domingo, 27 de agosto de 2017

O ESPORTE MAIS POPULAR DO MUNDO


Edson Negromonte

Tenho horror a futebol, horror à bola. E isso no país do futebol é uma aberração. Portanto,admito, devo admitir, sou um freak. Além do mais, coisa estranha, tenho o mesmo nome do Rei do Futebol. Não entendo por que, coincidentemente, meu pai deu-me o mesmo nome de Pelé, dois anos antes de ele estrear na Seleção. Logo eu, incapaz de simplesmente chutar uma bola. Pode parecer algo simples dar uma bicuda em uma bola, mas não é. Creiam, não é. Bem que o padre advertiu meus pais, na pia batismal: – Isso não é nome de cristão! Nome de cristão é José, Paulo, João!
O horror ao futebol, ou até o horror à bola, a qualquer esporte ou brincadeira que envolva esse corpo esférico conhecido como bola, pode ser algo mais profundo, pois causa-me, hoje, no mínimo, apreensão, mas na infância e, principalmente, na adolescência, causava-me aversão, repugnância. Tanta, a tal ponto, que sou incapaz de distinguir de imediato o que é, na TV, uma partida de vôlei ou basquete, sem antes raciocinar e recorrer à palavra basket, que, em inglês, significa cesta, cesto. Mas esse horror não me impedia, mesmo na infância, de saborear certas histórias relacionadas com o futebol, a mim contadas por meu pai, como a da origem do nome do chocolate Diamante Negro, assim batizado em homenagem a um craque do seu tempo, Leônidas, o criador do gol de bicicleta, uma proeza futebolística. Ou aquela que um amigo, sabedor do meu horror à bola, contou-me sobre a criação do basquete, que este esporte havia sido criado pelos vikings, os quais arremessavam, em vez de bolas, patos ao rochedo, que derivou para pato ao cesto, para vir a se tornar modernamente o basketball. Mas, infelizmente, acabei verificando que a história, apesar de bem engendrada, era mentirosa. A curiosidade sempre me conduziu aos mais diversos assuntos, mesmo ao futebol, em menor grau, é claro, muito embora jocosamente afirme que não consigo, em um álbum de figurinhas, distinguir entre Garrincha e Ademir da Guia.

A minha primeira lembrança, talvez a mais antiga, sobre futebol, é a de um Natal, em que eu devia ter no máximo oito anos de idade. Meu pai presenteou-me com uma bola de capotão, a qual meus amigos, cobiçosos, asseguravam ser linda. Indignado com o presente de mau-gosto, a minha reação imediata, na área de recreação, em frente ao prédio, onde os meninos se reuniam para exibir os presentes que o bom velhinho lhes trouxera, foi dar uma bicuda (por incrível que pareça, a raiva me fez conseguir essa façanha) em direção aos enormes cáctus do jardim, direto aos pontiagudos espinhos. Pressuroso, o zelador do prédio resgatou a tal bola de capotão do meio do espinheiro:

– Desse jeito, você vai acabar furando a bola!
– Quer pra você? É sua! – respondi.

Onde meu pai estava com a cabeça para me presentear com aquela bola de couro tão cara? Quantos gibis eu poderia ter comprado! Logo ele, que me abarrotava com todos os almanaques de fim de ano!

Nas aulas de Educação Física, as quais, naquele tempo, eram obrigatórias, o professor já chegava apitando o início de uma partida, para alegria dos meus colegas, que, antes disso, já tinham ajeitado os times. Eu dava graças a Deus por nunca ser escolhido e mofar, não no banco dos reservas, mas no dos enjeitados, até que, um fatídico dia, o professor apiedou-se de mim e forçou um dos times a me escalar. Em campo, eu fugia da bola, como se aquilo fosse um corpo incandescente, um meteoro. Mas a bola, aparentemente também apiedada, resolveu me conceder a chance de brilhar em campo, diante de todos ali presentes, o professor, os colegas, as garotas. E ela, a bola, veio em minha direção, apaixonada, entregue, e os meninos gritaram: “Chuta!”. E eu, sem entender direito o que estava acontecendo, chutei.

