sexta-feira, 22 de setembro de 2017

UM VEÍCULO, SIMPLESMENTE UM VEÍCULO


Edson Negromonte

A velhice concede aos velhos, somente aos velhos-velhos, um insuspeitado conceito de tempo, o qual leva à fruição sem culpa dos dias do passado. Assim, depois do sono da tarde, enquanto me acostumava novamente com os pequenos ruídos exteriores, vi desfilar uma parte da galeria de personagens que frequentava o sebo do qual eu tirei, durante muitos anos, o sustento da minha família: o poetastro local ainda olha-me, disfarçada e rancorosamente, por entre as páginas do seu livro de versos, ‘Florilégio”, indignado com o baixo preço que eu colocara em sua antologia; o guri que mocozava entre os seus gibis de super-heróis, com os quais ele entrara, outros gibis de valor mais alto, como se eu não percebesse (fez isso algumas vezes, até que tive de educadamente lhe chamar a atenção. Depois disso, ele tornou-se meu amigo); as prostitutas que faziam ponto na pequena praça em frente e, entre um cliente e outro, iam em busca das revistas populares de histórias românticas (uma delas pediu-me, certo dia, que lhe indicasse um bom livro, estava cansada da xaropada de Sabrinas e Biancas, com a única condição de que, se ela não gostasse do livro, o atiraria na minha cara. Indiquei-lhe “Horizonte Perdido”, temeroso. Tornou-se uma leitora voraz de livros, até que, um dia, comprou o calhamaço “Ulisses”, de James Joyce, por sua conta e risco, e nunca mais a vi); o adolescente tímido que chegou, segurando no braço da mãe, e sem dizer uma única palavra, apontou para o disco raro, de vinil, que estava no expositor, atrás de mim (era “Rocka Rolla”, do Judas Priest, importado. Depois disso, em uma terça-feira chuvosa, ele surgiu sozinho, tirou de baixo do agasalho uma sacola de supermercado, na qual trazia duas fitas VHS, com filmes de Roy Rogers. A partir desse dia, tornamo-nos amigos); a bela lolita, de fartos cabelos negros, e olhos ainda mais negros, que recitava poemas eróticos de Goethe, com um sorriso travesso brincando nos lábios; o comerciante de livros, que os comprava e revendia para clientes seletos, ao qual eu dava um bom desconto, para que ele tivesse uma substanciosa margem de lucro, pagando sempre em dia. Até que me aplicou um golpe de certa monta, utilizando cheque roubado. Encontrei-o mais tarde, na capital, vivendo como mendigo na Praça da Sé; completamente bêbado, não me reconheceu. Consternado, rezei por ele); também aqueles que leram meia dúzia de livros, gabando-se disso, como se houvessem cometido uma proeza intelectual; o físico de renome mundial que ninguém conhecia em sua cidade natal; sua humildade chegava a ser constrangedora. Presenteava-me semanalmente com vários volumes, os mais diversos assuntos, em várias línguas, inglês, alemão, francês; entrava quieto, saía calado, jamais disse uma palavra; o colunista social, com programa na TV Manchete, que ia todos os sábados, à cata de edições antigas de Bolinha e Luluzinha, cuja filha colecionava matérias sobre o pai, em início de carreira, em revistas antigas; os moleques guardadores de carro, de olhos vermelhos de cheirar cola de sapateiro, aos quais eu dava toda segunda-feira uma revista de super-herói, à escolha deles (Capitão América e Hulk eram os favoritos); a cliente que predisse que eu sofreria de Mal de Parkinson, de tanto ficar com a cabeça inclinada para a frente, absorto nas páginas de um livro; o rapazola, em busca dos seus pares, que mal sabia pronunciar o nome de Edgar Allan Poe,e que ficou ruborizado quando o corrigi (tornou-se, desde então, meu melhor amigo); o larápio, de mãos tão leves e rápidas, que enganou-me, durante o troco, levando com ele o seu dinheiro e o meu (levei muito tempo para perdoá-lo); o travesti que trabalhava no Banco do Brasil e que, justamente nos dias em que eu necessitava pagar as contas da livraria, não tendo de onde tirar, ele aparecia, como por encanto, e comprava um lote de discos de rock, de blues e soul, salvando o dia; o advogado que, arrependido, voltou ao sebo para reaver o livro que houvera anteriormente vendido e assustou-se com o alto preço que eu lhe pedira (como explicar a ele que eu comprara o lote todo somente por causa daquele livro e que o restante era legislação obsoleta, em desuso, sem valor nenhum?); o radialista que pediu a minha prisão no ar; o colecionador que me entregou um volumoso pacote, contendo vários exemplares da revista Tico-tico, em perfeito estado, com medo que a esposa os vendesse ao ferro-velho, após a sua morte; o jovem policial civil que a mim atribuía a sua escolha profissional por lhe ter fornecido os livros de bolso, com histórias de detetive, as quais ele devorava; o tímido técnico em eletrônica que contou-me, radiante, que estava construindo um aparelho para entrar em contato com os extraterrestres; a família agradecida por ter vendido ao filho mais velho um livro que ensinava a construir um abrigo nuclear (garantiram que tinha nele um lugar reservado para mim); aqueles que perambulavam por ali, folheando alheadamente os livros, indo embora sem nada comprar, de peito estufado, cabeça erguida, satisfeitos com a sensação de cultura adquirida, somente por respirarem o pó dos séculos que todo sebo detém; e tantos outros mais.

