quarta-feira, 24 de junho de 2015

DR. WELLINGTON



Edson Negromonte

Essa é do tempo em que o trem era o principal meio de transporte da grande maioria dos habitantes do País. Para os pobres havia a classe econômica e, para os ricos, os vagões especiais da primeira classe, com grande luxo e conforto; enquanto os pobres viajavam em bancos de madeira, no toco-duro, como se dizia então. Mesmo na estação, a diferença de classes sociais era nítida, não só pelas vestimentas, mas principalmente pelo movimento daqueles que iam embarcar: enquanto os pobres se acotovelavam, falavam alto, puxavam as orelhas das crianças, os ricos mantinham-se à parte, falando baixo, rindo baixo e olhando por baixo de suas lentes, com desdém e reprovação, para os seus “irmãos” desfavorecidos pela sorte. Mas quanta vida naquele ajuntamento de gente pobre que nem bem o trem chegava, já ia se despedindo dos parentes, cheios de recomendações. No meio dessa gente simples, sem grandes aspirações, o cotidiano já era um fardo sobremaneira pesado, é que doutor Wellington sentia-se satisfeito, participando das conversas, mais escutando que falando, estar com o populacho lhe fazia feliz. Deliciava-se com essa gente pequena, de sonhos pequenos; gente miúda, capaz de gestos os mais nobres, mas também de pequenezas as mais sórdidas. Dr. Wellington nunca fizera questão de enriquecer com a medicina, e bem que poderia, como todos os seus colegas tinham feito. Não via torpeza nisso, mas não era essa a sua índole. Era, ali, em meio ao bodum dos homens e do talco Palmolive das mulheres que ele podia fumar tranquilamente o seu cigarrinho de palha, sem a recriminação dos olfatos sensíveis. Junto com o bom médico, em visita à capital, ia sua esposa Cinira: alma boa, benfeitora dos pobres, a companheira ideal daquele homem que levava o juramento de Hipócrates ao pé da letra. Junto à arraia-miúda é que sentiam-se em casa.

Dr. Wellington era pequeno, de baixa estatura, os cabelos brancos, revoltos, nariz aquilino, um tipo franzino, gostava de contar casos, que dizia verídicos, tendo como ponto final uma espécie de grasnado, à guisa de risada, arrematado por um curto acesso de tosse. Seu amor pela medicina, aliás, pelos doentes e a consequente cura, não o fizera rico, mas também não se podia dizer que vivesse mal, bastava-lhe o necessário a uma vida honesta e prazenteira. Quando o homem é capaz de ir abrindo mão, ao longo da vida, dos supérfluos que a sociedade de consumo inventa para lhe aprisionar cada vez mais, ele sabe que está no caminho certo para a felicidade. Não tinha nenhum apreço em subir a serra de automóvel (não que tivesse um, mas sempre havia quem lhe oferecesse carona), gostava mesmo era de ir de trem, onde desfrutava da companhia daquele a quem se dedicava de corpo e alma: o homem do povo, essa abstração para os intelectuais de gabinete, mas não para ele. Para ele, o homem do povo era tangível, palpável, uma realidade indiscutível. Dr. Wellington era clínico-geral, toda a população de Torres do Pilar o queria bem. À sua passagem, o saudavam: Doutor! Doutor! Dava com a mão, sorrindo, e seguia caminho, com a inseparável maleta preta.