– Gol! – gritaram todos.

Sim, eu fizera um gol, eu estufara a rede! Mas, azar dos azares, tinha sido contra. Sim, um gol contra! Retirei-me do campo, da quadra, sob aplauso de uns e vaia de outros. O professor exigiu que eu voltasse e, se não o obedecesse imediatamente, iria enfrentar, no final da aula, o corredor polonês. “Corredor polonês, que merda é essa?” Qualquer coisa era preferível ao maldito futebol. Dolorosamente, descobri que o tal corredor polonês, também chamado de corredor da morte, era uma formação de duas fileiras, uma de frente para a outra, pelas quais se tinha que passar, recebendo socos, cascudos e chutes. Ao chegar em casa, cheio de hematomas e escoriações, meu pai levou-me à direção da escola, exigindo explicação para aquela barbaridade. Como tudo na vida tem os lados positivo e negativo, nunca mais fui obrigado a jogar bola nas aulas de Educação Física. Na Grécia Antiga, eu seria filósofo, que, presumo, fossem atletas fracassados.

A ojeriza pela bola só foi aumentando; bastava eu estar passando próximo de um campinho, onde meninos normais se divertiam batendo uma bolinha, uma pelada, para que a desgraçada percebesse a minha presença e viesse rolando em minha direção. Chegava a cair aos meus pés, toda oferecida. E, quando os meninos gritavam:”Chuta!”, eu olhava para eles com a boca aberta e ar de retardado, sem compreender o que queriam de mim. Às vezes, chegava a fazer-me todo torto, um aleijão, imitando Lon Chaney, em “O Corcunda de Notre-Dame”. Enquanto tranquilamente me afastava, na minha melhor imitação de Quasimodo, no meu íntimo, eu apostava que nenhum daqueles meninos sequer supunha quem era Alex Raymond. Ou Hal Foster. Ou Ray Davis. Ou Ziraldo. Ou Benício. Ou Walmir, os craques da minha Seleção

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

REDESENHANDO A VIDA


Edson Negromonte

para o meu neto Dimitri


O desenho me acompanha desde a mais antiga lembrança de minha infância, por volta dos três anos de idade ou até menos. Desenhar era, para mim, vital, minha arma, um Colt.45 contra o mundo. Foi o modo que encontrei, intuitivamente, de não me desesperar com as longas noites da insônia que me acometeu durante toda a infância e parte da adolescência. Ainda posso ver, com muita nitidez, o menino debruçado sobre um caderno pautado, enchendo-o com garatujas, e a figura da mãe, encostada no umbral da porta, de camisola branca, a cabeça inclinada, penalizada com a insônia do filho. Ainda tenho nítida a mesa enorme,de tampo escuro, as oito cadeiras sonolentas e incomodadas com a claridade do lustre de cristal; mesa que, com o passar dos anos, foi ficando cada vez maior, tomando conta de toda a sala de jantar, dos outros cômodos, do solar onde morávamos, em Blumenau. Ainda guardo carinhosamente na memória o gabarito do contorno de um cavalinho, presente do meu avô materno, com o qual cobri, uns sobre os outros, folhas e mais folhas, preenchendo o contorno ao bel-prazer do meu traço infantil. Além dos cadernos, eu preenchia também as cadernetas de receita de minha mãe; uma dessas cadernetas, de capa preta, ainda rolava pelas gavetas de sua casa há alguns anos atrás.

