quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

A CASA AMARELA DA RUA XV



por Edson Negromonte

A primeira vez que entrei na casa amarela da rua XV foi um atordoamento, antes mesmo de ultrapassar o portal. O velho sobrado de três andares era assim chamado não somente pela cor característica e discordante (o restante do casario alternava entre azul e rosa, com detalhes em branco, como se houvesse um acordo tácito entre proprietários), apesar de esmaecida pela ação do tempo, mas também devido ao despeito e maledicência dos moradores da principal rua pela imponência da vetusta construção de inícios do século 18. Eu tinha jurado à minha mãe que nunca entraria naquela casa, a qual era associada a bruxarias e ritos satânicos, e desvios sexuais da pior espécie. (Minha mãe, todas as vezes em que se tocava no assunto “casa amarela da rua XV”, fazia questão de contar, como advertência, sem esquecer do pelo-sinal, a história do doutor Wellington, que viu-se obrigado a mudar para Torres do Pilar, uma cidade próxima, depois que a sua esposa Cinira teve um ataque histérico, ao presenciar os preparativos para um sabá, sob direção do próprio Senhor dos Infernos, com bruxas da mais alta patente, chegando aos montes, montadas em vassouras. O idoso casal era vizinho de frente da casa amarela da rua XV). Mas não pude, não pude mesmo, recusar o convite da minha colega de classe, aliás, mais do que isso, irmã da minha eterna paixão, a melancólica Carmila, das belas sobrancelhas espessas, que contava, naquele tempo, treze anos de idade. Eu era já um rapazola de dezessete anos. À primeira vista, olhada de fora, a casa amarela da rua XV parecia-se arquitetonicamente com todas as outras casas da rua, todas da época de fausto da cidade. Mas um olhar acurado seria capaz de perceber a gárgula cinzenta, corroída, miúda, que gorgolejava prazenteiramente em dias de chuva intensa, horrivelmente disfarçada no alto do telhado, na cumeeira, como a fiel depositária dos segredos inconfessáveis da família em cuja casa tinha pousado.

A possibilidade de encontrar Carmila fez com que eu esquecesse as promessas à minha mãe e entrasse na casa, não galgando de um só pulo os cinco degraus que davam para a sala ampla, como eu gostaria de relatar, para demonstrar minha intrepidez, mas, sim, em meio à perturbação e à embriaguez titubeante dos sentidos. Podia-se ver de imediato, apesar do ambiente ensombrecido, um sofá e duas poltronas, comuns, mais uma inusitada otomana, de uma época impossível de datar pelo excesso de rococós e grotescos arabescos, a qual afetava certa frivolidade dos moradores. Em uma cadeira de balanço, de madeira maciça, repousava a visão de um gato branco, incrivelmente peludo, a qual me deixou menos intranquilo: bruxas ou feiticeiras costumam ter gatos pretos: os assistentes dos seus sortilégios, os quais tornam-se fogosos amantes após a meia-noite. Havia ainda na sala um aparelho televisor, que chamou de imediato minha atenção, era muito grande, como eu jamais havia sonhado, tomando boa parte da parede. Imaginei quão maravilhoso seria assistir Ultraseven naquela geringonça. A bola de pelos abriu preguiçosamente os olhos e, ao ver-me, deu um grunhido e desapareceu em direção à cozinha, o esconderijo favorito desses felinos domésticos, sejam suas donas feiticeiras ou madames.

Antes que me recuperasse do susto, algo que, a princípio, parecia uma grande almofada, se mexeu e emitiu um resmungo a um canto mais escuro do cômodo, ao lado de uma das poltronas.

– ... tio Arquibaldo!

Uma coisa amorfa, como um polvo tratado com esteroides, ergueu a cabeça e olhou-me com os olhos mais aparvalhados com que já fui olhado, um olhar terrível que transportou-me imediatamente ao mito de Cthulhu, essa entidade grotesca que me atormenta desde a leitura do conto amedrontador de Lovecraft. Elizabeth segredou-me que o tio passava os dias em frente à TV, sem som. Foi só, então, que notei o mutismo do aparelho.

Elizabeth e Carmila eram as primeiras da família, depois de muito tempo, uma geração talvez, a conviver socialmente, elas iam à escola, e tão somente à escola, e a isso se resumia o seu convívio em sociedade. Aceitei o convite de minha colega de classe, pela possibilidade de ver sua irmã mais nova, Carmila, mas já começava a me arrepender. Elas, as duas irmãs, uma mais bela que a outra, descendiam diretamente do coronel Anibal Días-Fuentes, militar que, para não ser preso e enfrentar um julgamento de cartas marcadas, por traição, durante a Guerra do Paraguai, desertara e dera com os costados em nossa pequena cidade. Aqui, se estabeleceu, sob proteção do Exército Brasileiro, chegando a receber uma condecoração por bravura militar, provavelmente espionagem, em festividade municipal, das mãos eternamente ensanguentadas do Duque de Caxias, responsável pelo genocídio do povo paraguaio.

Foi, então, ao conseguir despregar os olhos do homem-polvo, que tomei consciência de um vulto esbranquiçado em um dos desvãos mais escuros da sala. Fui chegando mais perto daquele corpo imóvel para me certificar se era aquilo mesmo que meus olhos estavam adivinhando. Sim, era um belo animal. Ou melhor, fora um belo animal. Minha razão insistia em sua soberania, mas os temores faziam-me de idiota, lançando-me em um mundo de obscuridades, no qual é impossível aquilatar o que é verdade e o que é fantasia.

– É o cavalo do coronel... – sussurrou Elizabeth, como se sua voz de miasmas, delicada, como se pudesse despertar o equino do sono. – Está empalhado.
– Empalhado e fedido – retruquei.

Elizabeth sorriu amarelo, como se o cavalo do coronel Días-Fuentes (ou mesmo o coronel, há muito falecido) pudesse se ofender com a inoportuna observação. Aliás, poderia dizer maldosamente que a casa toda fedia, apesar de não ter ainda visitado outros cômodos. O cavalo havia sido colocado, como um guardião, à porta de um compartimento contíguo à sala, que identifiquei como uma biblioteca, e, diga-se, uma vasta biblioteca, que rescendia a papel velho e úmido, livros que há muito tempo ninguém manuseava, e um grande atrativo para o meu espírito sequioso de leitura. A entrada da biblioteca era encimada pela inscrição “O tempora, o mores”, que vim a descobrir, mais tarde, folheando um dicionário de citações latinas, ser uma exortação do grande orador Marco Túlio Cícero, contra a depravação dos seus contemporâneos, na Primeira Catlinária, e que vem a significar “Ó tempos, ó costumes”. Aproximei-me, curioso, da porta da biblioteca, quando ouvi um rangido de assoalho, alguém se afastando, escondendo-se, um roçagar de saias. Em meio ao cheiro de mofo que tudo em volta exalava, pude perceber o perfume, o cheiro característico de Carmila, o qual já tivera oportunidade de sentir, lavanda, algo que o valha, que é como a virgem Astreia deve cheirar.

– Vem, Léo! – a voz de Elizabeth despertou-me da imaginação quimérica.

Ao passar por uma porta fechada, Elizabeth segredou-me, baixinho:

– Esse é o quarto da tia Sissi... você sabe, né?

Sim, eu sabia, e quem não sabia?, do escândalo que estarrecera a cidade e arredores. Durante muito tempo, o caso foi comentado. Ainda hoje é. Dona Cisarina, a Síssi, quando mocinha, ficara com uma garrafa de Coca-cola entalada na vagina; seus pais tiveram que levá-la, às pressas, em um carro de praça, que é como os táxis eram chamados ao tempo desse acontecimento, para o hospital. Desse dia em diante, a tão elegante e bem conceituada família Días-Fuentes fechou-se, morta de vergonha, em casa e nunca mais saiu à rua, nem mais abriu janelas. O único contato dos Días-Fuentes com o mundo exterior era através de uma governanta analfabeta e muda, uma apalermada índia guarani, a qual fazia as compras e pagava as contas do mês. A partir de então, muitas histórias maledicentes envolveram a desgraçada família; a maledicência do povo assevera que as irmãs Elizabeth e Carmila são filhas do incesto de dona Alzira com o capiroto, o qual vem a ser, na realidade, o verdadeiro pai das duas meninas.

– Trancou-se por dentro e nunca mais se soube dela, eu escuto uns barulhos de noite, minha irmã diz que são ratos, eu não sei, não sei mesmo, nem quero saber. Quando eu era bem pequena, tinha medo, mas me acostumei. A gente acostuma, né? Nem cheiro ruim vem de lá de dentro. Acho que tia Síssi ainda vive, mas se alimenta de quê? De ratos? – casquinou Elizabeth, com ar de troça.

– Vem, Leo, vem conhecer o meu quarto...

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

A SUSTENTÁVEL LEVEZA DOS BATRÁQUIOS (reprise)



por Edson Negromonte

Quando menina, ela colecionava sapos. Dava-lhes nomes: Pintado, Bolinha, Tigresa, Néfer, Sapopemba, Dalva, Saponáceo, Rubem, Bufo, Hermeto... Este último fora sugerido pelo pai, enquanto admiravam, num dia de chuva, aquele sapo velho, de costas largas, rugosas, a coaxar sem parar, irreverente, aboletado na varanda da casa, em Visconde de Mauá. O pai incentivava o interesse da menina pelos batráquios, presenteando-a com os mais diversos livros sobre o assunto, de ficção, fábulas, alguns recortes de velhas enciclopédias e até uma obra técnica encontrada num sebo. A menina aproveitava qualquer ocasião, principalmente nas reuniões de família, para conversar sobre os sapos, invariavelmente. Desistira de contar sobre a sua paixão para as amiguinhas da escola; elas torciam o nariz, faziam cara de nojo. Como a menina não era de engolir sapos, aproveitava para encerrar a conversa com chave de ouro, contando-lhes como os meninos americanos brincam de esconder sapos dentro da boca.