A viagem transcorria dentro da normalidade, os solavancos habituais, os vagões jogando de lá e para cá, de cá para lá, alternada e harmonicamente, como em um jogo infantil, puxados pela maria-fumaça, que ia resfolegando serra acima, o apito soando estrepitoso a cada curva, ostentoso a cada estação... Foi, então, que, na estação de Pedro Torres, entrou uma senhora com os bofes virados, ralhando e levando pelo braço um piá de aproximadamente cinco anos. Mas o que realmente chamava atenção não era o mau humor da mulher, que gente azeda tem em todo lugar, a qualquer hora do dia ou da noite, era mesmo a cabeça do menino, toda envolta em gaze. Era gaze sobre gaze, camada sobre camada, sem uma brecha sequer, por menor que fosse, que deixasse adivinhar a cor do cabelo da criatura. As crianças têm, por natureza, a cabeça grande em relação ao corpo, mas a daquele menino era enorme, descomunal. E a gaze, branca, só fazia torná-lo quase uma aberração; a mãe, preocupada em não chamar atenção para o defeito da criança, acabara transformando o filho em uma atração circense, um projeto de múmia, uma espécie de homem-elefante. O que mais constrangia as pessoas era um calombo do lado direito da cabeça do menino, um único e protuberante calombo qual se projetava como um bulbo, o tubérculo de uma batata inglesa. Podia-se perceber dó e curiosidade, um misto de culpa cristã, nas faces dos passageiros comovidos. Apesar disso, de todo sofrimento, o menino era de uma vivacidade a toda prova: os olhos dele não tinham parada. Ao lado da mãe, seguro pelo braço, permanecia quieto, a contragosto, com o ombro erguido e parecia que, a qualquer momento, saltaria inopinadamente para o corredor, como um boneco de engonço. As sardas, os lábios com um inexplicável ar de zombaria, os irrequietos olhos azuis eram a comprovação de que as crianças, por mais doentes ou defeituosas que sejam, estão sempre dispostas à vida. Nelas, graças a Deus, a energia vital se manifesta em toda plenitude. As crianças doentes transbordam essa energia, sensibilizando os que estão à sua volta, arrancando sorrisos comovidos. Nem o mais sisudo dos homens é capaz de não se comover com essa manifestação da natureza, sorrindo-lhe com os olhos, por cima do jornal. Aos poucos, as pessoas foram se acostumando com a presença do cabeçudo, o pequeno monstrinho já não era mais novidade; uns aproveitavam para retomar a leitura de um livro, outros admiravam a paisagem, mas a grande maioria aproveitava para cochilar, embalada pelo balanço da composição.

Quando menos se esperava, num solavanco do trem, o menino, de um pulo, qual mico de circo, liberta-se das garras da mãe. A mulher, desatinada, berra:

– Volte já aqui, moleque do Capeta!

O menino corre de uma ponta a outra do vagão, equilibrando como um malabarista a tremenda cabeçorra.

– Volte aqui, inferno! – brada a mãe.

E o menino nem aí. Puxa as tranças de uma mocinha, com uniforme de normalista, rouba o cachimbo de um senhor e tira umas baforadas antes de arremessá-lo de volta no colo do dono, imita galo cantando, galinha cacarejando, cachorro ganindo, o que de imediato causa risos em todos, coisa que irrita ainda mais a sua mãe. A mulher, desesperada, sai no encalço do filho, que agora pula de banco em banco, macaqueando e fazendo fusquinha para ela, mostrando a língua, até que o bagunceiro, num passo em falso, escorrega e cai no meio de dois bancos, virados de frente um para o outro. Ela, aproveitando-se desse momento, agarra-o pelo bracinho. A primeira coisa que a desalmada faz é desferir, com toda a força de que é capaz, um croque certeiro na cabeça da criança, que cambaleia. O barulho choco faz estremecer os presentes. Não satisfeita com o primeiro golpe, possuída, desfere outro, e outro, e mais outro, sendo que este último acerta justamente a protuberância da cabeça da criança. Com cara de grande dor física, a mulher leva-o pelo braço, sob uma avalanche de croques e socos, todos indefectivelmente na cabeça, certeiros. O menino tonteia, cambaleia, oscila, balança, em evidente desequilíbrio, mas mesmo assim ri e faz caretas para a mãe. Botando a língua pra fora, ele imita sons de peido. A pobre criança parece sentir satisfação nisso, sorri a cada pancada.

