quarta-feira, 6 de abril de 2016

A GAROTA ESCARLATE



por Edson Negromonte

Apesar do nome, a Garota Escarlate jamais quis ser heroína de quadrinhos. O que ela sempre quis, apesar da lonjura do ermo em que nascera, foi cantar em uma banda de rock e fazer tudo o que lhe desse na veneta, no palco e fora dele. Queria quebrar banheiros de hotéis e jogar aparelhos de TV do alto da suíte presidencial ou, num paroxismo de amor, afagar e afogar o guitarrista, o verdadeiro cérebro por trás de todo o marketing da banda, na piscina da sua mansão nouveau riche. Tudo isso ela fez. Tudo isso a deixava momentaneamente muito realizada, até descobrir sobressaltada, em uma rebordosa, que o mundo do rock é muito previsível. E quem suportaria, todas as noites, tirar num par ou ímpar consigo mesma se engravidaria de Marc Bolan ou de Jobriath. Nem sofreu, ou fez de conta, quando teve que abortar das entranhas o bebê diabo de um travesti chamado Alice Cooper. Cansada do mundo mesquinho das celebridades do rock’n’roll, achou que se sentiria mais feliz se fizesse o vocal de apoio de uma big band dos anos 30. Não mediu esforços para ser a melhor backing vocal de todas as backing vocals do planeta, chamando a atenção de um famoso band leader, que lhe prometeu o vocal principal. Dito e feito, mas logo ela, que jamais sonhara em atingir tão alto posto, só queria fazer um backinzinho, viu-se, de repente, de um momento para outro, tentada a voos mais altos que o de crooner de uma brilhante orquestra de baile. Estava pronta para a carreira solo, pensou, com a confiança e a ambição desmedida que uma carreira de cocaína desperta no mais pacato cordeiro. Tomou, então, de papel e caneta e começou a redigir a própria biografia, cheia de impropriedades, na grande maioria, fictícias. Assim, contou, em meio a sentidas lágrimas de crocodilo que fora violentada dos nove aos dezesseis anos pelo padrasto, com o consentimento da mãe. Contou também que abandonara tudo aquilo que conhecia como lar e pegara “um ita no Norte, para vir no Rio morar”. Desembarcara na então capital federal, entre atônita e maravilhada. Ah, a Cidade Maravilhosa, o porto fervilhante de vida. Ali mesmo, tomou a decisão de vencer na vida a qualquer custo. Ergueu a cabeça, arrebitou o nariz e imaginou-se de salto agulha, apesar de estar de alpargatas. Não, não foi fácil. E quem tinha dito que seria? Permaneceu no Rio, uma breve estadia, até compreender que as coisas legais estavam acontecendo mesmo era em São Paulo. Tocou-se para o bairro da Pompeia. Tornou-se uma superstar local, bem local. E quem podia ombrear com Rita Lee? Uma noite, quando tudo parecia bem, no banheiro, sentada na privada, enxugando a periquita, o tédio a tomou de assalto, apontou o tresoitão para a cabeça e rosnou: – A bolsa ou a vida! Jocosa, disse para si mesma, imitando o paroxístico poeta Torquato Neto: – Para mim, chega! It’s only rock’n’roll, e eu quero é mais, o que eu quero é rosetar! Voltou imediatamente para o Rio, botou uma papoula no cabelo, um vestido vermelho, de alcinhas, cheirou uma carreirinha, sopesou os seios e foi pedir emprego na famosa Orquestra Tabajara, de Severino Araújo; apesar de não jogar bilhar, tinha confiança no taco. Conseguiu ser aceita na Românticos de Cuba, o que, afinal, vem a ser a mesma coisa. Às vezes, cantava também na Metais em Brasa, que também vinha a ser a Tabajara com outro nome. Nesse exato momento, deveria ter início a lenda da Garota Escarlate, aquela que a todos amou e nunca foi amada, mas não, a vida segue caminhos muito tortos, os mais tortos. Chamou a atenção dos executivos das grandes gravadoras, que lhe ofereciam mundos e fundos se com eles se deitasse. A todos dizia, debochada: – Não, esse corpitcho só a mim pertence! Resultado: teve que esperar o advento do disco independente. Gravou o seu, com produção de Arrigo Barnabé. Vociferava o enfant terrible, eufórico, dedo em riste na cara de todos, que a Garota Escarlate era, seria, é a porta-voz do movimento musical que fervilhava nos porões paulistanos. Azar dos azares, fado dos fados, quis o Destino, esse moleque brincalhão e inconsequente, que, justo na noite em que a gravadora fizera a entrega do primeiro disco da Garota Escarlate, uma chuva diluviana inundasse o teatro Lira Paulistana. Recuperados os vinis, apesar de as capas terem virado mingau, nenhum deles tocava nada além de um ruído dodecafônico que atravessava todos os dois lados, tanto o A como o B. Alguns juraram, e juram até hoje, mas já sem muita convicção, que se pode, com muita atenção, ouvir um obstinado “Paul is dead”; outros, um contínuo “eu vou botar pra foder”. E, para contribuir ainda mais com o mistério que cerca o único disco da Garota Escarlate, uma comissão de colecionadores de vinis raros, vinda direto do Japão, comprou, a peso de ouro toda a prensagem e o máster. Não se sabe, até hoje, com que finalidade. Rola uma história evidentemente apócrifa que os discos estão todos guardados, a sete chaves, em uma sala secreta na biblioteca do Vaticano, à qual nem o papa Francisco tem acesso. E a Garota Escarlate? Continua viva e bem, conforme permite a idade de alguém que se consentiu todos os vícios e desregramentos da época. Bem de saúde física, que é o que importa. Depois de tudo isso, a cabeça da coitadinha deu um nó cego que nem Nossa Senhora Desatadora dos Nós desfaz. A todos os curiosos que a procuram, que dela ainda se lembram, invariavelmente responde: – I want to be Stallone!, achando-se a Greta Garbo de Irará. Sim, de Irará, porque ela mora no mesmo prédio de Tom Zé. São, inclusive, vizinhos de porta. Nas noites de lua prenha, pode-se ver o músico levando-a, a eterna Garota Escarlate, para passear, empurrando sua cadeira de rodas; os dois cantarolando "Minha menina Jesus, minha menina Jesus, valei-me". E se alguém deles se aproxima, um fã ou algo que o valha, os dois começam a rosnar e desaparecem em meio às árvores do passeio público, deixando no ar um odor fétido e maligno de butilmercaptana.