Sabia que somente o pai era capaz de compreendê-la. Com ele, assistiu na TV à pajelança, promovida pelos índios Raoni e Sapaim, para curar o naturalista Augusto Ruschi, envenenado por um sapo, da espécie dendrobata. O pai, que se tornara aos poucos um expert no assunto, aproveitou mais essa ocasião para esclarecer a filha: o tal naturalista, desavisado, teria beijado uma sapa venenosa, na boca, em busca da sua princesa encantada. Assim, foi a menina crescendo, colecionando conhecimento sobre a vida desses seres aparentemente repulsivos. Descobriu, levada pelo pai, que a literatura e os homens são useiros e vezeiros em associar os pobres sapinhos, assim como outros bichos, principalmente os gatos, com a magia negra; e que nem mesmo os contos de fada têm muito apreço por eles. E que, não os tendo em boa conta, mostra-os invariavelmente como príncipes que precisam do beijo apaixonado de uma doce princesa para quebrar a maldição lançada por uma bruxa malvada. Em sua santa inocência, ela não entendia por que as princesas não podiam simplesmente casar com sapos.

A mais remota lembrança da menina, em relação aos sapos, estava associada à cadeira alta, o pai contando as mais fabulosas histórias do mundo dos batráquios para fazê-la comer a papinha. A mais apreciada de todas era uma história verídica, dos seus tempos de menino, quando ele mesmo fora transformado num sapo-boi por uma velha feiticeira, que morava na floresta próxima à sua casa. A cada vez que era contada, esta história ia se transformando, se desenvolvendo, burilada, tomando caminhos insuspeitados, aproveitando-se das passagens clássicas de outros contos, tiradas dos livros, e outras, corriqueiras, inspiradas no dia-a-dia. O ponto alto era quando o pai, então menino, retornava dias depois para casa, na forma de um, pode-se dizer, sem licença poética, descomunal sapo-boi. Era sempre assim, quando a menina, na cadeira alta, com a boca cheia, o prato quase vazio, estivesse então com lágrimas nos olhos, o pai, com a voz suave, dava início ao já conhecido desfecho, tantas vezes contado e recontado: de como a sua mãezinha, a doce vovozinha da menina, apiedada da sina do filho, curou-o com benzimento e orações, mais chazinhos de erva-doce pela manhã, losna à tarde e boldo-do-chile à noite, e de como ele prometera, dali para a frente, ser um bom menino, não passar mais nem perto da floresta encantada.

– Ah, mas aquela casinha era toda feita de doces, portas de chocolate, janelas de açúcar cândi e telhados de doce de abóbora, uma tentação para as crianças da região.

A menina enxugava os olhos, com o dorso da mãozinha, a boca cheia, o prato vazio, raspado. O pai, então, arrematava a história, contando-lhe que, graças aos cuidados e simpatias da pobre mãezinha, ele fora aos poucos se curando, voltando ao normal, embora às vezes ainda coaxasse durante o sono e que, ainda hoje, mesmo adulto, a visão de um belo banhado lhe dá certa nostalgia.

Descida da cadeira, a menina rodeia o pai, ergue a camiseta dele, passa levemente o dedinho frio pelas suas costas. Fica, por alguns segundos, intrigada, examinando a ponta do dedinho.

– É, papai, você ainda tem as costas meio verdes.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

NANÁ (reprise)



por Edson Negromonte

Os dias eram então extremamente agradáveis, ensolarados e promissores. Mesmo quando cinzentos e enevoados, sabia-se no íntimo que a iminente chuva torrencial, quase diluvial, traria no bojo a venturosa sensação de que tudo estava por fazer, o mundo carecia de cada minúscula peça da sua gigantesca engrenagem. De um momento para outro, o temporal cessaria e o ar voltaria a exalar o característico odor de rosa-musgosa da Índia, enquanto o Colégio Estadual Valle Porto vomitava, em golfadas, bandos de meninos, os quais só perceberiam muitos anos depois esse perfume oriental grudado à memória afetiva, como a craca ao casco enferrujado dos navios.

Nesses tempos, de lanterna à mão, a Poesia ainda rondava as mentes juvenis à procura de um insuspeitado Dante em busca da inacessível beata Beatriz ou um inesperado Coleridge a sonhar com os cavalos velozes de Kublai Khan ou, mesmo, um destemido Ulisses amarrado ao mastro do navio, disposto a se defrontar com o encantatório canto das sereias. Sem saber, rapazes e moças pertenciam a uma antiga seita, cuja palavra de passe era um profundo suspiro de amor. Se fosse amor não correspondido, ascendia-se imediatamente de grau. A grã-sacerdotisa dessa antiga e venerável ordem mística, presidida por Vênus, vivia pacatamente disfarçada em uma adorável professorinha de Língua Portuguesa, na pequena cidade de eternos portos desativados e as lembranças dos faustosos dias de progresso. Nascida Nazira, era ela conhecida por todos como Naná. Bastava entrar na sala de aula e o ambiente anteriormente fétido das funções logarítmicas transformava-se no suntuoso palácio do rei Chariar; ali, seus discípulos seriam capazes de passar quarenta dias e quarenta noites, a navegar nos eflúvios da voz desta Xerazade, vinda diretamente das Mil e uma Noites. À simples pronúncia de seu singelo apelido, resplandecia a lâmpada de Aladim, abria-se a caverna de Ali Babá e descortinavam-se novos mares a Simbad. Era a filha mais formosa do narigudo e pachorrento turco do armazém.

A quase sempre cruel e inexorável passagem do tempo concedera à então balzaquiana Naná uma beleza madura, surgindo-lhe, é verdade, pequenas rugas aqui e ali, as quais ela não se preocupava em disfarçar, aumentando-lhe ainda mais o encanto natural. De olhos amendoados, nariz levemente aquilino e negros cabelos de ébano, muitos perguntavam-se, entre curiosos e ciumentos, por qual razão ela não se casara, abdicando de filhos e netos, essas pequenas criaturas barulhentas que tornam-se desde o ventre o centro das atenções, medos, apreensões e alegrias dos pais. As velhas fofoqueiras diziam, à boca de siri, que na verdade Naná esquecera de casar, de semelhante era o seu envolvimento com os livros. Cativante, ela devotava tamanha paixão à literatura, principalmente a poesia, que as cuidadosas avós chegavam ao cúmulo de alertar as netas, quando as viam com o nariz enfiado nas curiosidades da “Eu Sei Tudo” ou nas páginas do almanaque do Biotônico Fontoura, que cuidassem de bordar ou brincar para não ficarem para titias, como a filha do turco do armazém.

Todas as vezes que radiante a professorinha abria, de par em par, as janelas do quarto, da antiga casa ao rés do chão, onde sempre vivera com a família, as alcoviteiras de plantão eram unânimes em afirmar que algum vagabundo ocupara, durante a noite toda, o seu leito virginal e que se fora, pé ante pé, antes de o sol raiar. Como todos sabem, essas diligentes cronistas da vida alheia nunca dormem e estão sempre atentas para, a qualquer momento da noite, correr às janelas e, no dia seguinte, darem conta dos acontecimentos aos solertes repórteres de calçada. Assim, a cidade toda ficava sabendo que fortuitamente um poeta de renome, vindo da antiga capital federal, deleitara-se com os atributos de Naná. A maledicência é capaz de engendrar enredos mirabolantes e tornar crível, em cada pequeno detalhe, aquilo que já estávamos propensos a fruir em nossas mentes maldosas, deitadas preguiçosamente na rede da condescendência. Mas, venhamos e convenhamos, Naná falava com tanta paixão e tal intimidade sobre a vida desses homens das Letras, que ela também tem a sua parcela de culpa na falação que corria solta pelas ruas de paralelepípedos da tranquila cidadezinha à beira do mar. Se vivêssemos na Sicília, o lençol manchado do sangue da poética noiva noturna estaria exposto na janela, a cada visita, a cada desvirginamento de Naná, mas, como o fado do Destino nos concedeu termos nascido ao pé da Serra do Mar, curiosos os meninos subiam no muro dos fundos do quintal para admirar, entre risadinhas, as suas roupas íntimas, dependuradas no varal, em meio aos lençóis, camisas e vestidos, dançando ao sabor do vento marítimo.

Segundo as crônicas apócrifas, tantos foram os que se divertiram com as carnes tenras de Naná que seria impossível enumerá-los nas poucas páginas deste curto relato. Talvez, um dia, em obra de maior fôlego, eu mesmo o faça, não obstante o que isso implique em descerrar as pálpebras de um passado ainda vivo e pulsante, o que acarretará por certo reprimendas e ações, tanto dos descendentes da professorinha quanto dos herdeiros de vários bardos de fama, tidos até hoje por respeitáveis. Todos os grandes poetas do país frequentaram-lhe o círculo íntimo, acorrendo em massa aos saraus exclusivos, onde, além da declamação de poemas, redondilhas, sonetos, versos brancos, havia audições de violão, com pungentes modinhas e brejeiros lundus, mais melodiosas serenatas ao piano, instrumento que Naná executava à perfeição, como se um anjo celeste dedilhasse a lira em loas ao Criador. Posso dar disso ciência, pois muitas vezes em minha adolescência quedei-me a ouvi-la, do lado de fora, é claro, sob a janela de sua casa, durante intermináveis noites insones, posto que os moradores de nossa cidade, mesmo os invejosos literatos locais, os ditos poetas de província, não eram jamais admitidos ao restrito salão. Creio que essa é uma das razões do falatório das pessoas sobre a imaculada Naná, as quais chegavam às raias de utilizar a palavra “bacanais” quando se referiam aos saraus. De ora em diante, recuso-me a usar o termo referente às festas de Baco de forma pejorativa, mais para não denegrir a imagem daquela doce mulher do que por mero mal-estar literário. Mas, a bem da verdade, devo deixar aqui registrado quantas vezes sonhei inutilmente ser admitido, não digo nem no salão, mas apenas nos corredores daquele atraente solar, cuja impossibilidade levou-me à prática dos primeiros versos, apaixonados e canhestros... Os outros meninos, meus amigos de infância, à imitação dos adultos, desdenhavam, dizendo que não gostariam mesmo de ser admitidos ao convívio daquela gente que só sabia falar de livros, poesia, de astros e estrelas, enfim, de esqueletos de borboletas.

Eu, de meu particular, fiquei muitas vezes também na calçada em frente, encoberto pela má iluminação das lâmpadas de mercúrio, ou sentado no degrau da farmácia, a reconhecer os convivas, através de fotografias recortadas de jornais e revistas. Sobressaltava-me a importância de cada um e, para meu pasmo, descia dos carros até gente dada como morta pelas enciclopédias. Como são inúteis estas coleções de curiosidades! Uma dada noite, surgiram ante meus olhos incrédulos as díspares figuras de Castro Alves, todo dândi, e Olavo Bilac, em cujo paletó percebi nitidamente os vários buracos das insaciáveis traças parnasianas. Nesta noite, foi servido um vinho tão delicioso que um dos presentes chegou a compará-lo à bebida alquímica servida nas bodas de Canaã. Até hoje, sou capaz de sentir o sabor, mesmo sem tê-lo deveras provado. Apesar de tudo, talvez devido à pouca idade, achei a récita tão cacete que adormeci recostado à porta da farmácia.