– Ainda faz pernacchia, cachorro? – Toma. – Não saia mais daqui, senão eu te mato! – ameaça a mulher, arfante e chorosa, indiferente ao que pensassem dela.

Indignadas, as pessoas comentam entre si a tamanha violência a que tinham sido expostas, um teatro dos horrores.

– Na cabeça!
– Seja, na cabeça...
– Tadinho!

O menino ergue os olhos para a mãe, e sorri.

– Atentado, quer apanhar mais?

Então, Dr. Wellington, autoeleito o porta-voz da indignação dos passageiros, levanta-se.

– Minha senhora, como médico que sou, peço-lhe que não bata mais na cabeça dessa criança. Bata em qualquer outro lugar, na bunda... mas na cabeça, jamais. Nem em crianças sãs, deve-se bater na cabeça, aí estão os...
– Ah, o senhor está com pena dele, é? Deveria sentir pena é de mim! De mim, que aguento esse peste todos os dias!
– Minha senhora...

A mulher, botando fogo pelas ventas, começa a desenrolar a cabeça do filho.

– O que ela está fazendo?! – pergunta-se, curiosa, a plateia, perdão, os passageiros.
– Olhem, olhem bem, essa é a cabeça inchada, a cabeça deformada da pobre criança! Estão vendo, vejam bem, a cabeça dele está é entalada num penico. Ele tava pulando na cama e caiu de cabeça no penico. Ele não me dá um minuto de sossego. E eu é levando esse encapetado no hospital... Não fica quieto nem com um penico grudado na cabeça. O senhor acha que uma mãe merece isso? Peste! Peste, peste...

sexta-feira, 12 de junho de 2015

GUARDADOR DE NINHARIAS


Edson Negromonte


Poderia dizer que sou um colecionador de ninharias, mas seria uma inverdade. Colecionar exige ordem, coisa que não faço questão nenhuma de ter. Colecionar exige álbuns, pinças, luvas etc., um aparato. O que faço poderia até ser chamado de amealhar, mas amealhar implica acúmulo, o simples acúmulo, juntar por juntar... E o pior, amealhar dá ideia de ganância. Não é bem esse o meu caso. Talvez guardador, sim, “guardador de ninharias” seja mais adequado àquilo que faço, além da expressão exalar um aroma suave de poesia, o que me agrada muitíssimo: fragrância de rosas, sim, de rosa musgosa da Índia. Não sou um guardador compulsivo, não guardo ninharia qualquer, assim como guardar por guardar, sem discernimento. A grande parte das minhas ninharias é literária, mas não só literárias, mas principalmente aquelas que os livros encerram em suas páginas (isto foi o que eu quis dizer com “ninharias literárias”), já que sou um leitor contumaz, mas essas ninharias também podem vir de histórias em quadrinhos, de letras de música e de diálogos de filmes, o que implica quase sempre literatura. As minhas ninharias são aquelas que, durante a “leitura”, fazem-me parar e pensar, encantado com a descoberta, assim como quem encontra uma gema preciosa no criado-mudo da velha tia, cuja descoberta e consequente apropriação indébita o leva a se alistar na Legião Estrangeira, onde ninguém jamais o encontrará, a não ser um outro leitor. Ou um certo tipo de ninharia que fica à espera, durante anos, escondida na esquina de um parágrafo, pronta a lhe pregar um susto. Não, não se ganha dinheiro, não se faz a América com isso; o único prêmio dos guardadores é que eles se mantêm conscientes disso. De quê? Ora, do equilíbrio do Universo. É justamente por causa deles, dos guardadores de ninharias, que os astros mantêm as rotas sem colidir uns com os outros, na nem tão imensa assim abóboda celeste. É justamente por isso que a Lua não cai na cabeça dos namorados, que trocam juras eternas de amor e, no momento seguinte, se hostilizam. Mas as juras, independentes dos casais, permanecerão para sempre eternas. E é justamente por isso, por causa desses guardadores de ninharias, que as crianças sabem que se apontarem para a Lua, crescerá uma verruga na ponta do dedo. E elas apontam mesmo assim, só pra se certificarem de que as verrugas, um dia ou outro, quando necessárias, brotarão compassivas quando elas estiverem se sentindo sozinhas com a separação dos pais. Esta é uma ninharia da infância, de grande magnitude.

