sexta-feira, 31 de julho de 2015

EXCERTO DA VIDA DE UM PINTOR CUJO NOME NÃO MAIS INTERESSA


Edson Negromonte

Parecia um bando circense, aquela gente. Não que houvesse, entre eles, deformidades, os inevitáveis freaks, o que evidentemente chama atenção e faz que os associemos à trupe de um circo mambembe, desses que perambulam pelas cidadezinhas do interior. Mais porque aquela gente vestia-se com várias cores, esmeravam-se nas combinações, pareciam saídos do guarda-roupa de um teatro, mesmo o irmão mais velho, o qual era o responsável pela família, depois que o pai foi internado em um asilo, como insano, após atear fogo a um exemplar de O Tico-tico, autografado por Ruy Barbosa, por ordem direta do general-presidente Garrastazu, fã do Águia de Haia. A mãe das crianças era catatônica; as meninas da família eram as encarregadas de vesti-la e lhe dar banho todos os dias. Depois do asseio matinal, a mulher era colocada em frente à TV, permanecendo horas a fio exposta à programação da Globo. Fazia as necessidades ali mesmo, na poltrona, o que emprestava um cheiro nauseabundo de urina fermentada a todo o terceiro andar.

Apesar disso, era uma gente agradável. Pelo menos, para mim. Desde que a minha família mudou-se para o sobrado, depois que papai perdeu “as graças do mar”, eu me enamoraria de uma das meninas, mas o meu encantamento não era tanto pela beleza física de Maria do Rosário, a qual ela tinha de sobra. O que mais me seduzia era muito mais a combinação de cores das roupas que ela vestia. (Não sou hiperestésico, mas o meu senso estético me proíbe de olhar para alguém vestindo uma combinação de verde e azul, chego mesmo a ter ânsias de vômito). Até hoje, sou capaz de sentir prazer quando deparo, em algum momento do dia, seja em um outdoor ou em um desenho infantil, com as combinações primárias de amarelo, azul e vermelho. Um dia, ela vestia camiseta amarela e short vermelho. No outro, a camiseta era azul e o short amarelo. Ah, vermelho-da-China, amarelo-ouro, azuis celestes, em contraste com os cabelos negros de Rosário... E, assim, ela ia, sem disso ter consciência, dando asas à minha ainda incipiente teoria estética. O que mais me dava satisfação é que aquela gente não usava botões. Suas roupas simples dispensavam essas coisas horríveis que os homens primitivos inventaram a partir das singelas conchas do mar: os botões. Odeio botões.

Nosso caso de amor teve fim exatamente no dia em que ela apareceu, radiante, na escada entre o segundo e o terceiro andar, no primeiro dia de carnaval, usando um vestido branco que ela mesma confeccionara, cheio de botões, sem repetir cor nem formato. Botões em profusão pendiam desavergonhadamente, como despudoradas verrugas coloridas. Desse momento em diante, não pude mais sequer olhar para Maria do Rosário. Sou incapaz de precisar o início da minha ojeriza a esse artefato nojento que chamam de, bleargh, botão. A simples ideia de tocar em um deles leva-me à exasperação. A primeira lembrança do horror que os botões me causam leva-me aos três anos de idade, quando um vendedor bateu à nossa porta e, enquanto ele explicava a minha mãe a excelência do seu produto, um eletrodoméstico qualquer, eu não podia despregar os olhos da sua camisa, aliás, dos miúdos botões brancos da sua camisa azul-marinho, os quais se assemelhavam a minúsculos comprimidos que, em mim, provocavam intensa salivação. Comprimidos que eu não conseguia engolir, que se amontoavam em minha garganta, sufocando-me. E ninguém ali me socorria, todos ali ignoravam o meu suplício.

Nunca contei a ninguém sobre essa minha fobia; as pessoas normais são ávidas por levar alguém que, como um corpo estranho, destoa dos padrões aceitáveis para a vida em sociedade. E eu tenho muito medo de psiquiatras; para eles, todo mundo é, no mínimo, bipolar. E, hoje em dia, ser bipolar é quase um xingamento. E o que diriam de alguém que odeia botões? Recentemente, descobri que isso é quase uma doença, à qual deram o pomposo nome grego de koumpounophobia. As estatísticas, se é que se pode confiar nelas, dizem que a cada 75.000 pessoas, uma é koumpounofóbica. Mas esse desequilíbrio interno só veio a público depois que o magnata Steve Jobs, da Apple Inc., declarou, um pouco antes de morrer, em uma entrevista, que ele era portador dessa fobia. Mesmo assim, os koumpounofóbicos não vieram a público, continuaram mocozados. Não são bobos, sabem que só os famosos e bem-sucedidos podem ser excêntricos. Neil Gaiman, o espertinho, se utiliza, em “Coraline”, de sinistros botões pretos no lugar dos olhos para as criaturas do outro lado, a gente de um mundo paralelo. Ouvi dizer também que, em Curitiba, existe um artista performático que coleciona botões. Onde já se viu tamanho despropósito?