Extremamente agradáveis eram as noitadas modernistas, quando então a vestal da poesia, aliás, a professora Naná, acendia todas as lâmpadas do salão, de iluminação feérica. Nos primeiros anos da década de 20, os automóveis amontoavam-se, irregulares, de esquina à esquina da rua XV de Novembro, e o ar sempre tranquilo de nossa cidadezinha enchia-se então de ruídos de máquinas, de perfumes franceses, lança-perfume e um vozerio de sotaque paulistano. Era uma gente muito elegante: o gorducho Oswald e o delicado Mário de Andrade, os quais afoitamente julguei aparentados, por terem o mesmo sobrenome, acompanhados da esfuziante Pagu, que, de um momento para outro, tornava-se taciturna, mais Raul Bopp, Graça Aranha, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, e tantos outros, além de um sujeitinho franzino e dentuço que quando não estava recitando um poema gaiato, chamado "Os Sapos", para riso e coaxar de todos os presentes, perseguia as negrinhas da casa. Às vezes, vinha junto com o álacre grupo um jovem desengonçado, a fumar fedorentos charutos, que se aboletava ao piano e tocava algumas peças de inspiração popular, com tratamento erudito, conhecido como Villa-Lobos. Entre todos, uma figura repulsiva atraía a minha atenção: um magricelo chamado Plínio Salgado, a quem muitos se desmanchavam em salamaleques. Anos depois, suas ideias modernistas o levariam a criar, inspirado em Mussolini, um nefasto movimento político, muito bem aclimatado por essas plagas, denominado Integralismo. Sem entrar em demasia no mérito da questão, é necessário esclarecer que o espalhafatoso Oswald de Andrade inspirou-se no Futurismo italiano, liderado por Tomaso Marinetti, poeta de orientação fascista, para criar o nosso Modernismo. Portanto, o fascismo também está na gênese deste movimento. Como as mulheres eram poucas nesses trepidantes saraus, Naná flanava entre os cavalheiros, flutuando feito querubim de porcelana, preocupando-se ora com o cinzeiro cheio de um, ora com o copo vazio de outro, chamando de quando em quando uma das criadas para limpar a escarradeira de louça. À anfitriã, bastavam-lhe os fiapos da animada conversa entre homens tão inteligentes.

Uma das personalidades que mais causou comoção ao menino que eu era foi o mineiro Carlos Drummond, sempre tão sóbrio, tão avesso a panelinhas e dignando-se a viajar do Rio de Janeiro a Antonina, num carro de aluguel para visitar, às altas horas, a nossa tão bem relacionada mestra. Ela era realmente o nosso, meu, orgulho; a pequena Naná recebia as figuras mais ilustres das letras pátrias, mas ninguém me parecera tão ou mais importante que o poeta itabirano. Li recentemente a exegese de um desses falastrões que pululam nas redações dos jornais sobre o poema "No Meio do Caminho", onde o repórter dá conta de que a tal "pedra no meio do caminho" era uma mulher misteriosa, um dos muitos amores de Drummond. Chega o autor do texto a perceber um nome de mulher pictografado em meio aos versos do dito poema. Sim, pode ser mais uma das falácias desses afoitos escrevinhadores, mas como aprendemos no faroeste "O Homem que Matou o Facínora", quando a lenda torna-se fato, "publique-se a lenda". Portanto, d’ora em diante a nossa Naná fica sendo para sempre a musa inspiradora do soberbo poema.

Apesar do peso inexorável da idade, ainda lembro-me nitidamente, lá pelo início dos anos 50, da chegada de três jovens desconhecidos; percebia-se pelos trejeitos que eram poetas. Não eram almofadinhas nem afetados, mas em tudo tinham ares de quem vive no mundo da lua, às voltas com as armadilhas do verso. Quem desavisado por eles passasse, diria que eram advogados ou publicitários, melhor, arquitetos ou engenheiros, pois utilizavam-se com frequência de termos como concretude, plano-piloto... Eram os irmãos Augusto e Haroldo, mais o amigo Décio. Vinham respeitosos pedir a bênção de Naná para a recém-criada seita da Poesia Concreta. Suprema glória! Geração após geração, era à grã-sacerdotisa que os verdadeiros artistas da Nação, aqueles que dão identidade a um povo, vinham pedir o nihil obstat. Conforme os odores etílicos exalados daquele ambiente encantado, sabia-se a bebida oferecida: vinho, para os românticos, ou absinto, para os malditos. Algumas vezes, tomava-se uísque on the rocks, quando eram poetas com inclinações musicais que a visitavam, principalmente Vinícius de Moraes e seu tímido parceiro Antonio Carlos, conhecido mais tarde como Tom Jobim, mas os concretistas, avessos ao álcool, esbaldavam-se mesmo com as garrafinhas de Coca-Cola, adivinhando poesias até no corriqueiro logotipo. Com o advento da geração mimeógrafo, na década de 70, a poesia esvaziou-se e Naná fechou as portas, deixou de receber os pretendentes à sublime arte poética. Nem mesmo o vate Paulo Leminski teve acesso à morada.

Ninguém nunca soube, mas humildemente Naná também era dada à arte de versejar; moderna na alma, romântica no coração e terrível na tradição. Nada alardeava, consciente da própria efemeridade, da pequenez do ser humano e, consequentemente, da sua infinita grandeza. Em folhas de cadernos escolares, pautadas, margens vermelhas, arrancadas, revisando a lápis preto, caneta esferográfica, rabiscos em profusão, verdadeiros palimpsestos, poemas tomando corpo, independentes do corpo frágil e fugaz da poetisa. Palavras transformando-se no corpo palpável de Deus. Em dado momento, que somente ela sabia precisar, mas geralmente no ápice da lua cheia, os cadernos eram embrulhados em grosseiro papel pardo, papel de pão, amarrados fortemente com barbante branco, de algodão, trazidos do armazém do pai, e delicadamente depositados no sótão do casarão onde a família morava, onde Naná nascera, onde ela sempre vivera. Inumeráveis volumes; uma Emily Dickinson dos trópicos entregando a cria aos ratos, às baratas, ao cupim... até que o tempo, o sol, a chuva, novamente o indefectível sol, a umidade, sombra, mofo, o bolor, viessem purificá-la, transubstanciando a solitária alma feminina em dolorosas lágrimas que hoje vêm a ser as brilhantes estrelas dos céus de Antonina, e que vem a ser o céu de todas as pequenas cidades do mundo, reafirmando com precisão a crença tolstoiana de que só é universal aquele que pinta a própria aldeia, o que tange independente de tudo e de todos as cordas do alaúde do coração, do fígado, das vísceras, das entranhas.

O casarão dos Khalil não existe mais; há hoje no local as ruínas enegrecidas de um passado que insiste em murmurar palavras ininteligíveis quando o vento que sopra do mar transpassa as cavidades oculares das janelas do resistente paredão frontal. Um malfadado dia, um incêndio purgativo levou a mobília, as roupas, os retratos, o assoalho, e toda a família adormecida, inclusive a doce Naná, mas, acima de tudo, o romanceiro de uma vida inteira, embrulhado e resguardado no sótão, com rimas ricas, pobres, inusitadas, a métrica intrinsecamente marinha, de preamares, ritmos de caranguejo, as estrofes das ilhas voadoras, seus intervalos harmônicos e melódicos, a pontuação sombria e ligeira, entre variações de allegri e staccati, vírgulas e travessões, sempre em constante e surpreendente harmonia gramatical com o Universo.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