Talvez seja melhor exemplificar para melhor compreensão porque exige um estado muito próximo da poesia. Durante a leitura de “Sobre Heróis e Tumbas”, de Ernesto Sábato, lá pela página 168, o autor descreve as impressões do personagem, talvez as suas próprias impressões, quem há de saber, sobre um encontro casual com o grande escritor argentino, seu conterrâneo, Jorge Luis Borges, o qual ele trata somente por Borges, mas que não deixa dúvida sobre a sua identidade: “... o cumprimentou. Martín deparou com uma mão pequena, quase sem ossos nem energia”. Isto é uma indubitável ninharia, já que Borges não faz mais nenhuma outra aparição em todo o restante do livro. Esta ninharia é o gatilho de uma pistola de raios laser, a qual dá origem a um devaneio, e o leitor passa, então, a divagar por galáxias jamais intuídas, sente-se apertando a mão pequena e flácida, e branca e mole como requeijão, do velho brujo. As mãos do leitor transformam-se imediatamente em gigantescas manoplas que encerram a mão já agora minúscula do seu amado Borges, uma espécie de comunhão cósmica. Então, o Guardador de Ninharias compreende que nada está morto, que nada mais estará morto e que, aliás, nada nunca esteve morto. E eu pensei em dizer isso para você há tanto tempo, mas não tinha tido coragem, pelo medo de soar ridiculamente sentimental: você é tão linda que os peixinhos do mar vêm até a beira só pra te ver passar.

Outro bom exemplo de uma preciosa ninharia: a série de TV favorita do grande pintor surrealista René Magritte era “Bonanza”. Como saber disso e não perceber uma espécie de revelação, um satori estético, o choque elétrico de uma enguia, que percorre a espinha e o leva a imaginar o grande inventor de situações impossíveis refestelado em uma poltrona, deliciando-se com as aventuras da família Cartwright, vibrando com a bela abertura que mostrava cada um dos quatro cavaleiros surgindo sobre o mapa da fazenda Ponderosa. Daí, o guardador é transportado pela máquina do tempo de volta à infância. Só que, desta vez, é acrescentado um dado novo às suas memórias: ele agora está irmanado, para sempre, com Magritte, através de uma prosaica série de faroeste. Este é um dado de suprema importância para mim, mas para você pode não dizer nada e, com certeza, não dirá mesmo. Não adianta forçar a barra. Não que sejam experiências egoísticas, mas são experiências solitárias, únicas, intransferíveis, mormente quando os dois, tanto Magritte quanto este guardador, descobrem que ambos têm uma verruga na ponta do dedo. Por isso, a estreita passagem para a sensibilização em relação às ninharias é e deve ser cultivada, como um jardim de dois dias de extensão.

”Quando Robert Louis Stevenson morreu, sua governanta escocesa, de espírito discretamente comercial, começou a vender cabelo, que alegava ter cortado da cabeça do escritor quarenta anos antes”. Esta insignificância está em “O Papagaio de Flaubert”, de Julian Barnes, e expressa muito bem o que pode vir a ser uma ninharia, muito embora o valor dessas pedrinhas preciosas varie de leitor para leitor. O que me transporta para paisagens as mais insuspeitadas pode não significar nada para você. A delícia desse jogo, no qual não há vencido nem vencedor e ao qual se dedica a vida toda, é que não há meio-termo, um guardador de ninharias nunca joga pela metade, ele está inteiro na quadra, embora não demonstre nem para si mesmo a expectativa de deparar com uma ninharia que o estremeça como, com certeza, o estremeceria, ou não?, ou seja, ver alguém em uma estação de metrô, na plataforma, sorrindo, acenando para você, com quem você sequer marcou um encontro, por mais fortuito que fosse. E você seguirá pela vida sem duvidar de que aquela pessoa na estação do metrô lhe ofereceria a última mecha existente do cabelo de Stevenson. Daí, então,dando sequência à brincadeira, virá à mente uma outra ninharia, uma das suas máximas prediletas, resgatada do filme “Motoqueiro Fantasma”: ”Sorte é o nome do meu cachorro, ele é caolho e não tem saco!”