Depois, em Niterói, para onde nos mudamos, no início da década de 1960, lembro-me de uma passagem com o quitandeiro da esquina, a uma quadra do prédio onde fôramos morar, no bairro de Icaraí, à avenida Vital Brasil. Para aplacar a minha fome insaciável de histórias em quadrinhos (nessa época, as bancas eram abarrotadas por gibis para todos os gostos, e eu queria comprar todos, desde os de faroeste, os meus prediletos, até os infantis), eu vendia vidro para o garrafeiro, que passava gritando o seu pregão pelas ruas do bairro, e as revistas semanais e jornais para o homem da quitanda, o qual pagava um preço melhor. Assim, uma revista Manchete, cuja capa estampava o general, então presidente da República, Castelo Branco, foi parar na quitanda. Folheando a revista, o quitandeiro encontrou um desenho que eu fizera da carantonha do general, o qual ele colou na parede que ficava às suas costas. Devia estar bem feito, pois, quando lhe perguntavam quem o tinha feito, ele respondia, todo orgulhoso e sorridente: “Eu mesmo”. Calhou de minha mãe estar presente em uma dessas ocasiões. Ela, prontamente, disse a ele: “O senhor está mentindo, esse desenho é do meu filho!”. E calhou também de eu, enquanto ela fazia as compras, estar folheando as novidades na banca ao lado. Ela, de imediato, me chamou: “Esse desenho é seu ou não é?”. Entre envergonhado e penalizado, resmunguei: Mãe, deixa o homem dizer que é dele. “Não deixo não, o que é certo é certo, e a verdade deve ser dita”. Fazer o que diante de tal argumento? Nunca esquecerei da cara de tacho do quitandeiro, por trás do vasto bigodão.

Também em Niterói, na saída da escola, eu costumava gastar um bom tempo na banca do meu amigo Bill, um adulto que conversava comigo de igual para igual. Lógico que a conversa só poderia girar sobre quadrinhos. Bill pedia sempre para ver os meus desenhos. Ele dizia que eu desenhava muito bem, e vindo de quem vinha o elogio, do Bill!, o dono de uma banca de aço, na esquina da escola, (Nossa!, esse era o meu ideal de vida: ser dono de uma banca todinha minha!), é claro que isso me deixava muito contente. Um dia, fui surpreendido com a proposta de que eu fizesse, no muro, ao lado da sua banca, o desenho de vários heróis, um mural. Bill garantiu que providenciaria o material necessário e que eu poderia desenhar os heróis que quisesse, desde que eu incluísse, entre eles, o Fantasma, o seu favorito. Sem problema, Bill! Assim, preenchi aquela parede, traçando com giz branco (depois, Bill faria o contorno e preencheria com tinta, em um autêntico trabalho de equipe), com as figuras do Cavaleiro Negro, Flecha Ligeira, Texas Kid, Águia Negra, Mandrake, Black Diamond, Buck Jones, Ferdinando, Tarzan e, evidentemente, o Espírito que Anda ou Fantasma Voador, como também era conhecido o Sr. Walker.

Uma outra passagem da minha infância, de que gosto muito, é a que envolve a madre superiora da escola em que minha tia lecionava. A freira, conhecedora dos meus dotes artísticos, pediu que eu desenhasse uma história em quadrinhos, a qual ela deixaria exposta na escola. Na época, eu estava proibido de desenhar faroestes, o meu tema favorito, no qual eu me esmerava, caprichando nas cenas de duelo, nos tiroteios, enforcamento etc. Convencido pelos amigos e parentes, “preocupados” com a minha educação (uma outra tia chegou a vaticinar que eu seria um débil mental, de tanto ler gibis), meu pai tinha me proibido a leitura de histórias violentas. Logo as minhas favoritas. Sorte que não proibiu de assistir na TV as séries de faroeste, como Bat Masterson, Paladino do Oeste, O Homem do Rifle, Bonanza, nas quais morria gente a torto e a direito. Então, a pedido da bondosa freira, engendrei a mais violenta e inescrupulosa história com o pato Donald e seus sobrinhos, com tiroteio e pancadaria, que culmina com a expulsão, a pontapés, do tio Patinhas da sua caixa-forte, pelos sobrinhos, os quais se apropriam da fortuna do velho sovina. O último quadro mostra os sobrinhos tomando um merecido banho na piscina de moedinhas douradas. Então, ao perceber que, sem saber, eu estava enveredando, intuitivamente, pelo perigoso caminho do comunismo, meu pai suspendeu a proibição, acabando por me presentear no Natal, com vários pacotes, contendo todos os almanaques de férias que conseguira encontrar; e isso, naquela época, não era pouca coisa.