UM VEÍCULO, SIMPLESMENTE UM VEÍCULO


Edson Negromonte

A velhice concede aos velhos, somente aos velhos-velhos, um insuspeitado conceito de tempo, o qual leva à fruição sem culpa dos dias do passado. Assim, depois do sono da tarde, enquanto me acostumava novamente com os pequenos ruídos exteriores, vi desfilar uma parte da galeria de personagens que frequentava o sebo do qual eu tirei, durante muitos anos, o sustento da minha família: o poetastro local ainda olha-me, disfarçada e rancorosamente, por entre as páginas do seu livro de versos, ‘Florilégio”, indignado com o baixo preço que eu colocara em sua antologia; o guri que mocozava entre os seus gibis de super-heróis, com os quais ele entrara, outros gibis de valor mais alto, como se eu não percebesse (fez isso algumas vezes, até que tive de educadamente lhe chamar a atenção. Depois disso, ele tornou-se meu amigo); as prostitutas que faziam ponto na pequena praça em frente e, entre um cliente e outro, iam em busca das revistas populares de histórias românticas (uma delas pediu-me, certo dia, que lhe indicasse um bom livro, estava cansada da xaropada de Sabrinas e Biancas, com a única condição de que, se ela não gostasse do livro, o atiraria na minha cara. Indiquei-lhe “Horizonte Perdido”, temeroso. Tornou-se uma leitora voraz de livros, até que, um dia, comprou o calhamaço “Ulisses”, de James Joyce, por sua conta e risco, e nunca mais a vi); o adolescente tímido que chegou, segurando no braço da mãe, e sem dizer uma única palavra, apontou para o disco raro, de vinil, que estava no expositor, atrás de mim (era “Rocka Rolla”, do Judas Priest, importado. Depois disso, em uma terça-feira chuvosa, ele surgiu sozinho, tirou de baixo do agasalho uma sacola de supermercado, na qual trazia duas fitas VHS, com filmes de Roy Rogers. A partir desse dia, tornamo-nos amigos); a bela lolita, de fartos cabelos negros, e olhos ainda mais negros, que recitava poemas eróticos de Goethe, com um sorriso travesso brincando nos lábios; o comerciante de livros, que os comprava e revendia para clientes seletos, ao qual eu dava um bom desconto, para que ele tivesse uma substanciosa margem de lucro, pagando sempre em dia. Até que me aplicou um golpe de certa monta, utilizando cheque roubado. Encontrei-o mais tarde, na capital, vivendo como mendigo na Praça da Sé; completamente bêbado, não me reconheceu. Consternado, rezei por ele); também aqueles que leram meia dúzia de livros, gabando-se disso, como se houvessem cometido uma proeza intelectual; o físico de renome mundial que ninguém conhecia em sua cidade natal; sua humildade chegava a ser constrangedora. Presenteava-me semanalmente com vários volumes, os mais diversos assuntos, em várias línguas, inglês, alemão, francês; entrava quieto, saía calado, jamais disse uma palavra; o colunista social, com programa na TV Manchete, que ia todos os sábados, à cata de edições antigas de Bolinha e Luluzinha, cuja filha colecionava matérias sobre o pai, em início de carreira, em revistas antigas; os moleques guardadores de carro, de olhos vermelhos de cheirar cola de sapateiro, aos quais eu dava toda segunda-feira uma revista de super-herói, à escolha deles (Capitão América e Hulk eram os favoritos); a cliente que predisse que eu sofreria de Mal de Parkinson, de tanto ficar com a cabeça inclinada para a frente, absorto nas páginas de um livro; o rapazola, em busca dos seus pares, que mal sabia pronunciar o nome de Edgar Allan Poe,e que ficou ruborizado quando o corrigi (tornou-se, desde então, meu melhor amigo); o larápio, de mãos tão leves e rápidas, que enganou-me, durante o troco, levando com ele o seu dinheiro e o meu (levei muito tempo para perdoá-lo); o travesti que trabalhava no Banco do Brasil e que, justamente nos dias em que eu necessitava pagar as contas da livraria, não tendo de onde tirar, ele aparecia, como por encanto, e comprava um lote de discos de rock, de blues e soul, salvando o dia; o advogado que, arrependido, voltou ao sebo para reaver o livro que houvera anteriormente vendido e assustou-se com o alto preço que eu lhe pedira (como explicar a ele que eu comprara o lote todo somente por causa daquele livro e que o restante era legislação obsoleta, em desuso, sem valor nenhum?); o radialista que pediu a minha prisão no ar; o colecionador que me entregou um volumoso pacote, contendo vários exemplares da revista Tico-tico, em perfeito estado, com medo que a esposa os vendesse ao ferro-velho, após a sua morte; o jovem policial civil que a mim atribuía a sua escolha profissional por lhe ter fornecido os livros de bolso, com histórias de detetive, as quais ele devorava; o tímido técnico em eletrônica que contou-me, radiante, que estava construindo um aparelho para entrar em contato com os extraterrestres; a família agradecida por ter vendido ao filho mais velho um livro que ensinava a construir um abrigo nuclear (garantiram que tinha nele um lugar reservado para mim); aqueles que perambulavam por ali, folheando alheadamente os livros, indo embora sem nada comprar, de peito estufado, cabeça erguida, satisfeitos com a sensação de cultura adquirida, somente por respirarem o pó dos séculos que todo sebo detém; e tantos outros mais.

Mas o personagem que mais me tocou, em tudo isso, foi o menino que chegou, um dia, pela manhã, pedindo-me dinheiro para comprar uma coxinha, na padaria ao lado. Disse que não lhe daria o dinheiro, mas que lhe pagaria o salgadinho. Agradeceu e saiu lambendo os beiços, deliciando-se com a coxinha. No dia seguinte, quase no mesmo horário, o menino apareceu novamente. E no seguinte, também. Então, olhei bem para ele e, inspirado pela bondade cósmica, disse:

– Se você continuar assim, pedindo, você vai virar um mendigo, alguém que vive do que os outros rejeitam, você vai viver do resto dos outros. Você quer ser mendigo?

Ele virou as costas, entristecido, e foi embora.

Alguns dias depois, ele reaparece, todo sorridente, com um tabuleiro, pendendo do pescoço, com vários saquinhos de amendoim torrado.

– Quem comprar minduim, senhor?
– Viva, tá trabalhando!
– Eu falei pro meu pai o que o senhor me falou, ele fez três tabuleiros, um pra mim, um pro meu irmão e outro pra ele. Agora, nós tamo vendendo minduim.

Todas as vezes que ele foi me vender amendoim, fiz questão de comprar. Levava os pacotinhos, em forma de cone, feitos de papel de embrulho, para casa, no final do expediente. Meus filhos ficavam contentes com o amendoim salgado e torrado, depois da janta.

Alguns anos depois, saía com as crianças do cinema, onde fomos assistir “Indiana Jones e a Última Cruzada”, e entramos na fila para comprar pipoca, quando vejo o rapaz do carrinho de pipoca chamando-me com um aceno de mão. Fui até ele e vi que aquele rapaz era o menino que vendia minduim no tabuleiro. Não é a raposa que diz ao Pequeno Príncipe: “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”? Pois, foi justamente essa frase que veio à minha mente naquele momento.

– Tá vendendo pipoca agora?
– Sim, esse carrinho é meu e aquele – disse, apontando para um outro carrinho que estava um pouco mais adiante – é do meu pai.

Quanta satisfação ao perceber que as minhas palavras, como sementes, tinham caído em terreno fértil. E isso aquece meu coração de velho todas as vezes que relembro essa história na qual eu fui um veículo para o Cósmico, simplesmente um instrumento. Depois, reencontrei-o em uma quermesse, no pátio da igrejinha de Mato Dentro, durante a festa da padroeira, quando fomos, eu, a mulher e as crianças, comprar amendoim salgado, em uma barraquinha, e uma voz, muito minha conhecida, vinda do carrinho de pipoca, gritou para o molecote que nos atendia:

– Põe os maiores pra ele!

domingo, 3 de setembro de 2017

UMA FABULAÇÃO DO SÉCULO PASSADO



Edson Negromonte

para a minha neta Ayana


Ela era tão pequenina que podíamos chamá-la de menininha, achávamos que ela jamais cresceria. Sofria muito no inverno, quando tinha de ir para a escola, pela manhã, pisando no chão quebradiço, congelado pela geada. Mas, mesmo com todo o frio que fazia, ela não parava um instante. Saracoteava o tempo todo. Nem quando a avó a chamava para limpar o nariz. Então, a vovozinha a fazia assoar em uma das suas anáguas. A avó vestia sempre várias anáguas, umas sobre as outras, como era costume naquela região fria, o sul do país. A menininha chamava carinhosamente a avó de Mãe Velhinha, era a mãe do seu pai, um tropeiro de boa cepa, duro como o cerne de um pinheiro solitário. Mãe Velhinha estava sempre atenta ás peraltices da menina, que gostava de se encarapitar na ameixeira. E, lá do alto, saboreando os frutos amarelos e suculentos, ela cantava bem alto “O Ébrio”, de Vicente Celestino, uma canção popular deveras triste para a pouca idade da menininha, mas era isso que tocava seu coração. Assim, encarapitada no alto da ameixeira, ela também gostava de ouvir as notícias da Segunda Guerra, no rádio ou da boca dos mais velhos, à roda do fogo, à roda do chimarrão. Ela e os irmãos brincavam de combater os adversários da liberdade. Um era o Churchill, outro o Stalin. À menininha, os irmãos impunham o papel do Tojo, o primeiro-ministro do Japão, só porque ela era a menorzinha e usava óculos de aro redondo, e eles precisavam de um inimigo. Seu herói favorito era o príncipe Namor, que combatia o nazismo nas páginas do Gibi Mensal. Ela era tão pequenina que, todas as vezes, precisava mostrar a certidão de nascimento à entrada do cinema, para poder assistir o capítulo semanal do seriado em cartaz. Depois, ela passava a semana com um cliffhanger na boca do estômago, embora não soubesse ainda o significado desta palavra. Ela gostava muito também do Capitão Marvel. E toda a família Marvel! A menininha nunca teve uma boneca. – Por que nunca lhe deram uma boneca? Então, ela dava um jeito: cantava cantigas de ninar para uma abóbora, a qual ela levava ao colo, enrolada em uma manta de tricô. Ela sonhava, talvez ainda sonhe, com um realejo, mas um realejo que fosse somente dela, com as notas metálicas de uma valsa vienense que jamais tem fim, com um macaquinho amestrado, de colete vermelho, de detalhes dourados. Vendo a tristeza da menina, tio João recortou para ela, de uma revista, importada da França, um realejo. E a menina andava para cima e para baixo com aquele realejo maravilhoso, de papel, sonhando a sorte de todos aqueles que a sonhavam. A menininha queria porque queria ir ao circo com seus pais, mas eles não queriam levá-la à sessão da noite. Então, ela enfiou um grão de feijão em cada buraco do nariz. Em vez do circo, foram todos parar no consultório médico, para a retirada dos grãos de feijão do narizinho da menina. Todas as vezes que a reencontro, ela aproveita a ocasião para recitar, cheia de graça, um reclame que se ouvia no rádio de então: “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado. E, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rhum Creosotado”.

domingo, 27 de agosto de 2017

O ESPORTE MAIS POPULAR DO MUNDO


Edson Negromonte

Tenho horror a futebol, horror à bola. E isso no país do futebol é uma aberração. Portanto,admito, devo admitir, sou um freak. Além do mais, coisa estranha, tenho o mesmo nome do Rei do Futebol. Não entendo por que, coincidentemente, meu pai deu-me o mesmo nome de Pelé, dois anos antes de ele estrear na Seleção. Logo eu, incapaz de simplesmente chutar uma bola. Pode parecer algo simples dar uma bicuda em uma bola, mas não é. Creiam, não é. Bem que o padre advertiu meus pais, na pia batismal: – Isso não é nome de cristão! Nome de cristão é José, Paulo, João!
O horror ao futebol, ou até o horror à bola, a qualquer esporte ou brincadeira que envolva esse corpo esférico conhecido como bola, pode ser algo mais profundo, pois causa-me, hoje, no mínimo, apreensão, mas na infância e, principalmente, na adolescência, causava-me aversão, repugnância. Tanta, a tal ponto, que sou incapaz de distinguir de imediato o que é, na TV, uma partida de vôlei ou basquete, sem antes raciocinar e recorrer à palavra basket, que, em inglês, significa cesta, cesto. Mas esse horror não me impedia, mesmo na infância, de saborear certas histórias relacionadas com o futebol, a mim contadas por meu pai, como a da origem do nome do chocolate Diamante Negro, assim batizado em homenagem a um craque do seu tempo, Leônidas, o criador do gol de bicicleta, uma proeza futebolística. Ou aquela que um amigo, sabedor do meu horror à bola, contou-me sobre a criação do basquete, que este esporte havia sido criado pelos vikings, os quais arremessavam, em vez de bolas, patos ao rochedo, que derivou para pato ao cesto, para vir a se tornar modernamente o basketball. Mas, infelizmente, acabei verificando que a história, apesar de bem engendrada, era mentirosa. A curiosidade sempre me conduziu aos mais diversos assuntos, mesmo ao futebol, em menor grau, é claro, muito embora jocosamente afirme que não consigo, em um álbum de figurinhas, distinguir entre Garrincha e Ademir da Guia.