quarta-feira, 3 de junho de 2015

NA TAVERNA DA VELHA HAQUB 2 ou AS DUAS CRIANÇAS


Edson Negromonte

Quem via a velha Haqub, como a chamava toda a gente, como toda a gente passou a chamá-la de um tempo em diante, desgrenhada, rabugenta, por trás do balcão daquele lugar imundo, que nos acostumamos a chamar de taverna, disputando com os fregueses o título de “a boca mais suja do inferno”, é incapaz de imaginar a beldade que era, quando jovem. O que sempre me atraiu nela, além da beleza e do sexo fácil (mediante uma contribuição em moeda sonante, é claro, todo mundo precisa, de uma maneira ou outra, sobreviver), era a sua independência. Sempre tive um fraco por mulheres fortes, mulheres com voz de comando, de queixo proeminente, olhos duros, e Haqub, durante um bom tempo, significou isso tudo para mim, isto é, o porto seguro para o jovem grumete. Portanto, é meu dever contar uma passagem da história de nossa aldeia, a meu ver uma das mais inspiradoras, em que a jovem Haqub teve papel importante, considerado por mim um dos acontecimentos mais significativos dos anais de Dw Revhs. E tal história merece ser contada, se não pelo que ela carrega de ensinamentos para a vida, para os libertários do porvir, mas para enaltecer e registrar a importância dessa mulher, responsável pelos melhores momentos da minha juventude, carnais e espirituais. E de outros jovens, e mesmo de homens casados, eu bem o sei. E contrariando as leis naturais (e quem conhece realmente os meandros dessas leis?), depois que meus contemporâneos se foram, eu ainda estou vivo, no único intuito de registrar as passagens do meu povo, como um legado, para as novas gerações; um povo que não conhece e cultiva a própria história, está fadado ao engodo, e consequentemente a morder o anzol dos erros de seus antepassados. Portanto, dou aqui continuidade à minha missão.

Quando as duas crianças surgiram na aldeia era uma daquelas manhãs geladas que há muito tempo não fazem mais, emolduradas pelas emanações miasmáticas dos pântanos ao redor. Não se tinha a mínima ideia de onde vinham os dois pequenos, abraçados, isto é, agarrados um ao outro, enrolados em um cobertor, se é que se pode chamar de coberta aquele trapo todo esburacado, incapaz de conter a ferocidade da umidade matinal da região. A gente da aldeia, num misto de piedade e superstição, não se aproximava deles, ficava olhando-os a distância, penalizada, como se fossem a encarnação de uma maldição tão antiga que já houvéssemos esquecido e que só agora, diante daquelas duas almas inocentes, entregues à própria sorte, ou azar, voltasse à nossa memória. Enquanto isso, as duas pequenas criaturas, uma loira, a outra morena, tentavam escapar da nossa curiosidade, essa loba feroz e esfaimada, capaz de arreganhar os dentes ao cordeiro indefeso, fechando com força os olhos remelentos.