Foi assim, por causa dessa incompetência para a vida, o maldito horror a botões, que eu perdi para sempre Maria do Rosário, o grande amor da minha vida. E, o pior de tudo, é que ao lembrá-la, nas longas horas de solidão a que estou exposto, devido à minha ocupação profissional, a imagem que dela me vem à mente é justamente aquela em que ela está de vestido branco, forrado de botões coloridos, de todos os tamanhos e formatos. A minha profissão? Sou faroleiro. Com o tempo à minha disposição, medito muito sobre a estética de Miró, a teoria das cores de Goethe, a cor inexistente de Israel Pedrosa...

quarta-feira, 15 de julho de 2015

VOCÊ JÁ EXPERIMENTOU?

Edson Negromonte

Na minha pequena cidade, à primeira vista, pode parecer que nada acontece, devido ao ritmo em descompasso com o restante do mundo. Mas isso é somente impressão de gente desavisada, como esses caixeiros-viajantes que só por pernoitarem em um lugarejo qualquer dizem que o conhecem. Para se conhecer uma cidade, por menor que seja, é preciso, no mínimo, uma certa intimidade, um não sei quê de amante. Mas para conhecê-la a fundo faz-se necessário que de tanto amá-la não precise mais nem oferecer flores, mas mesmo assim surpreender a amada com flores as mais singelas, roubadas de um oportuno jardim oculto no caminho. Minha pequena cidade tem um pequeno porto, que é por onde todas as coisas importantes, as coisas dignas de nota, chegavam. Para mim, continuam chegando. Nessa pequena cidade, eu sou eternamente adolescente, perambulo por ela a pé, de bicicleta e, às vezes, até batendo asas. Sim, na minha cidade, eu sei voar. Adejo, faço loopings, acrobacias, dou rasantes no oceano. Piruetas no ar. Sigo esvoaçando, olhando tudo do alto. Às vezes, pairo de leve, deixando-me levar pelas correntes de ar e, como em um desenho animado, desafiando as leis da física, para despeito de todos os outros seres voadores, alados, não só os pássaros, os anjos inclusive, viro de barriga para cima e deixo-me levar; um exibicionista.

Aconteceu que, em um final de tarde, morna, dessa mornidão que só as pequenas cidades à beira do mar sabem ter, eu pousei no atracadouro, na forma de um albatroz que vira em uma ilustração hipercolorida, em uma enciclopédia que já era antiga no tempo dos meus avós. Não, não um simples albatroz, como eu sei que você está imaginando, mas um albatroz-de-sobrancelha, de belo bico amarelo. E ali fiquei, a observar pontos indistintos no horizonte, até que um deles, em especial, chamou minha atenção. Este ponto foi se aproximando cada vez mais, lentamente, até que se deixou reconhecer como um barco, uma embarcação, que foi se aproximando mais e mais, crescendo mais e mais, chegando cada vez mais perto e, então, tornou-se um navio. Portentoso navio negro, de carga e passageiros. Como é costume entre os nativos da minha pequena cidade à beira do mar, eles acorreram ao cais para ver a descida dos passageiros, essa gente enfatuada, enfatiotada e enfastiada, como se fazem parecer os passageiros de um transatlântico aos olhos ingênuos dos observadores, daqueles que, no seu entender, vêm de terras as mais longínquas. Porque, para nós, tudo é distante, muito distante, já que o umbigo do mundo é aqui. Com seus indefectíveis pincenês, esses turistas aproveitavam o tempo ocioso entre o embarque e desembarque de carga, às vezes horas, outras vezes dias, para experimentar os sabores locais, como a bala de banana ou o bolinho de camarão. Ou um delicioso ensopado de bagre. Ou uma casquinha de siri, acompanhada de uma batida de maracujá. Para a noite, sopa de tartaruga.