A minha primeira lembrança, talvez a mais antiga, sobre futebol, é a de um Natal, em que eu devia ter no máximo oito anos de idade. Meu pai presenteou-me com uma bola de capotão, a qual meus amigos, cobiçosos, asseguravam ser linda. Indignado com o presente de mau-gosto, a minha reação imediata, na área de recreação, em frente ao prédio, onde os meninos se reuniam para exibir os presentes que o bom velhinho lhes trouxera, foi dar uma bicuda (por incrível que pareça, a raiva me fez conseguir essa façanha) em direção aos enormes cáctus do jardim, direto aos pontiagudos espinhos. Pressuroso, o zelador do prédio resgatou a tal bola de capotão do meio do espinheiro:

– Desse jeito, você vai acabar furando a bola!
– Quer pra você? É sua! – respondi.

Onde meu pai estava com a cabeça para me presentear com aquela bola de couro tão cara? Quantos gibis eu poderia ter comprado! Logo ele, que me abarrotava com todos os almanaques de fim de ano!

Nas aulas de Educação Física, as quais, naquele tempo, eram obrigatórias, o professor já chegava apitando o início de uma partida, para alegria dos meus colegas, que, antes disso, já tinham ajeitado os times. Eu dava graças a Deus por nunca ser escolhido e mofar, não no banco dos reservas, mas no dos enjeitados, até que, um fatídico dia, o professor apiedou-se de mim e forçou um dos times a me escalar. Em campo, eu fugia da bola, como se aquilo fosse um corpo incandescente, um meteoro. Mas a bola, aparentemente também apiedada, resolveu me conceder a chance de brilhar em campo, diante de todos ali presentes, o professor, os colegas, as garotas. E ela, a bola, veio em minha direção, apaixonada, entregue, e os meninos gritaram: “Chuta!”. E eu, sem entender direito o que estava acontecendo, chutei.

– Gol! – gritaram todos.

Sim, eu fizera um gol, eu estufara a rede! Mas, azar dos azares, tinha sido contra. Sim, um gol contra! Retirei-me do campo, da quadra, sob aplauso de uns e vaia de outros. O professor exigiu que eu voltasse e, se não o obedecesse imediatamente, iria enfrentar, no final da aula, o corredor polonês. “Corredor polonês, que merda é essa?” Qualquer coisa era preferível ao maldito futebol. Dolorosamente, descobri que o tal corredor polonês, também chamado de corredor da morte, era uma formação de duas fileiras, uma de frente para a outra, pelas quais se tinha que passar, recebendo socos, cascudos e chutes. Ao chegar em casa, cheio de hematomas e escoriações, meu pai levou-me à direção da escola, exigindo explicação para aquela barbaridade. Como tudo na vida tem os lados positivo e negativo, nunca mais fui obrigado a jogar bola nas aulas de Educação Física. Na Grécia Antiga, eu seria filósofo, que, presumo, fossem atletas fracassados.

A ojeriza pela bola só foi aumentando; bastava eu estar passando próximo de um campinho, onde meninos normais se divertiam batendo uma bolinha, uma pelada, para que a desgraçada percebesse a minha presença e viesse rolando em minha direção. Chegava a cair aos meus pés, toda oferecida. E, quando os meninos gritavam:”Chuta!”, eu olhava para eles com a boca aberta e ar de retardado, sem compreender o que queriam de mim. Às vezes, chegava a fazer-me todo torto, um aleijão, imitando Lon Chaney, em “O Corcunda de Notre-Dame”. Enquanto tranquilamente me afastava, na minha melhor imitação de Quasimodo, no meu íntimo, eu apostava que nenhum daqueles meninos sequer supunha quem era Alex Raymond. Ou Hal Foster. Ou Ray Davis. Ou Ziraldo. Ou Benício. Ou Walmir, os craques da minha Seleção

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

REDESENHANDO A VIDA


Edson Negromonte

para o meu neto Dimitri


O desenho me acompanha desde a mais antiga lembrança de minha infância, por volta dos três anos de idade ou até menos. Desenhar era, para mim, vital, minha arma, um Colt.45 contra o mundo. Foi o modo que encontrei, intuitivamente, de não me desesperar com as longas noites da insônia que me acometeu durante toda a infância e parte da adolescência. Ainda posso ver, com muita nitidez, o menino debruçado sobre um caderno pautado, enchendo-o com garatujas, e a figura da mãe, encostada no umbral da porta, de camisola branca, a cabeça inclinada, penalizada com a insônia do filho. Ainda tenho nítida a mesa enorme,de tampo escuro, as oito cadeiras sonolentas e incomodadas com a claridade do lustre de cristal; mesa que, com o passar dos anos, foi ficando cada vez maior, tomando conta de toda a sala de jantar, dos outros cômodos, do solar onde morávamos, em Blumenau. Ainda guardo carinhosamente na memória o gabarito do contorno de um cavalinho, presente do meu avô materno, com o qual cobri, uns sobre os outros, folhas e mais folhas, preenchendo o contorno ao bel-prazer do meu traço infantil. Além dos cadernos, eu preenchia também as cadernetas de receita de minha mãe; uma dessas cadernetas, de capa preta, ainda rolava pelas gavetas de sua casa há alguns anos atrás.

Depois, em Niterói, para onde nos mudamos, no início da década de 1960, lembro-me de uma passagem com o quitandeiro da esquina, a uma quadra do prédio onde fôramos morar, no bairro de Icaraí, à avenida Vital Brasil. Para aplacar a minha fome insaciável de histórias em quadrinhos (nessa época, as bancas eram abarrotadas por gibis para todos os gostos, e eu queria comprar todos, desde os de faroeste, os meus prediletos, até os infantis), eu vendia vidro para o garrafeiro, que passava gritando o seu pregão pelas ruas do bairro, e as revistas semanais e jornais para o homem da quitanda, o qual pagava um preço melhor. Assim, uma revista Manchete, cuja capa estampava o general, então presidente da República, Castelo Branco, foi parar na quitanda. Folheando a revista, o quitandeiro encontrou um desenho que eu fizera da carantonha do general, o qual ele colou na parede que ficava às suas costas. Devia estar bem feito, pois, quando lhe perguntavam quem o tinha feito, ele respondia, todo orgulhoso e sorridente: “Eu mesmo”. Calhou de minha mãe estar presente em uma dessas ocasiões. Ela, prontamente, disse a ele: “O senhor está mentindo, esse desenho é do meu filho!”. E calhou também de eu, enquanto ela fazia as compras, estar folheando as novidades na banca ao lado. Ela, de imediato, me chamou: “Esse desenho é seu ou não é?”. Entre envergonhado e penalizado, resmunguei: Mãe, deixa o homem dizer que é dele. “Não deixo não, o que é certo é certo, e a verdade deve ser dita”. Fazer o que diante de tal argumento? Nunca esquecerei da cara de tacho do quitandeiro, por trás do vasto bigodão.

Também em Niterói, na saída da escola, eu costumava gastar um bom tempo na banca do meu amigo Bill, um adulto que conversava comigo de igual para igual. Lógico que a conversa só poderia girar sobre quadrinhos. Bill pedia sempre para ver os meus desenhos. Ele dizia que eu desenhava muito bem, e vindo de quem vinha o elogio, do Bill!, o dono de uma banca de aço, na esquina da escola, (Nossa!, esse era o meu ideal de vida: ser dono de uma banca todinha minha!), é claro que isso me deixava muito contente. Um dia, fui surpreendido com a proposta de que eu fizesse, no muro, ao lado da sua banca, o desenho de vários heróis, um mural. Bill garantiu que providenciaria o material necessário e que eu poderia desenhar os heróis que quisesse, desde que eu incluísse, entre eles, o Fantasma, o seu favorito. Sem problema, Bill! Assim, preenchi aquela parede, traçando com giz branco (depois, Bill faria o contorno e preencheria com tinta, em um autêntico trabalho de equipe), com as figuras do Cavaleiro Negro, Flecha Ligeira, Texas Kid, Águia Negra, Mandrake, Black Diamond, Buck Jones, Ferdinando, Tarzan e, evidentemente, o Espírito que Anda ou Fantasma Voador, como também era conhecido o Sr. Walker.

Uma outra passagem da minha infância, de que gosto muito, é a que envolve a madre superiora da escola em que minha tia lecionava. A freira, conhecedora dos meus dotes artísticos, pediu que eu desenhasse uma história em quadrinhos, a qual ela deixaria exposta na escola. Na época, eu estava proibido de desenhar faroestes, o meu tema favorito, no qual eu me esmerava, caprichando nas cenas de duelo, nos tiroteios, enforcamento etc. Convencido pelos amigos e parentes, “preocupados” com a minha educação (uma outra tia chegou a vaticinar que eu seria um débil mental, de tanto ler gibis), meu pai tinha me proibido a leitura de histórias violentas. Logo as minhas favoritas. Sorte que não proibiu de assistir na TV as séries de faroeste, como Bat Masterson, Paladino do Oeste, O Homem do Rifle, Bonanza, nas quais morria gente a torto e a direito. Então, a pedido da bondosa freira, engendrei a mais violenta e inescrupulosa história com o pato Donald e seus sobrinhos, com tiroteio e pancadaria, que culmina com a expulsão, a pontapés, do tio Patinhas da sua caixa-forte, pelos sobrinhos, os quais se apropriam da fortuna do velho sovina. O último quadro mostra os sobrinhos tomando um merecido banho na piscina de moedinhas douradas. Então, ao perceber que, sem saber, eu estava enveredando, intuitivamente, pelo perigoso caminho do comunismo, meu pai suspendeu a proibição, acabando por me presentear no Natal, com vários pacotes, contendo todos os almanaques de férias que conseguira encontrar; e isso, naquela época, não era pouca coisa.