Nenhum de nós dava um passo em direção às crianças, nem lhes dizia uma palavra. Resmungávamos, somente resmungávamos, muito mais temerosos que condoídos ante a infância ultrajada. Elas, as crianças, por sua vez, apertavam-se cada vez mais, naquele abraço estreito, que era a única arma que possuíam contra o desconhecido. Contra os desconhecidos. Até que Haqub, que ainda não era velha, portanto ainda não se tornara conhecida como a velha Haqub (e diga-se, a bem da verdade, à qual não posso faltar, ela era bem fornida de carnes e de uma beleza que lhe garantia o próprio sustento, e a seus pais também, é forçoso dizer), bem, até que a bela Haqub foi aproximando-se deles e lhes abriu o sorriso mais cândido, mais doce, mais maternal, até sensual, já visto em face humana. (Oh, qualquer homem seria passível de cometer uma loucura diante de um sorriso desses). Mas os pequenos não corresponderam, pelo contrário, abraçaram-se ainda mais forte, quase desaparecendo suas cabecinhas em meio aos corpos um do outro. Haqub, confiando em seus instintos femininos, passou primeiramente a mão na cabeça do menino loiro, o qual estremeceu, assustado. Depois, ela acariciou os cabelos negros do outro menino, que devolveu-lhe o gesto com um rosnado, olhando-a com olhos vermelhos, raivoso, em defesa do irmão e de si mesmo. Haqub (como era inteligente essa mulher!) estendeu-lhes, então, as costas da mão, para que as duas crianças a cheirassem e entendessem que ela não lhes faria mal, como se costumava fazer com os sofridos lobos, mas isso há muito tempo, quando os homens ainda não tinham empedernido totalmente seus corações.

Enquanto isso, permanecíamos todos ali parados, formando um semicírculo, como se assistíssemos a uma improvisada peça teatral, da qual éramos, ao mesmo tempo, público e personagens.

– O de cabelo preto parece o mais velho...
– É, sim, é o que defende o outro!
– São dois meninos, é? De onde será que vieram?
– Do céu é que não foi!
– Vai ver foram deixados aqui por esses zÍgans desalmados... Vejam, a louca da Haqub os está abraçando!

Durante a nossa confabulação, Haqub os trouxera de encontro aos seus seios fartos e róseos, e sempre acolhedores, como devem ser os seios da Grande Mãe: fartos e róseos e acolhedores. Além do mais, os de Haqub eram perfumados, os únicos seios perfumados de toda a aldeia. Eu bem o sei, guardo ainda hoje comigo, em minhas narinas, na memória de minhas células, o cheiro adocicado dos seios da Haqub, a minha Haqub. Ficaram tempo, um longo tempo nesse abraço, o abraço estreito, terrenal, que, com certeza, a natureza acolhe os seus filhos degredados. A multidão, se é que o ajuntamento dos habitantes da nossa aldeia podia ser chamado assim, de multidão, parecia embevecida com cena tão comovente; “a galinha e seus pintinhos”, sussurrou maldosamente um de nós. Estávamos realmente tocados (eu mais que todos), com tudo isso acontecendo já assim pelo início da manhã, quando nos preparávamos para mais um dia ordinário de trabalho na lavoura ou nas forjas. Em nossa aldeia era assim: quem não trabalhava no campo, fabricava ferramentas para a agricultura. (Muito tempo depois, é que descobrimos como forjar as melhores espadas e isso foi o início da nossa ruína). Portanto, quando algo nos tirava da rotina, era sempre bem-vindo.

– Eu bem ouvi essa madrugada o rodar de carroças pela estrada próxima do pântano de Tzarevhs.
– Ora, e como é que eu que moro mais próximo do pântano, não ouvi nada?
– E como querias ouvir algo além dos teus próprios roncos, se eu os escuto de minha casa?

Foi, então, que Haqub ergueu-se do degrau da fonte central (Para que dizer “fonte central” se era a única que havia na aldeia?), onde estivera ajoelhada, abraçada às duas crianças. Uma delas, estava envolta em seu xale, e a outra enrolada em seu casaco de lã. Já não tremiam tanto os dois pequerruchos (eu sempre quis, perdão, como cronista oficial das terras de Dw Revhs usar esta palavra e não poderia perder a ocasião). E nem mesmo a Haqub tremia, embora estivesse com os ombros desnudos (Ah, essa Haqub levava os meus versos e as minhas economias!).

