

em nombre de noso sñor jesus xto ueño dar oõta ao serenísimo rey de portugal d manuel i pero princ aa jente comu mis iguales de todo o cuanto he visto e he ocurrido durante a viaje per mares y tierras que a portugal pertenecem bajo la ordre y graça do santo papa peso perdaum a el rey si las palabras no saum adecuadas a vosos finos oidos pero a mia escoola eh poca e traio aa mia jente la raia menuda si de otro modo escrepuo pois otros ombres en esa nao o escribaam pero vaas de camjnha o o capitaam moor pero alvares o o piloto pero escolar o o cartografo juan estranjero dito mestre juan poderaum hacer milhor q ese voso umilde seervo haceria os ombres citados estaum en milhor preparo pera dar cõta de milhor manera supra os ocurridos tanto aa vossa alteza cuanto als ombres cultos de la nobresa asi sendo eu umiude pido premisaum pera relatar todo o q he visto e oído em mia viaje al ombre comu meo igual pois o mote justo a mi me fautaba e no dava cõta ni ao sñor serenisimo e mui meno al ombre rude das ruas avido de aventuras y istooreas de alem mar de todo cuanto estoy eu disposto a veer nessa viaje rumo ao desconocido y q a jnoramcia da poca edade no me leve aa pretemsaum de me creer taum o mas jmportante q cual qr marinero anterior a mi mui dias y noutes y dias y noutes mas aymda como um espiaum do spiritu estibe eu a rondear o porto a observar o movimento dos barcos das naos dos q chegabaum pero princ dos q partiaum os q chegaum traem as novas das terras al lomje a onde os ollos por mas q esforse un forsado nõ consegem jamas divisar pero tooda a vez q ua nau dejaba o porto un poco de mi partia yunto co ela velas efunadas revelavaum de pronto a agitasaum dos marineros como se eu mismo estuvisse co eles partindo de todo dos preparativos para a viaje a calecute fiquee sabendo per o falatoorio das ruas q mi oido eh atento y nada perdo do q si cõta en becos desa lisboa febril co todo tipo de jente q tal centro de comeercio pode atraer negociantes banqueros espiaums sei de todo pois ningum liga mui pera um menino curioso apreendi a oir e deberas calar as cosas todas y mui mas despues de seer abandonado por mi padre comentaba se nos cantos das ospedarias de ua armada de xiii naos em direcion aas indias y q o propio rei d manuel en persona ia aa misa de embarque dos corajosos ombres dispostos aa descoberta das novas terras os novos mondos dis se ateh q de novas gentes diferentes da nosa a pesar de iso ter oido da boca de marineros sempre bebedos nas tabernas mas todos eraum unanimes en afirmar q o mondo nõ eh soh lisboa y diso ya o sabia eu asi acurri eu tbm al porto de partida ya sentindo na boca o gusto do sal groso lah estaba disso dou parte o serenisimo rei e creo no estar mentindo si disese toda a lisboa como sou pequeño y magriso fui intromisando me por entre aqela gente de preto a qual vae sempre de luto al embarqe dos q osaum enfrentar mares revoltos y monstros mariños en luto antecipado mas nada diso me amedronta apesar dos xvi anos y no consegindo mas ficar en iterra encuanto veia tantos conocidos partindo y si conocimento de bussula o astrolabio mas debo tbm decir q ni eu lo sabia ateh entaum dicem ateh aa boca menuda na aora distante lisboa q mismo o capitaam moor pedralvares he pisado ua embacassaum perdaum a el rey si digo asnises aa noute do dia viii con luna y ceo estrelado prenuuncio de tempo bom encuanto haciaum se os preparativos pera a partida comsegi burlar a vijilancia da nao e embrafustei me hecho ratazana nave a dentro o corasaum esplodindo maãos treemulas de soor pegajoso aun aora ao de eso lembrar me as teemporas latejaum todo gira aa mia volta na oscuridaum dese logar humido o poraum o olor do poraum eh mui forte e da me voluntad de vomitar no see si por causo dese fedor nojento pois ya debe teer ratos y baratas aqi dentro a pesar de seer nueva a nao debo confesar q o medo de seer descuberto pois o medo de seer jugado al mar no dejava me pregar os ollos si discubrisen me sabe see lah o q ocurria alem das serpientes mariñas capazes de arasar ua ciudade inteira con u so movimiento de cauda o cosa peor ateh debo tbm relatar q amtes mismo da partida ya tenia cosa podre no poraum y q o ar no se podria respirar de tan pestilento a aansia tras de novo o medo cuando oi os pasos de algem descendo a escala y aprosimando se co ua lanterna na maum supliquee aa protesão divina q gardase me pero a mia respirasaum ofegante estaba mui alta tentei parar de respirar sin erger os ollos acocorado nium canto oscuro eu precisaba conocer as terras novas as istooreas q os marineros contaum das indias saum de encher os ollos do cristaum oro prata espesiarias mulleres semi nuas dansarinas de dejar o ombre en estasis soh co un movimiento dos cuadrjs pera mia sorte o desgrasado da lanterna acaboo indo imbora e tan tempo pasoo se q a pesar do olor ruim acabee drumindo