Outra passagem que gosto muito é a do caderno de Religião. A primeira folha deveria ser deixada em branco, onde poderíamos fazer um desenho, aqueles que soubessem desenhar (que merda! Eu sinceramente acredito que todos sabem desenhar, basta ter confiança em si mesmo e premeditar o traço seguinte, como o golpe de um samurai), ou colar uma decalcomania. Evidente que eu me esmerei no meu desenho, como todo moleque eu ansiava pelo aplauso dos mais velhos. O professor levou o meu caderno para o diretor, o diretor chamou o meu pai (ele exigiu que fosse o meu pai). Quando o diretor pediu a presença do macho da casa, eu já comecei a perceber que tinha cometido uma cagada qualquer na ilustração da primeira página do meu caderno de Religião. O resultado da conversa entre meu pai e o diretor foi a minha transferência para outro colégio. Inusitadamente, para um colégio de freiras. Ah, a ilustração? Tudo isso por causa de um desenho que mostrava um simples cemitério, com uma única lápide de pedra, na qual constava a inscrição “Aqui jaz Búfalo Bill”.

E, por ora, é só! Depois, eu conto mais.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

NO BAZAR CHAHRIAR


Edson Negromonte


Nesta cidade, surgem bazares do nada. E também desaparecem num passe de mágica. Estão ali um dia e, no seguinte, hocus pocus, ninguém sabe dizer onde foram parar. Assim, adentrei em um que eu nunca tinha visto. Sim, em bazares se adentra, não se entra simplesmente, embrenha-se. O bazar será sempre um local mágico, de sombras, digno das mil e uma noites da rainha persa Xerazade, um lugar ao qual se vai, não em busca de algo específico, mas esperando ser surpreendido por algum objeto que sua imaginação, por mais inventiva ou destrambelhada, jamais ousaria supor que encontraria ali, em meio a toda sorte de insignificâncias. Geralmente, são coisas pequenas, tão pequenas, quase diminutas, que somente a você mesmo dizem respeito. Ontem, tão importantes para alguém, que provavelmente já morreu, tornam-se invisíveis de um momento para outro, até que despertem o interesse de alguém capaz de vê-las: as pessoas de alma sensível às delicadezas da vida.

Assim, adentrei o Bazar Chahriar; por uma porta mais estreita que o geral das portas das casas de comércio deste lado do mercado, as quais já são de sobejo exíguas. Foi, então, que pude perceber o mais amplo salão, impossível de imaginar quando se está do lado de fora. Já outras pessoas estavam ali, conversando, trocando ideias, enfim, tagarelando, mulheres e crianças; o único homem no ambiente, munido de um plectro, feito de escama de peixe, tocava o saz, um tipo de alaúde turco, alheio a tudo, entretido com as sonoridades de si mesmo. A um bazar, as mulheres geralmente vão em busca de roupas, tecidos, utensílios de cozinha, peças de adorno, enquanto às crianças tudo interessa, tudo é novidade. Elas, as crianças, assim como eu, também se extasiam com os objetos que, anteriormente, dormiam nos desvãos das escadas das casas, esquecidos. Por isso, evito olhar diretamente para os olhos dessas crianças nos bazares, temos interesses comuns; elas são perigosas. Depois de andar pelo salão, fazendo-me de indiferente, sem nada ter chamado ou despertado minha atenção (sinto-me pesaroso quando isso acontece, é como ter ido a Istambul e não ter erguido os olhos para o céu e, por isso, e somente por isso, não ter avistado os altos minaretes da Mesquita Azul), eu estava pronto para sair quando o interior de uma cristaleira envidraçada chamou minha atenção. Dirigindo-me à cristaleira, magnetizado por algo que ali entrevi, abri primeiro uma das portas, a da direita, delicadamente, como abrisse o portão enferrujado de Firdous, o paraíso no Alcorão, evitando assim chamar a atenção de algum infante infiel. Deve-se proceder assim em bazares, e tome isto como um conselho valioso para o dia em que sua alma o surpreender com o desejo incontrolável de se aventurar nesse meandro de mistérios. Se eu houvesse aberto as duas portas do móvel ao mesmo tempo, elas certamente fariam um ruído característico, algo como um muezim cego anunciando do alto do minarete a prece diária (Alá é grande!), que poderia soar como convite a que alguém compartilhasse comigo daquilo que eu mesmo ainda não compreendia. Portanto, o melhor a fazer, nesse caso, é não chamar a atenção de ninguém para aquilo que pode vir a ser a revelação: o chamamento para a primeira prece da manhã, estritamente pessoal, entoado pelo escravo da Abissínia, Bilal ibn Ribah, aquele que vem a ser o primeiro muezim do Islã.

Vi, então, na estante, alguns discos de vinil. E,neles encostado, um pequeno volume que continha uma velha caderneta, de capa de couro marrom, com as beiradas gastas, além de algumas folhas à parte, enfeixadas por uma fita de gorgurão. Puxei os discos, para examiná-los e, para meu espanto, eram todos iguais. Ou melhor, quase todos. Um deles chamou minha atenção pela aparência, podendo-se dizer pela “versão original” Os outros eram reedições tardias e baratas daquele. O original tinha a capa um pouco maior, questão de centímetros (detalhe perceptível para os aficionados), de papelão mais encorpado e cores mais vivas (berrantes? Não, não chegavam a tal extremo), o amarelo tomava grande parte da superfície da capa. O disco em questão era a trilha sonora de um filme, sobre o qual eu nunca ouvira falar, e a ilustração da capa oscilava, com volúpia, entre um close de Judy Garland e uma saltitante Julie Andrews. Enquanto os outros discos exibiam o preço de dez reais, este tinha o absurdo valor de mil e quatrocentos e quarenta somonis, anotado na beirada interna da capa. De que país seria essa moeda? Mesmo intrigado com o somoni, separei o disco. Sem saber o valor em moeda corrente do país, eu me vi temeroso de pechinchar, apesar de ser o costume nos bazares: o comerciante sente-se ofendido se o cliente não regateia. Com certeza, era um disco muito raro (eu nunca tinha ouvido falar nada sobre ele, nem mesmo podia ser considerado “mosca branca”, pois não havia uma única linha, por mais vaga que fosse sobre tal preciosidade nos melhores catálogos oscilantes de trilhas sonoras do cinema americano). Mas não barganhar, deixaria o vendedor de orelha em pé. Enquanto admirava a capa, que continuava, como um pêndulo, indefinida, alternando-se, ora era “O Mágico de Oz”, ora “A Noviça Rebelde”, um 78rpm escorregou de dentro dela, direto para a minha mão. O velho disco de carvão continha a música-tema do filme (disso, não sei dizer como, eu tinha certeza, embora o selo tivesse sido borrado de propósito). Mais tarde, pude verificar que a letra fora vertida para o português, e era cantada divinamente por Francisco Alves, mas essa gravação apócrifa também não consta de nenhuma biografia do cantor. Junto com o 78rpm, veio, além do convite para a avant-première, que ocorreria dali a sete dias no Cine Ópera, uma filipeta, na qual estava escrito, em impecável caligrafia feminina, a seguinte advertência: “Aquele que esta chave encontrar, deve também levar consigo o meu diário e as notas esparsas, coletadas durante toda uma vida, para a compreensão do grande enigma do que pode vir a ser o ser humano, a partir da compreensão do que é um ser humano”. Evidentemente, verifique novamente, com muita atenção, todos os outros discos. Agora, as capas eram de um colorido tão esmaecido que não se podia definir sequer a ilustração e, muito menos, o título. E nada, absolutamente nada de extraordinário, continham. Eram simulacros, representações grosseiras do original, para confundir os falsos buscadores do vinil sagrado.

Fui até o balcão, pronto para a pechincha do dia, levando comigo disco e diário. A senhora que me atendeu, de maquiagem pesada e perfume extremamente doce, enjoativo, inebriante, de rosa musgosa do Tajiquistão, fez-me sinal de silêncio. E, tirando o dedo indicador dos lábios, disse:

– Este disco e o pacote que o acompanha pertenceram à dona Izildinha, e não se pode levar um sem o outro. Portanto...
– Eu...
– Ouça, somente ouça. O preço exorbitante é somente um artifício para afastar aquele que não fosse o iniciado, prestes a galgar mais um degrau na escada da fraternidade.

quinta-feira, 27 de julho de 2017

MARIA AMÁLIA DURANT



Edson Negromonte


Vá querer entender as pessoas ao seu redor e você acaba escrevendo um conto. Ou uma crônica, sei lá. O que importa é deixar isso registrado, mesmo que não sirva para nada, mesmo que o tempo, esse devorador voraz de papéis, se encarregue de devolver a sua narrativa ao seu devido lugar. Ao limbo? Ao nada! E, justamente por isso, escreverei hoje sobre a poetisa Maria Amália Durant, tio Mario e meu pai, sem a mínima garantia de sobrevivência.

Se você vasculhar as enciclopédias e a internet, encontrará muito pouco sobre Maria Amália Durant, levando-se em conta o que ela significou para mim. Antes de sabê-la escritora, eu a vira a primeira vez no apartamento de cobertura de seu pai, o marechal Heliodoro, em Copacabana. E foi o que bastou para nunca mais tirá-la da cabeça. Ela era de uma beleza estonteante! Isto pode ser comprovado no anúncio dos cigarros Capri, publicado na quarta capa das revistas de maior circulação da época, incluindo a Realidade. Pode-se saber também que ela estreou com o livro de poemas “Embaúba”, de 1974, comentado por João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, seguido por “Canção do Motim”, de contos, publicado no ano seguinte, e que lhe rendeu o prêmio Jabuti. Após um hiato de quase dez anos, vêm a lume “Tigres na Varanda” e “Sob a Chuva, em Damasco”, ambos de 1984. Sabe-se ainda que participou da coletânea de contos eróticos femininos “Clitoridianas”. Maria Amália exerceu a diplomacia nos Estados Unidos, França e Angola, além de Carlo Domenico dedicar a ela o poema “Rubai Impaciente”.