Outra passagem que gosto muito é a do caderno de Religião. A primeira folha deveria ser deixada em branco, onde poderíamos fazer um desenho, aqueles que soubessem desenhar (que merda! Eu sinceramente acredito que todos sabem desenhar, basta ter confiança em si mesmo e premeditar o traço seguinte, como o golpe de um samurai), ou colar uma decalcomania. Evidente que eu me esmerei no meu desenho, como todo moleque eu ansiava pelo aplauso dos mais velhos. O professor levou o meu caderno para o diretor, o diretor chamou o meu pai (ele exigiu que fosse o meu pai). Quando o diretor pediu a presença do macho da casa, eu já comecei a perceber que tinha cometido uma cagada qualquer na ilustração da primeira página do meu caderno de Religião. O resultado da conversa entre meu pai e o diretor foi a minha transferência para outro colégio. Inusitadamente, para um colégio de freiras. Ah, a ilustração? Tudo isso por causa de um desenho que mostrava um simples cemitério, com uma única lápide de pedra, na qual constava a inscrição “Aqui jaz Búfalo Bill”.

E, por ora, é só! Depois, eu conto mais.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

NO BAZAR CHAHRIAR


Edson Negromonte


Nesta cidade, surgem bazares do nada. E também desaparecem num passe de mágica. Estão ali um dia e, no seguinte, hocus pocus, ninguém sabe dizer onde foram parar. Assim, adentrei em um que eu nunca tinha visto. Sim, em bazares se adentra, não se entra simplesmente, embrenha-se. O bazar será sempre um local mágico, de sombras, digno das mil e uma noites da rainha persa Xerazade, um lugar ao qual se vai, não em busca de algo específico, mas esperando ser surpreendido por algum objeto que sua imaginação, por mais inventiva ou destrambelhada, jamais ousaria supor que encontraria ali, em meio a toda sorte de insignificâncias. Geralmente, são coisas pequenas, tão pequenas, quase diminutas, que somente a você mesmo dizem respeito. Ontem, tão importantes para alguém, que provavelmente já morreu, tornam-se invisíveis de um momento para outro, até que despertem o interesse de alguém capaz de vê-las: as pessoas de alma sensível às delicadezas da vida.

Assim, adentrei o Bazar Chahriar; por uma porta mais estreita que o geral das portas das casas de comércio deste lado do mercado, as quais já são de sobejo exíguas. Foi, então, que pude perceber o mais amplo salão, impossível de imaginar quando se está do lado de fora. Já outras pessoas estavam ali, conversando, trocando ideias, enfim, tagarelando, mulheres e crianças; o único homem no ambiente, munido de um plectro, feito de escama de peixe, tocava o saz, um tipo de alaúde turco, alheio a tudo, entretido com as sonoridades de si mesmo. A um bazar, as mulheres geralmente vão em busca de roupas, tecidos, utensílios de cozinha, peças de adorno, enquanto às crianças tudo interessa, tudo é novidade. Elas, as crianças, assim como eu, também se extasiam com os objetos que, anteriormente, dormiam nos desvãos das escadas das casas, esquecidos. Por isso, evito olhar diretamente para os olhos dessas crianças nos bazares, temos interesses comuns; elas são perigosas. Depois de andar pelo salão, fazendo-me de indiferente, sem nada ter chamado ou despertado minha atenção (sinto-me pesaroso quando isso acontece, é como ter ido a Istambul e não ter erguido os olhos para o céu e, por isso, e somente por isso, não ter avistado os altos minaretes da Mesquita Azul), eu estava pronto para sair quando o interior de uma cristaleira envidraçada chamou minha atenção. Dirigindo-me à cristaleira, magnetizado por algo que ali entrevi, abri primeiro uma das portas, a da direita, delicadamente, como abrisse o portão enferrujado de Firdous, o paraíso no Alcorão, evitando assim chamar a atenção de algum infante infiel. Deve-se proceder assim em bazares, e tome isto como um conselho valioso para o dia em que sua alma o surpreender com o desejo incontrolável de se aventurar nesse meandro de mistérios. Se eu houvesse aberto as duas portas do móvel ao mesmo tempo, elas certamente fariam um ruído característico, algo como um muezim cego anunciando do alto do minarete a prece diária (Alá é grande!), que poderia soar como convite a que alguém compartilhasse comigo daquilo que eu mesmo ainda não compreendia. Portanto, o melhor a fazer, nesse caso, é não chamar a atenção de ninguém para aquilo que pode vir a ser a revelação: o chamamento para a primeira prece da manhã, estritamente pessoal, entoado pelo escravo da Abissínia, Bilal ibn Ribah, aquele que vem a ser o primeiro muezim do Islã.