Foi, então, enquanto eu, irrequieto, estava pousado na boia de sinalização, que vi descer do navio um conhecido, alguém que fazia parte da minha família eleita, alguém a quem só eu reconhecia: um negro de quase dois metros. A altura, a cabeleira despenteada, a imponência e o alheamento lhe emprestavam ares de príncipe africano. Aquela fisionomia... Sim, com certeza, eu já o tinha visto! Sim, nas capas dos discos e nas revistas de música. Com meu passo desengonçado, corri em seu encalço. Chamei-o: Jimi! Jimi Hendrix! Ele virou-se lentamente em minha direção, sem estranhar que um albatroz-de-sobrancelha soubesse o seu nome terreno, e pôs o dedo indicador nos lábios, em sinal de silêncio.

Naquele tempo, eu ainda era livre para o inusitado, álibi que somente a pouca idade nos concede. Como um gângster de filme americano, Hendrix carregava para lá e para cá, por onde ia, sem dele se desgrudar, o estojo de uma guitarra, o qual parecia mais pesado que o usual, como se portasse metralhadoras ou bombardeiros, napalms, gritos de dor, lágrimas, a pele dos inocentes se desgrudando dos corpos em chamas... Eu, em meu tenro desconhecimento da alma humana, perguntava a mim mesmo por que ninguém o percebia. E se o percebiam, percebiam através de um farfalhar diferente das palhas do coqueiro, fingindo ignorar o novo com uma estridente risada interna, silenciosa somente para quem ri. A arma das mentes comezinhas é o riso, mesmo que o riso silencioso, o mais perigoso, o riso covarde, o pouco-caso, assim como até hoje fazem as hienas da obviedade diante de uma tela de Picasso ou ante a fonte de Duchamp. Ou perante “Voodoo Child (Slight Return)”. Como aquela gente trabalhadora, acostumada a dormir cedo, ciosa dos seus princípios materialistas, suportaria a visão do príncipe negro acompanhado por um albatroz-de-sobrancelha? Hoje, com a idade, eu compreendo o mecanismo de defesa dos meus conterrâneos. Muitas vezes a ignorância nos livra do perigo de enxergar além do cotidiano; o cotidiano é confortável, dá segurança. O desconhecido nos lança em direção a mares habitados por seres fantasticamente perigosos. Foi, então, quando o sol começava a se esconder por trás das montanhas e o céu atingia um nível intenso de púrpura, colorindo a água do mar das mais diversas cores e tons, cores ainda inominadas, que ocorreu o milagre: sem emitir sons, Jimi Hendrix chorou. Debruçado na amurada, o príncipe negro chorava. E suas lágrimas, conforme caíam no chão, iam se transformando em morangos silvestres, pequeninos morangos silvestres, luminosos. Embora as crianças da terra não se deem conta disso, quando elas se deliciam com os deliciosos morangos silvestres, cujo sabor jamais se desgarrará das suas memórias de infância, elas estão inocentemente saboreando as lágrimas de Jimi Hendrix.

O que acabo de revelar é uma acontecência de meados dos anos 70 do século passado, quando eu ainda era um adolescente. Mas como (você dirá, fazendo as contas), se Jimi Hendrix morreu no final do ano de 1970, em setembro? E eu lhe direi, então, com toda a segurança de que sou capaz, que ele faleceu, na verdade, em 27 de novembro de 1942. O que vem depois é uma ilusão à qual nos apegamos para continuar uma vida que não é a vida propriamente dita, mas que, sem tal ilusão, morreríamos, se é que a morte realmente existe. Se é que tudo não passa de vida, somente vida, vida manifesta em outras formas de vibração, em planos que não discernimos pela impossibilidade de chorarmos morangos silvestres diante de um pôr do sol. Apesar de ainda longe, chegará o dia que todos seremos capazes de perceber essas nuances, assim como somos hoje capazes de compreender, não ainda de apreender, as sutilezas cambiantes da Nona Sinfonia, de Beethoven, a qual os seus contemporâneos diziam ser impossível executar, que aquelas notas não existiam, eram inalcançáveis, principalmente as do coral, que aquilo só podia ser obra de um surdo... Precisou, então, que a humanidade evoluísse para desfrutar a beleza que, naquela época, só Beethoven percebia.

Hoje, quando eu digo, com toda convicção, aos meus clientes que a minha delicada geleia de morangos silvestres tem origem nas lágrimas psicodélicas de Jimi Hendrix, quando de sua passagem pela pequena cidade de onde nunca saí, eles pensam que, no mínimo, estou fazendo blague ou, então, que sou mais um maluco.

– Mas, então, por que você deu o nome de Ingmar à sua fabriqueta? E não de Hendrix? Ou Jimi? – pergunta uma cliente.
– Bem, isso já é outra história! – respondo, com um sorriso.