– Essas duas crianças foram abandonadas em nossa aldeia, em nossas portas, e precisam de um lar! – exclamou a Haqub.

Entreolhamo-nos, balançando as cabeças. Negativamente, é óbvio. Se a vida já estava difícil com o pouco que tínhamos, imagine sustentar mais duas bocas? E todo mundo sabe o quanto uma criança come, imagine duas. Essas crianças cresceriam e se tornariam ainda mais famintas, todos sabem, e se não sabem, deveriam saber, que criança em fase de crescimento, come muito mais que dois adultos. E se nos compadecêssemos, logo, nessa batida, os zígans estariam desovando todas as suas crias às nossas portas, sem mais nem por quê. Após um tempo de falação inócua, que a nada de concreto levou, a indignada Haqub declarou que ela, então, cuidaria dos meninos.

– Tu, logo tu!...
– Por que logo eu?
– Ah, não te faças de tonta! Não tens moral nem para criar a ti mesma! O que seria desses meninos com uma mãe que vende o corpo?
– O quê?!
– É isso mesmo, todos aqui concordam comigo: a serem criados por uma perdida, é melhor que apodreçam no pântano!

A discussão entre Haqub e as mulheres da aldeia prolongou-se por um bom tempo, até que foi, finalmente, para alívio de todos, principalmente meu (a minha terna Haqub tinha sido insultada pelas palavras mais vis que podem ser proferidas a um ser humano), convocado o Conselho dos Anciãos, formado pelos doze homens mais velhos da aldeia, não os mais sábios, evidentemente. Eu disse os doze mais velhos, o que nem sempre significa “sabedoria”. Há tanto tempo o Conselho não se reunia que somente sete dos doze participantes foram encontrados; quatro haviam morrido, o quinto desaparecera. Eu bem disse que não acontecia nada em nossa aldeia que nos tirasse da modorra, e esse desfalque do Conselho, sem que ninguém desse por isso, é um bom exemplo do nosso cotidiano. Então, os sete anciões restantes resolveram julgar a questão mesmo em número inferior ao tradicional, antes que morresse ou desaparecesse mais um deles. Apesar de tudo, de toda a insensibilidade atribuída aos anciões do Conselho, eles se mostraram genuinamente preocupados com a sorte dos dois pequenos filhotes de zíngans. Não que não houvesse aldeões interessados em fazer parte do Conselho, mas é que as exigências para tal eram tantas que o candidato bem poderia morrer durante as provas. E, daí, teria que ser feita nova convocação, e não mais para cinco, mas agora para seis anciões. E, de mais a mais, me desculpem, esse Conselho mais parecia um blefe, pois não entendíamos nada do que os anciões tartamudeavam. E, éramos então obrigados a interpretar seu palavreado ininteligível, trêmulo, balbuciante.

Pelo bem geral (nesse tempo, antes da invasão dos iardaranos, ainda pensávamos no bem de todos os habitantes da aldeia), achamos melhor, seguindo a orientação do Conselho, decidir logo o destino dos dois meninos abandonados. Sim, já era ponto pacífico, assim tinha decidido o tão perigoso senso comum, com a aquiescência dos anciões, que os dois tinham sido abandonados. Sim, entregues aos nossos cuidados pelos zíngans. Logo, dois passos tinham sido dados: um bom exemplo do que a boa vontade dos cidadãos é capaz. O Conselho dos Anciãos, corroborando a opinião das mulheres, decidiu primeiramente que “os dois não podiam ficar”, sob hipótese nenhuma, “aos cuidados da Haqub”. Restava decidir, então, quem iria adotar os dois irmãos ou a quais famílias seriam eles destinados, mesmo que a simples ideia de separação daquelas duas criaturas nos compungisse o coração. (Desculpe, mas “compungir” é outra palavra que eu não posso perder a oportunidade de usar). No final da tarde, os velhos do Conselho, sonolentos, mais pra lá que pra cá, sem solução aparente para tão difícil caso, resolveram subitamente que as crianças seriam entregues aos cuidados da Mãe Terra, e que o pântano de Tzarevhs seria a sua morada, ou o pântano que bem lhes aprouvesse, já que “todos os pântanos pertencem à Mãe Terra, a provedora de todos os homens de bem”, segundo as palavras do mais velho de todos os anciões do Conselho, o encarquilhado Lemamel, e que se lhes fosse facultada a vida, apesar da sua origem, eles certamente sobreviveriam a todas as intempéries e necessidades, já que estariam sob a proteção da mãe comum a todos os homens de bem. E dando por encerrada tão legítima questão, afastaram-se todos para as suas casas, com a consciência tranquila de quem dera o mais piedoso dos vereditos.