Maria Amália era uma prima distante, em terceiro ou quarto grau, que fazia-se presente, sempre que podia, nas reuniões familiares. Todos a amavam, principalmente os homens; onde estivesse, podia-se contar como certa uma roda de cavalheiros ao seu redor, os quais riam muito das suas historinhas, por mais insignificantes que fossem. Ela magnetizava as atenções, e isso despertava a inveja das outras mulheres, principalmente a de minha tia Doralice, irmã mais nova de minha mãe. O rancor de tia Doralice chegava ás raias de desmerecer o seu livro “Embaúba”; o qual ela enviara, com dedicatória carinhosa, para os meus avós. Surpreendi-me com os comentários de que aquilo não era poesia, que era uma mixórdia de palavras sem nexo, querendo parecer inteligente, de que ela jamais vivera entre os gigantes krenakarore etc. Minha personalidade ressente-se da falha de se interessar por aquilo que os ditos bem pensantes insistem em ridicularizar. E qual não foi a minha surpresa ao deparar com uma poesia de alta voltagem, disposta em versos mallarmaicos. Ali, exatamente naquele momento de epifania, eu me apaixonei perdidamente por Maria Amália. Na ignorância dos quinze anos, eu desconhecia outras mulheres que escrevessem poesia. E a bela foto de Maria Amália, na orelha do livro, era um convite aberto aos devaneios de um coração juvenil, aflito pelo amor das mulheres um pouco mais velhas; a minha mais nova musa contava então 34 anos. E o que seria da poesia se as musas fossem possíveis?

Eu só pensava em Maria Amália. E eu que, depois da morte de tio Mario, me achava o único gauche restante na família, tinha agora companhia. E que companhia! Quando tio Mario, o meu exemplo de insegurança, era vivo, passávamos as manhãs conversando sobre poesia e poetas e livros. E sobre amores não correspondidos. Eu nunca soube que tio Mario tivesse escrito um único verso, mas ele era um leitor costumaz de poesia, capaz de recitar poemas longos de memória.

Minha cabeça girava à mais leve lembrança de Maria Amália, seu corpo esguio, o cabelo curto e loiro, o cigarro entre os dedos... Foi, então, que mamãe resolveu me contar sobre o romance de Maria Amália e papai. Meu pai era bancário, eterno auxiliar de escrita, era assim que ele ganhava a vida, era assim que ele abastecia a geladeira, mas o que lhe dava prazer mesmo era escrever novelas de rádio. Era assim, e somente assim, que ele sentia-se realizado, mesmo que seu nome não fosse pronunciado na abertura; papai era um ghost writer, e, mais que tudo, papai era um indivíduo canhestro, foi dele que provavelmente herdei essa inaptidão para a vida prática. Dele e de tio Mario, seu irmão mais novo. O banco não permitia que os seus funcionários tivessem outra ocupação profissional. E papai, conforme contaram seus colegas, além de engendrar as tramas mais aventurescas, dignas das melhores novelas cubanas, ainda fazia as vezes de sonoplasta, ou contrarregra, como era chamado na época esse profissional.

Papai era capaz de criar um temporal esfregando, próximo ao microfone, uma folha de papel celofane, ou um rio que corresse tranquilo em seu leito, agitando levemente as mãos em um balde cheio de água, ou um incêndio crepitante e devastador, amassando ritmicamente uma folha de papel sulfite, ou o tiquetaquear de um antigo relógio de parede, simplesmente batendo o lápis contra a aliança, para ilustrar a passagem do tempo. O grande sucesso de papai, na Rádio Clube Torres do Pilar, foi a novela de aventura “O Avantesma”, uma mistura bem-sucedida de dois heróis americanos, o Fantasma e o Sombra, com mais de 400 capítulos, que eletrizavam os ouvintes, com índices de audiência superiores aos da Rádio Nacional, do Rio de Janeiro. Assim foi que Maria Amália caiu de amores pela sua figura esquelética e carismática. Assim foi que ele a ensinou a dirigir no seu Ford Prefect, o carrinho inglês pelo qual ele tinha o maior zelo. Não que papai fosse bonito, não era, mas era, como se dizia naquele tempo: um tipo. Maria Amália era uma adepta do existencialismo, era mulher de um tempo em que as mulheres apaixonavam-se pelo intelecto de um homem. Se não, como explicar Simone de Beauvoir e Sartre, e Jane Birkin e Serge Gainsbourg. E assim ela, que acreditava convictamente no amor livre, despediu-se de papai e mamãe, toda sorridente, sem culpa nenhuma, com ares de menina levada.

E, passados tantos anos, nesta manhã de inverno, de sol tímido, filtrado através de colossais folhas de bananeira, ainda posso ver tio Mario, quietinho, sentado em uma cadeira no quintal, aquecendo o corpo franzino, como se ainda estivesse no quintal da casa em Arequipa, no Peru, alheio a tudo, assuntando o carreiro das formigas. Percebendo-me, faz um sinal, pedindo que me aproxime. Então, segreda em meu ouvido, em tom confessional, como fazia quando queria comigo compartilhar, e somente comigo, uma das suas sublimes descobertas, uma das suas pequenas iluminações:

– O amor, como o conhecemos, como o conhece o homem moderno ocidental, é ficção, é uma invenção de Arnaut Daniel.

E isso, felizmente, me redime de todos os amores, correspondidos ou não. E a última vez que eu soube de Maria Amália, ela estava morando na vila grega de Oia, na ilha de Santorini.


quarta-feira, 19 de julho de 2017

ADAM WEST ou O MENINO QUE TINHA MEDO DO BATMAN




Edson Negromonte

Agora que os órfãos de Adam West já o prantearam, tecendo-lhe as merecidas loas, é chegada a minha hora de chorar a sua morte. Sou assim mesmo, prefiro não reagir no primeiro momento. Tenho de deglutir, assimilar, para não falar ou escrever bobagens, sob o impacto da notícia; quando a recebi, através da TV, disse somente: – Ah, não!

Adam West foi uma personalidade, ou personagem?, tão importante na vida dos meninos ocidentais de meados da década de 1960, e da década seguinte, que jamais pude supor a sua morte, mesmo tendo a única certeza de que todos morreremos um dia, sejamos cidadãos comuns (e ninguém é um cidadão comum ou somos todos cidadãos comuns) ou heróis, sejam eles de papel ou televisivos, sejam eles históricos e reais. Sim, você sabe, estou falando do, para mim, ainda definitivo Batman. Os meninos dos anos 80 foram brindados com o espetacular filme de Tim Burton, baseado na versão de Frank Miller, no qual o homem-morcego recebe o título de “cavaleiro das trevas”, dando-lhe novo fôlego e ressuscitando o combatente do crime para uma nova geração, a qual, acostumada a atores marombados, tipo Schwarzenegger (Conan) e Stallone (Rambo), fazia pouco caso do físico de Adam West, referindo-se a ele como “aquele Batman barrigudo”.

A falta de informação dos meninos de 1980 não lhes dava a visão histórica de que, antigamente, os heróis não precisavam ser abrutalhados ou musculosamente deformados; à custa de esteroides. Basta lembrar que o Super-homem, o homem mais forte do mundo, em uma série clássica dos 1950, era vivido por George Reeves, que não era nenhum ser fora do normal, nem excessivamente espadaúdo. Mesmo o audacioso capitão Kirk, da série “Jornada nas Estrelas” (Star Trek), aquele que ousou ir onde nenhum homem jamais esteve, tinha uma pequena protuberância abdominal. Outro personagem que me vem de imediato à mente é Jim das Selvas, vivido por um Johnny Weissmuller já maduro, com uma certa pancinha. Mas mesmo nos filmes em que o jovem Weissmuller vive Tarzan, o homem-macaco criado por Edgar Rice Burroughs, ele não era nenhum amontoado de bíceps e tríceps. Curiosamente, Johnny Weissmuller tinha síndrome de Down, a qual foi amenizada, por orientação médica, com exercícios de natação; ele chegou a ganhar cinco medalhas de ouro como campeão olímpico. Somente o incrível Hulk tinha permissão para ser grotescamente musculoso, interpretado por Lou Ferrigno, o Míster Universo de 1973 e 1974, fazendo valer a máxima “muito músculo, pouco cérebro”.

E o que um brasileiro contaria de novo sobre Adam West que os livros e sites americanos já não tenham contado e recontado à exaustão, e com muito mais propriedade? Que o menino Adam, aliás, William, este era o seu verdadeiro nome, por volta dos dez, doze anos de idade, ganhou do vizinho uma caixa cheia de revistas e que aquela que mais lhe chamou a atenção foi justamente o gibi de número 27, da série Detective Comics, cuja capa estampava o Batman em ação? Que, adolescente, Adam flagrou sua mãe na cama com o pastor da igreja local? Que o jovem Adam, em início de carreira, no programa infantil The Kini Popo Show, era o sidekick da estrela principal, um macaco? Que Adam West chamou a atenção dos produtores da ABC, quando o viram interpretando o sagaz capitão Q, em um comercial do Quick? Dito isto, a minha contribuição, como brasileiro, deve ser registrar, quase etnologicamente, como o personagem trafega no corrente cultural do País. E, também, nas minhas lembranças.

E, assim, na lembrança dos brasileiros, porque acredito, neste caso, que só falando de mim mesmo é que estarei falando do outro. Em 1969, no IV Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo, o compositor Jards Macalé aterroriza a plateia com a música “Gotham City”, a cidade natal de Bruce Wayne, o alter ego de Batman, arranjada pelo provocador maestro Rogério Duprat, cuja letra de Capinam alerta “Há um morcego na porta principal’, uma metáfora para o horror que a ditadura militar, então no poder, infligia aos brasileiros, prendendo, torturando e matando aqueles que se insurgiam contra ela. A ideia inicial era soltar um morcego em direção à plateia, durante o refrão, mas, devido aos tempos bicudos em que vivíamos, com a polícia prendendo e espancando ao seu bel-prazer, acharam melhor não cutucar a onça com vara curta; teriam antecipado Ozzy Osbourne em pouco mais de uma década. Na literatura, o escritor Roberto Drummond , no livro “A morte de D.J. em Paris”, de 1971, se apropria do personagem pra escrever o conto “A sete palmos do paraíso”.