Vi, então, na estante, alguns discos de vinil. E,neles encostado, um pequeno volume que continha uma velha caderneta, de capa de couro marrom, com as beiradas gastas, além de algumas folhas à parte, enfeixadas por uma fita de gorgurão. Puxei os discos, para examiná-los e, para meu espanto, eram todos iguais. Ou melhor, quase todos. Um deles chamou minha atenção pela aparência, podendo-se dizer pela “versão original” Os outros eram reedições tardias e baratas daquele. O original tinha a capa um pouco maior, questão de centímetros (detalhe perceptível para os aficionados), de papelão mais encorpado e cores mais vivas (berrantes? Não, não chegavam a tal extremo), o amarelo tomava grande parte da superfície da capa. O disco em questão era a trilha sonora de um filme, sobre o qual eu nunca ouvira falar, e a ilustração da capa oscilava, com volúpia, entre um close de Judy Garland e uma saltitante Julie Andrews. Enquanto os outros discos exibiam o preço de dez reais, este tinha o absurdo valor de mil e quatrocentos e quarenta somonis, anotado na beirada interna da capa. De que país seria essa moeda? Mesmo intrigado com o somoni, separei o disco. Sem saber o valor em moeda corrente do país, eu me vi temeroso de pechinchar, apesar de ser o costume nos bazares: o comerciante sente-se ofendido se o cliente não regateia. Com certeza, era um disco muito raro (eu nunca tinha ouvido falar nada sobre ele, nem mesmo podia ser considerado “mosca branca”, pois não havia uma única linha, por mais vaga que fosse sobre tal preciosidade nos melhores catálogos oscilantes de trilhas sonoras do cinema americano). Mas não barganhar, deixaria o vendedor de orelha em pé. Enquanto admirava a capa, que continuava, como um pêndulo, indefinida, alternando-se, ora era “O Mágico de Oz”, ora “A Noviça Rebelde”, um 78rpm escorregou de dentro dela, direto para a minha mão. O velho disco de carvão continha a música-tema do filme (disso, não sei dizer como, eu tinha certeza, embora o selo tivesse sido borrado de propósito). Mais tarde, pude verificar que a letra fora vertida para o português, e era cantada divinamente por Francisco Alves, mas essa gravação apócrifa também não consta de nenhuma biografia do cantor. Junto com o 78rpm, veio, além do convite para a avant-première, que ocorreria dali a sete dias no Cine Ópera, uma filipeta, na qual estava escrito, em impecável caligrafia feminina, a seguinte advertência: “Aquele que esta chave encontrar, deve também levar consigo o meu diário e as notas esparsas, coletadas durante toda uma vida, para a compreensão do grande enigma do que pode vir a ser o ser humano, a partir da compreensão do que é um ser humano”. Evidentemente, verifique novamente, com muita atenção, todos os outros discos. Agora, as capas eram de um colorido tão esmaecido que não se podia definir sequer a ilustração e, muito menos, o título. E nada, absolutamente nada de extraordinário, continham. Eram simulacros, representações grosseiras do original, para confundir os falsos buscadores do vinil sagrado.

Fui até o balcão, pronto para a pechincha do dia, levando comigo disco e diário. A senhora que me atendeu, de maquiagem pesada e perfume extremamente doce, enjoativo, inebriante, de rosa musgosa do Tajiquistão, fez-me sinal de silêncio. E, tirando o dedo indicador dos lábios, disse:

– Este disco e o pacote que o acompanha pertenceram à dona Izildinha, e não se pode levar um sem o outro. Portanto...
– Eu...
– Ouça, somente ouça. O preço exorbitante é somente um artifício para afastar aquele que não fosse o iniciado, prestes a galgar mais um degrau na escada da fraternidade.