do ocurrido terza x de marzo MD

debo dar parte de q acordee co o dispensero do navio brandindo ua gran faca en mis fauces y gritando pera q eu saise de ali preguntando me o q estaba eu a hacer ali esconsido pedi q no matase me decindo a ele q mi pae tenia sido copeiro de el rey al q ele olloo me co furia e dise q eu era o fillo de ua ramera gritee entaum co todas mi forsas y dise q tuvisse peña de mi o fillo de uu copeiro e uua ramera na spransa d q otros da tripulasaum oisem y en mi ayuda venisem o ribuliso foi tal y tamaño q parte da tripulasaum acorreu ao poraum no tardoo para q u ombre en roopas de veludo y ar hidalgo aparesese y os marineros logo deesee a ele pasaje moderado o uxaum faloo a ele q eu debria ser lansado al mar al q a marinage asentio temerosa do asar q um latebroso trae aas naos o hidalgo ordenoo entaum q todos eles se calasee e voutasee als seos afaseres eu fue levado aa presensa do capitaam moor o cual estaba en su cabina en meo a uma asaafama de variados mapas en conversasaum con uu otro mui distinto q despois fiquee sabendo tratar se de juan estranjero dito mestre juanhombre q escrepue fluente em variadas lengoas y sabe de navegasaum mui mas q cual qr capitaam em toda escuadra pero vaaz ese o nombre do hidalgo q trahia me pelo braso escusoo se a intromisaum e apresentoo me como uu rato de poraum al capitaam moor e al cartografo uu clã destino o capitaam moor pero alvares olloo me de cima a bajo de ollos severos e sobrencellas espesas debo aqi decir q clamee por piedade q no jugase me al mar por q sabia a elehombre de boo corasaum y q eu na verdade no quereia traer mala suerte a ninguna persona somente conocer as novas terras do alem mar pois a vida ya tenia sido dura demas com migo tomando me cedo a madre e q a segda vez orfaum fiquee cuando meu pae copeiro do rey cahiu en desgrasa sendo degredado sabe se lah pera a onde de q no queria mas andar pelas ruas de lisboa vivendo da caridade alleia de q podria na nao capitanea hacer cual qr tarefa y compensar mi tibiesa trabajando dobrado de q o capitaam moor concedese me a cheance de servir a el rey d manuel o primero en cuanto o capitaam pedralvares observava atento mi figura mi ollos no consegiam despregar se de uu pedasos de presunto supra a mesa uu restos do almoso encuanto os iii ombres entre ollavam se y decidiaum a fome era tan y tamana q eu ataqei as sobras da mesa do capitaam moor o meu atrevimento por certo causoo do als iii ombres tanto q fue mandado a ayudar no conves yunto co os otros grumetes da marinage y asi tornee me parte efetiva da nao capitanea de iii mastros llamada san gabriel