A noite fria, com seu manto negro, salpicado de estrelas, havia descido sobre a aldeia. Na fonte, que jorrava incessantemente dia e noite, indiferente às querelas dos homens, provendo tanto os bons quanto os maus, permaneciam somente as duas crianças e a robusta Haqub. E, quando já não havia mais ninguém para recriminá-la, para tolher os seus passos, a esperta Haqub deu a mão aos dois meninos e silenciosamente os conduziu não ao pântano, mas à sua casa, a mais humilde das casas da aldeia, a bem dizer uma choupana, mas muito mais bela que a casa destinada ao mais velho ancião do Conselho dos Anciãos. Serviu-lhes, então, uma sopa de raízes, fumegante. E “somente as sopas fumegantes são capazes de aquecer a alma”. (Na verdade, este axioma é de minha lavra, mas botei-o entre aspas para lhe dar alguma credibilidade). Colocou-os, depois, para dormir na cama de casal que herdara dos pais, enrolados nas cobertas, nas suas roupas de frio e, sem cerimônia, beijou-os, como sua mãe fazia.

Enquanto os pequenos dormiam a sono solto, na quietude da noite, uma Haqub insone bordava diligentemente um pano. Foi assim que, pela manhã, surgiu um estandarte, fincado no centro da aldeia, em frente à fonte, como os seguintes dizeres:

PALAVRAS DA GRANDE MÃE - Estes meninos são meus protegidos, são eles HUND e ZÓS, são para os homens a NOITE e o DIA, se algo de ruim lhes acontecer, acontecerá também a mim, a MÃE TERRA. Cuidem deles como se cuidassem de mim, a MÃE QUE TUDO PROVÊ. À Haqub, e somente a ela, será dado o nome de MÃE DE HUND E ZÓS, a Mãe da Noite e do Dia, ou do Dia e da Noite.

Assim, sob a proteção da Grande Mãe, os dois meninos cresceram fortes, como os frutos mais belos e saudáveis da Natureza, e não se separavam jamais, pois o dia sempre traz dentro de si a escuridão, e a noite, consequentemente, traz em seu bojo o alvorecer. E esta deveria ter sido a nossa lição... Quando completaram quatorze anos de existência em nossa aldeia, à instância de Haqub, obediente aos infalíveis instintos femininos, que lhe alertavam da grande desgraça que se abateria sobre a nossa gente, eles foram levados, transportados pela magia de uma caravana, formada de artistas e magos e músicos, que atravessava a aldeia. Nas laterais dos carroções, lia-se TRUPE DAS SOMBRAS LONGAS. Haqub compreendia muito bem a necessidade que os homens têm de bodes expiatórios. Alguns anos depois, Haqub segredou-me que entendeu premonitoriamente a desgraça que se abateria sobre a população, a qual seria creditada a Hund e Zós, quando, ao esfregar as suas costas, no banho, percebeu neles o surgimento de escamas douradas.

E assim o inverno mais tenebroso teve início em Dw Revhs. E, com ele, o início da nossa lenta ruína. Foi nesse tempo também que aprendemos a usar o aço para fabricar espadas, e não mais ferramentas agrícolas.