Mas o personagem que mais me tocou, em tudo isso, foi o menino que chegou, um dia, pela manhã, pedindo-me dinheiro para comprar uma coxinha, na padaria ao lado. Disse que não lhe daria o dinheiro, mas que lhe pagaria o salgadinho. Agradeceu e saiu lambendo os beiços, deliciando-se com a coxinha. No dia seguinte, quase no mesmo horário, o menino apareceu novamente. E no seguinte, também. Então, olhei bem para ele e, inspirado pela bondade cósmica, disse:

– Se você continuar assim, pedindo, você vai virar um mendigo, alguém que vive do que os outros rejeitam, você vai viver do resto dos outros. Você quer ser mendigo?

Ele virou as costas, entristecido, e foi embora.

Alguns dias depois, ele reaparece, todo sorridente, com um tabuleiro, pendendo do pescoço, com vários saquinhos de amendoim torrado.

– Quem comprar minduim, senhor?
– Viva, tá trabalhando!
– Eu falei pro meu pai o que o senhor me falou, ele fez três tabuleiros, um pra mim, um pro meu irmão e outro pra ele. Agora, nós tamo vendendo minduim.

Todas as vezes que ele foi me vender amendoim, fiz questão de comprar. Levava os pacotinhos, em forma de cone, feitos de papel de embrulho, para casa, no final do expediente. Meus filhos ficavam contentes com o amendoim salgado e torrado, depois da janta.

Alguns anos depois, saía com as crianças do cinema, onde fomos assistir “Indiana Jones e a Última Cruzada”, e entramos na fila para comprar pipoca, quando vejo o rapaz do carrinho de pipoca chamando-me com um aceno de mão. Fui até ele e vi que aquele rapaz era o menino que vendia minduim no tabuleiro. Não é a raposa que diz ao Pequeno Príncipe: “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”? Pois, foi justamente essa frase que veio à minha mente naquele momento.

– Tá vendendo pipoca agora?
– Sim, esse carrinho é meu e aquele – disse, apontando para um outro carrinho que estava um pouco mais adiante – é do meu pai.

Quanta satisfação ao perceber que as minhas palavras, como sementes, tinham caído em terreno fértil. E isso aquece meu coração de velho todas as vezes que relembro essa história na qual eu fui um veículo para o Cósmico, simplesmente um instrumento. Depois, reencontrei-o em uma quermesse, no pátio da igrejinha de Mato Dentro, durante a festa da padroeira, quando fomos, eu, a mulher e as crianças, comprar amendoim salgado, em uma barraquinha, e uma voz, muito minha conhecida, vinda do carrinho de pipoca, gritou para o molecote que nos atendia:

– Põe os maiores pra ele!

domingo, 3 de setembro de 2017

UMA FABULAÇÃO DO SÉCULO PASSADO



Edson Negromonte

para a minha neta Ayana


Ela era tão pequenina que podíamos chamá-la de menininha, achávamos que ela jamais cresceria. Sofria muito no inverno, quando tinha de ir para a escola, pela manhã, pisando no chão quebradiço, congelado pela geada. Mas, mesmo com todo o frio que fazia, ela não parava um instante. Saracoteava o tempo todo. Nem quando a avó a chamava para limpar o nariz. Então, a vovozinha a fazia assoar em uma das suas anáguas. A avó vestia sempre várias anáguas, umas sobre as outras, como era costume naquela região fria, o sul do país. A menininha chamava carinhosamente a avó de Mãe Velhinha, era a mãe do seu pai, um tropeiro de boa cepa, duro como o cerne de um pinheiro solitário. Mãe Velhinha estava sempre atenta ás peraltices da menina, que gostava de se encarapitar na ameixeira. E, lá do alto, saboreando os frutos amarelos e suculentos, ela cantava bem alto “O Ébrio”, de Vicente Celestino, uma canção popular deveras triste para a pouca idade da menininha, mas era isso que tocava seu coração. Assim, encarapitada no alto da ameixeira, ela também gostava de ouvir as notícias da Segunda Guerra, no rádio ou da boca dos mais velhos, à roda do fogo, à roda do chimarrão. Ela e os irmãos brincavam de combater os adversários da liberdade. Um era o Churchill, outro o Stalin. À menininha, os irmãos impunham o papel do Tojo, o primeiro-ministro do Japão, só porque ela era a menorzinha e usava óculos de aro redondo, e eles precisavam de um inimigo. Seu herói favorito era o príncipe Namor, que combatia o nazismo nas páginas do Gibi Mensal. Ela era tão pequenina que, todas as vezes, precisava mostrar a certidão de nascimento à entrada do cinema, para poder assistir o capítulo semanal do seriado em cartaz. Depois, ela passava a semana com um cliffhanger na boca do estômago, embora não soubesse ainda o significado desta palavra. Ela gostava muito também do Capitão Marvel. E toda a família Marvel! A menininha nunca teve uma boneca. – Por que nunca lhe deram uma boneca? Então, ela dava um jeito: cantava cantigas de ninar para uma abóbora, a qual ela levava ao colo, enrolada em uma manta de tricô. Ela sonhava, talvez ainda sonhe, com um realejo, mas um realejo que fosse somente dela, com as notas metálicas de uma valsa vienense que jamais tem fim, com um macaquinho amestrado, de colete vermelho, de detalhes dourados. Vendo a tristeza da menina, tio João recortou para ela, de uma revista, importada da França, um realejo. E a menina andava para cima e para baixo com aquele realejo maravilhoso, de papel, sonhando a sorte de todos aqueles que a sonhavam. A menininha queria porque queria ir ao circo com seus pais, mas eles não queriam levá-la à sessão da noite. Então, ela enfiou um grão de feijão em cada buraco do nariz. Em vez do circo, foram todos parar no consultório médico, para a retirada dos grãos de feijão do narizinho da menina. Todas as vezes que a reencontro, ela aproveita a ocasião para recitar, cheia de graça, um reclame que se ouvia no rádio de então: “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado. E, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rhum Creosotado”.