do ocurrido nos dias de marzo MD

Dicem uus capitaaes q sou todo oidos de ua terra nova de amtes de calecute a cual seg mestre juan ya esta aas cartas de marear de pero visagudo eso eu see pur q tengo os oidos atentos y a boca hechada see todo oir y todo calar iv dias despois da nosa partida pasamos por la isla das canareas y segimos viaje ateh cabo verde als xxii dias dese mes de marzo co mar calmo sin contra tiempos pero no dia seg ua das embarcasaums perdeeo se das otras a do hidalgo vasco de atayde tbm llamado taide y hermano de pero de atayde o capitaam da carabela san pedro o capitaam moor pedro alvares fes variadas buscas al honrado vasco de atayde pero em balde era como si el mar ouvese tragado embarcasaum y toda a tripulasaum segimos viaje em bora a marinage princ o dispenseiro qisese nov jugar me al mar decindo ser eu o culpado da fatalidade de vasco de atayde salvoo me ter cahido nas gracias do capitaam moor mas principalmente nas boas gracias de pero vaas o cual hiciera me secretario suyo iso qr decir q eu ya no hacia mas o traballo pesado do tombadillo o q me daba certas regalias como ua comida milhor aas veces partillaba tbm da mesa de pero vaas llegando a beber co ele uu copo de seu milhor vino


do ocurrido nos dias de marzo MD

supra certos ombres da eqipage da armada eh presiso dar conta aa vossa serenisima majestade pero principalmente aa gente da mia laia pois q estoo cercado de grandes nombres da navegasaum o primero a q mui afeisoee me eh frei gaspar monje franciscano mi confesor ombre culto a pesar da poca edade debe tener por volta de xx xxii anos eh uu dos religiosos preferidos de frei amriq de coimbra tbm franciscano y confesor dicem de d juan ii si no fose a suya intervesaum tbm a mi favor frente aa marinage q o teem em mui boa conta tenia eu virado comida dos monstruu marinos durante algun descuido noturno amtre os capitaaes tengo mui apreso per bertolomeo dias y seo ermaum diogo ambos de mui fama per haber dobrado o cabo da boa spransa amtes das tormentas versado em artes de mathematica y estremonia o intrepido bertolomeo parece traer dentro de si ua solombra q mas cedo o mas tarde leva ele aa morte pelo menos eu asi vejo a ele asi como veo ua gran sombra a pairar supra as cabezas de casi todos ombres da armada mas o q mas me causa apreesaum eh bartolomeo dias ombre digno de see jmitado eh o capitaam sancho de tovar da sota capitanea el rey y digno de pena eh nuno leo da cuña da anunciada visto de vies per toda a eqipage per estar a serviso de banqeros fiorentinos en busca do lucro ad vindo do trafego das espesiarias em bora todos estejaum em busca das riqesas mas ningun admite o meu protetor pero vaas eh hombre mui letrado tem per volta de l anos e participoo da batalla de toro als xxv anos de edade dice ele q fez de mi o seo grumete o q qr decir seg ele uu criado pera servir le o vino novas sobre o capitaam moor he dadas mas tarde q aora frei gaspar estaa a llamar me pera as rresas y as nubes ya encubreem a luna


do ocurrido a bordo

a vida a bordo da nao capitanea debe ser a misma das otras naos cuando o mar estaa calmo come he estado ateh o dia de hoj os viveres saum racionados y a cada marinero compete ua raçaum para a setimana de carne salgada de porco y pexe sardinas e sturjaum biscoutos agua y vino queso uevos allo cibolla uva pasa aas veces uuas frutas princ os figos casi sempre destinados al capitaam al escribaam y al piloto a marinage comprime se no conves aa ora de drumii cada uu a su turno sendo q os milhores logares saum os mas prosimos da proa onde esta se a coberto das vagas so o capitaam moor pedralvares y o escribaam pero vaas disponem de cabinas cada uu co a suya aas veces eh me permitido drumii no chao da cabina de pero vaas meu protetor em uua alcatifa o resto dos ombres acomoda se como milhor poode en acordo co a ordre y hierarqia sendo destinado ao bajo scalaum qr decir als grumetes os peores logares en general prosimos aa popa sin abrigo y al açote intenso das vagas na popa fica tbm o balde no cual os oficiais aliviam as tripas o cual eh prendido en uua corda grosa e eh arrastado per a agoa pera a limpesa aa marinage saum destinadas as asi llamadas jardineras en numero de duas as cuais jardineras encontraum se na proa uua de cada lado y q veem a ser uua taboa co dous buracos a onde sentaum se os ombres para alivar as tripas limpaum se eles co ua grosa corda desfilada en as pontas a cual estaa sempre limpa debido aa agoa do mar mui ombres da tripulasaum estaum ya asados per causo da agoa salgada en el cuu a vexiga alivia se na amurada emcuanto no estaa se traballando os mancebos cantaum supra a tierra as sodades da tierra das cachopas tocando as gaitas al mestre juan apras distraer a marinage co relatos de viaje y a orientasaum pelas estrelas als marineros apras oir a ele cuando no estaum entertidos co juegos de dados os cuais saum prohibidos mas als cuais hace vista grosa desde q os ombres no desentedaum se amtre eles debo decir q hemos gaiteros buenos amtre nos otros os da tripulasaum da san gabriel


do ocurrido als xxi de abril MD terza

a alegria dos marineros he sido mui grande ao avistar se botellos y rabos de asno mas q evidente synaes de terra prosima com cuanto nos otros hemos estado mas de i mez en meo aa agua salgada en desespero a pesar do tempo casi sempre calmo


do ocurrido als xxiii de abril ua qinta

avistoo se terra e eso causoo gran alvoroso amtre os ombres despois de tãta agoa mas de tempo casi sempre boo foi desido entaum uu batee pera ver q jente era aqela na praya de corpo nudo y pardo as prayas saum de mui vegetasaum abundante debo aqi dar parte q eu o grumete fernando seabra fue uu dos primeros a poner uu pies en tierra pois q estaba eu no batee tbm a mando do capitaam moor pero alvares aa mia frente somente nicolao coello esperiente navegador q no pode se entender co as gentes do logar mas o menos uus xx ombres todos nudos y de arcos y frexas aa uu synao de nicolao coello eles dejaram per terra as armas suyas nicolao coello dee a uu de eles a propia carapusa suya a cual he tirado da cabeza propia aa gisa de entendimento deram eles en troca um sombrero de penas de papagayo creo eu e uu cordaum de aljojas menudas nada ni ningun consegia entender a eles e creo q ni eles aa jente permanecemos amtre esa jente ateh perto da noute debo a crecentar q co alguna aprensaum posto q saum ombres mui bien costituidos y q facil hariam de nos otros prisioneros no dia seg alevantoo se uu vento qente prenuucio de temporal o q obrigoo a armada aa buscar abrigo milhor perto de uu rio en uu porto mas seguro


do ocurrido na sesta, dia xxiv de abril

dous desa jente de piel parda foraum trahidos a bordo da nao capitanea so ordre do capitaam moor pedro alvares eraum jentis en jestos e taum jnocemtes q asustaraum se aa vista de uua galiña o capitaam moor tentoo co eles entender se a traves de jestos de balde tentou se tbm falar co eles en latim mas nada ni ninguno poude a eles entender al quedar a tarde cual infantes deitaraum se e drumiraum no conves al q o capitaam moor mandoo a eles cubrir posto q as vergonzas estabaum aa mostra e eso causaba vergonza a nos otros ombres acostumbrados aas vestes a pesar do calor o capitaam trayaba veludo en cuanto a marinage traballava de pecho nudo e pies descalzos debo aqi decir tbm q esa jente das novas terras parece a mi tan atraente cuanto uua busula qedei a admirar a eles por mui tempo o soño calmo y profundo no dia seg foraum levados de volta aa tierra a onde pera mi pasmo estabaum mas de uua multitude de ombres amtre eles iv moças de vergonzas aa mostra as cuais todos os nosos ombres admiravaum se de ollar y a elas no causaba vergonza oo mostrar as propias vergonzas de no poder se despregar os ollos das vergonzas suyas y ni mismo o escribaam pero vaas de camjnha meu protetor o cual asombroo se como a nos otros os da marinage de he sido çaradas uua de elas llamava a atensaum de meos ollos per ser mui bonita de cabelos neros lusidios y longos q deciaum aa espadoas debo aqi decir q voltee contra mi vontad aa nao capitanea per ordre de pero vaas y q mismo al degredado affonso ribeyro no foi permitido o pernoute per ordre do capitaam amtre aqela jente q trove affonso ribeyro de volta aa praya de volta aa nao no he podido drumir co a vista tomada da belesa das jentes da terra nova de piel ora bermeja ora cor de bronço faz esa jente mui gosto en cascavees co as cuais saum fartamente presentados per aqeles q vaum aa terra pera saber do oro y da plata q supoeemse haber mas por a dentro a pesar de eles no usar ni oro ni plata como adorno uus seos principales enfeites saum as penas das aves variadas y desconocidas para nos otros s q somente as dos papagaios conocemos de vaiados tamaños minores y maoores q uua galiña eles teem as penas das aves como ua grande riquesa creo q o seo adorno principal eh uu oso de animal q enfiaum no beço inferior o cual atravesa o beço todo no impedindo eles de falar co desevoltura as mulleres no trahem adornos someente pocas pitturas en uuas partes do corpo e ni en todo ele somente en partes mas mui ombres tenem o corpo todo pittado


do ocurrido als xxvi de abril MD domingo pascoale y seg

o mui chatholico capitaam moor pedro alvares ordenoo q todos os ombres asistaum misa en uu ilheo oficiada per frei amriq supra o achamento de esa terra todos os ombres lah estabaum oindo a plegasaum co devosaum en cuanto a jente da terra follgaba na praya a gente do logar eh amigaveo y a mim parece a visaum do paradiso co as vergonzas aa mostra y sin pecado hacem eles qestaum de ofrecer a nos otros suus bens mas preciosos como penas coloridas de aves conxas mui blancas pedras coloridas y frutas de sapores q jamas teniaum nos otros probado en todo jmitaum a nos otros y algun de nos otros imitaum a eles tbm princ cuanndo hacem asuada o q no eh do agrado do capitaam pedralvares vosa altesa creo eu haria gosto en veer os ombres de vosa marinage co uus corpos tbm pittados de bermejo y prto a folgar amtre esa gente a algunos dos vosos marineros eh concedido pelos capitaams premanecer en tierra amtre eles o q eles no permitem no see pq mas al anoutecer hemos sido levados de volta aa praya y obligados a drumir en nosas naos asy paso os meos dias amtre a jente da terra en compania de otro grumete da nao trindade llamado simeao o hidalgo pero vaas esta a escrepuer ua longa carta destinada al noso serenisimo rey d manuel i a cual ha de seer levada per gaspar de lemos co mandante da naveta supra o capitaam pedro alvares tengo intensaum de escrepuer algo nos dias prosimos posto q a pesar de mui serio y de pocas palabras somente as necesarias eh do meo agrado a ele haa de hacer se justisa por no creer q reste me mas tempo pois mi fuga ya esta planeada yunto co simeao da trindade debo entaum decir q o capitaam moor eh ombre de pricipios todos dependem de ele pois a todos he oido sempre avalia as palabras dos capitaaems suyos co dignidad y interese asi debo acresentar q o honrado capitaam moor desa armada pedro alvares eh digno representante de vosa altesa d manuel i debo aynda aqi decir q peso perdaum pela imprecisaum de alguuas datas a pesar de pero vaas ter a mi dado a honra de seer o responsavel por a marcaçaum do tempo no reloj de arena desa nao o cual encontra se na cabina de ele peso aa vosa altesa q lebe en cõta a poca edade deste seervo suyo o grumete fernando seabra creo q a mestre juan ombre entendido en estrellas hee mas açertada esa atribuisaum do q a moço encantado co as belesas da terra


do ocurrido nos findos dias de abril o no primero dia de mayo MD

foi ergida en sitio determinado por o capitaam ua gran cruz de madera a cual coontoo alem da forza de vosos marineros co a forza dos ombres da terra para seer ergida amtre nosos ombres habia a jente da terra pera asistir a misa desa sesta amtre eles ua unica muller q asi como las otras vistas na praya tbm trahia nuda a vergonza bertolomeo dias ordenoo a u dos marineros q dese uu pano para ela cobrir se o q no foi de valia pois al sentar se a vergonza suya ficaba aa mostra e diso ela no daba cõta debo aqi dar parte a el rey q eu asi como mui otros marineros no he podido tirar os ollos de supra esa muller y da vergonza suya al confesar mi pecado al frei gaspar ese piedoso ombre no mostroo se sorprendido co mi atitude aseverando q a inocensia eh um atributo do paradiso o cual nosotros perdemos y jamas ha de seer conqistado posto q ya hemos nacido co pecado original por qq acontecimento esa gente teem por costumbre cantar ua algarauja mui parecida co as aves a eles parece me no agrada o soo das nosas gaytas asi como o gosto do noso vino o cual cuspem eles logo fora co repuusa eh esa jente de tamaña jnocemsia q a mi apraz viver amtre eles ateh o ultimo de meos dias en esa isla de vera cruz per obra e gracia de noso sñor jesus xto