Meu primeiro contato com Batman foi, como não podia deixar de ser, aterrorizante: em um domingo de sol ,em Copacabana, o vento folheava, desvairado, uma revista do encapuzado, abandonada na calçada. Eu, menino apaixonado por quadrinhos, quando fui pegá-la, sou surpreendido pela figura do morcego, o logotipo do Batman, na abertura de uma das histórias. Temeroso das coisas do Além, tomei um baita susto com a criatura sugadora de sangue (e isso me remete oportunamente a “Nosferato no Brasil”, de Ivan Cardoso”. Onde se vê dia,veja-se noite), coisa que me fez arredio ao homem-morcego durante um bom tempo. Mas o espírito galhofeiro da série camp (eu nunca a vi assim, talvez porque a alma brasileira seja, em sua essência, legitimamente brega), me fez rever os meus conceitos sobre o personagem e o infundado horror que o Batman provocava em minha alma medrosa, até que, em um final de tarde, me atrevi a comprar o meu primeiro exemplar da sua revista na banca. Apaixonei-me para sempre pelo Batman. Tanto, que cheguei a trocar um álbum de 78rpm, da Aracy de Almeida, cantando somente músicas de Noel Rosa, por uma miniatura, da Husky, de 1966, do batmóvel, a qual está avaliada em aproximadamente mil reais. Tanto, que costumo atender o telefone de casa com a frase “Batcaverna, boa noite!”. A série também despertou meu amor platônico por Julie Newmar, a Mulher-gato mais bem-acabada e bem torneada de todas; incluindo Michelle Pfeiffer, e que, apesar de ter gravado todos os 120 episódios da série, cheguei ao cúmulo de gravar, com som original, aqueles em que ela atuava, só para ouvir a hora que bem entendesse a voz sensual da gatíssima Julie Newmar, ronronando: Purrrfect!

quarta-feira, 21 de junho de 2017

AUTO DA FUGA PARA O EGITO




Edson Negromonte
ilustração: Candido Portinari


Na fuga para o Egito, José e Maria viram-se, então, na pequenina aldeia de Antonina, aos pés da Serra do Mar, banhada pelas águas do oceano Atlântico. De repente, o céu mostrou-se excessivamente escuro àquela hora do dia, prenunciando um aguaceiro daqueles. Ao entrarem na praça principal, as altivas palmeiras imperiais, seguidas pelos súditos tamarindeiros, se curvaram à sua passagem. Em frente ao coreto, José avistou uma bica. Matou a sede e, com as mãos em concha, levou um pouco de água para Maria; a travessia do deserto tinha sido árdua, expostos à sanha dos ladrões e ás feras.

– Que água boa, José! Com água tão boa e refrescante, o povo daqui há de ser hospitaleiro.

E Maria pediu um pouco mais de água para José. E José, sempre solícito com sua amada esposa, levou-lhe mais um pouco de água, em suas mãos em concha.

– Agora, vamos, mulher, em busca de abrigo para a noite que já está aí. Tens de dormir sob um teto hoje, para não põr a tua saúde e a do pequeno em risco, que ainda temos chão pela frente.

Assim foi que seguiram, José puxando o burro, e Maria montada no burro. E bateram à porta de um suntuoso palacete, situado na esquina da praça principal, no qual morava, nessa época, um poderoso conde.

A pesada porta foi prontamente aberta por um corcunda muito feio. O fâmulo, de aparência terrível, e que era uma corcova só, olhou os viajantes de lado, com o único olho são e remelento que lhe restava, e indagou:

– O que querem vocês à porta do meu amo?
– Pedimos abrigo somente para esta noite, pois eis que se aproxima um terrível temporal – respondeu José.

Antes que o grotesco serviçal destratasse novamente o casal, ouviu-se uma tosse cavernosa e a figura esguia e sinistra do conde surgiu à imensa porta do palacete. Ao avistar Maria, montada no burro, o conde, que não era bobo nem nada, respeitosamente lhe perguntou:

– O que levas aí, neste embrulho que trazes tão junto ao seio? E com tanto zelo?
– É o meu menino – ela respondeu.

O conde, então, disfarçou um leve enternecimento, aliás, estremecimento.

Ao ouvir tal resposta, o conde, que não era bobo nem nada, disse melífluo a Maria;

– Mil desculpas, mas não posso lhes dar abrigo. Sei que bem sabeis que me conhecem e conhecerão como Drácula, o conde Drácula, assim como bem sabeis que meu coração não é dos piores, mil perdões, mas o que alegaria eu ao meu mestre, o Senhor das Profundas, se vos desse acolhimento? Por certo que bem me compreendeis.

E José e Maria seguiram caminho, em busca de pouso para aquela noite, o cheiro de terra molhada já se fazia presente no ar.

Assim foi que bateram à porta da casa paroquial, a qual ficava em uma outra esquina da praça principal, ao lado da igreja matriz.

Foram atendidos pelo coroinha, que chamou o sacristão, que chamou o padre, que chamou o bispo, que chamou o Papa.

– O que querem vocês à porta do nosso Amo? – inquiriu impaciente o chefe supremo da Santa Madre Igreja.
– Pedimos abrigo somente para esta noite, pois se aproxima um baita temporal, e minha esposa... – ia respondendo José, quando foi bruscamente interrompido pelo Santo Padre.

– Não, não e não, chega de caridade por hoje, nossa cota já se esgotou. Quem sabe, talvez amanhã!

E José e Maria seguiram caminho, em busca de pouso para aquela noite.

Assim foi que bateram à porta de uma residência muito elegante, feericamente iluminada.

Foram atendidos por um mordomo elegantemente trajado.

– Quem sois vós, tão maltrapilhos, que vindes empanar o brilho de tão bela festa em comemoração à independência do País?
– Eu sou... – ia dizendo José, quando um soldado raso botou a cabeça à porta, fazendo-lhe a mesma pergunta.
– Quem sois vós, tão maltrapilhos, que vindes empanar o brilho de tão bela festa em comemoração à independência do País?

Ao que José começava a dar resposta, iam surgindo à porta, cada uma à sua vez, as cabeças do cabo, do sargento, do tenente, e assim por diante, conforme a patente mais alta, até que finalmente surgiu a cabeça imponente da esposa de um general de cinco estrelas, a qual, por sua vez, os interpelou:

– Quem sois vós, tão maltrapilhos, que vindes empanar o brilho de tão bela festa em comemoração à independência do País?
– Pedimos abrigo somente para esta noite, pois se aproxima um violento temporal... – respondeu José.
– Será possível que não vês que a casa está toda ocupada e não tem lugar para mais ninguém? Quem sabe, talvez amanhã!

E José e Maria seguiram caminho, em busca de pouso para aquela noite.

Assim foi que bateram à porta do banqueiro, do prefeito, do vereador, do funcionário público, mas estes não se encontravam em casa, pois estavam na festa em comemoração à independência do País, na qual estavam também os deputados, tanto estaduais quanto federais, os senadores, o vice-presidente, menos o presidente, porque não havia mesmo presidente, o País era governado por generais de cinco estrelas, os quais se revezavam e raramente apareciam em público, eles tinham horror mortal a cheiro de povo.

E José e Maria foram seguindo caminho, em busca de pouso para aquela noite, José puxando o burrico, e Maria montada no burrico, até que, no final de uma estrada que beirava o mangue, deram com uma humilde choupana.

José, então, bateu à porta da choupana.

Um homem atendeu à porta. Era moreno, atarracado e visivelmente embriagado. Sob efeito do álcool, para ver melhor, o homem apertou os olhinhos vermelhos. E, antes que José abrisse a boca, o pinguço foi logo dizendo:

– Entrem, entrem, que um chuvaréu se aproxima, e ninguém deve ficar exposto a um tempo desses. Muito menos o Menino!

O Menino? Ele disse o “Menino”. Foi isso mesmo que eu entendi?

E, assim, José, Maria e o antes menino, mas agora e para sempre Menino, e também o burrinho, entraram e encontraram pouso e abrigo na choupana do torrado. E, antes que José perguntasse, o bom homem foi logo se apresentando.

– Me chamam Tube e digo que minha casa seja a sua casa. Não é muito, mas é o que tenho.

Comovidos, José e Maria agradeceram calados, com uma inclinação de cabeça, que dizia muito mais que mil palavras. E Tube, que sóbrio já era falante, sob efeito da mardita, ficava loquaz e facundo.

– Como eu ia dizendo, a casa é humilde, mas que meu chateau seja o vosso chateau. A cama estreita é muito mais um catre que uma cama, e esse colchão velho é já uma enxerga, mas vocês podem nele repousar, que não há pior deserto na terra que o deserto dos corações humanos. E que o Menino durma sossegado nesse cocho de madeira, o seu bercinho improvisado. E que o burro procure também descansar, que é cansativa e fatigante a jornada ao Egito, pois, como bom e inveterado pudim de cana que tudo adivinha, sei também que vocês estão a fazer o caminho mais longo...

José mostrou-se, então, apreensivo com a língua solta de Tube; a viagem à cidade de Heliópolis, no Egito, era secreta, conforme ordenara o anjo Uriel, o encarregado do orbe do Sol. Mas nem o olhar de José para Maria e, em seguida, novamente para Tube, foi capaz de deter a verbosidade do pequeno hospedeiro.

– ... que passa por Hebrom e Bersabé, atravessa o deserto de Idumesa e entra no Sinai, passando por Antonina, em vez de margear o Mediterrâneo e atravessar a cidade de Gaza, a rota mais fácil, porém a mais perigosa, tomada pelos espiões de Herodes, o Grande.

José olhou incrédulo para Maria, em seguida para o burro e, novamente, para Tube.

– Eu tudo isso compreendi quando, ontem, borracho, como de costume, avistei pros lados do Faisqueira a estrela do Oriente. Agora, meus queridos, durmam em paz que eu vou ficar aqui guardando o fogo, para ficar quentinho para o Menino e para a mãe do Menino.

Vencido pelo cansaço, José deitou-se naquela cama pobre de dar dó, aconchegando-se em Maria, confiante de que estavam, sim, bem guardados pelo torto guardião. Então, pôde a chuva cair, como realmente caiu, sem dó nem piedade.

Depois da madrugada encharcada e enxaguada, o dia amanheceu radiante, de um sol esplendoroso. Mas ainda, nessa mesma noite, aproveitando que o burro acordara (como vocês devem saber, os burros dormem muito pouco, precisam de umas poucas horas de sono para aliviar o cansaço de um dia estafante de trabalho), Tube pediu-lhe que tomasse conta do fogo, que ele ia resolver um assunto e já voltava. Foi assim, então, que Tube roubou, pela segunda vez, o galo de Acrísio, o seu vizinho, e o preparou ensopado para que José e Maria tivessem o que comer durante a penosa viagem ao Egito.

– E tu sabes cozinhar, Tube?
– Tanto e tão bem que, no tempo em que morei em Santos, eu tinha a fama de ser o melhor confeiteiro da cidade!

Quando todos estavam se despedindo, um cachorro e um gato gaiatos apontaram na estrada. Chegando perto, os dois se apresentaram, com mesuras e salamaleques, como “a mais famosa dupla sertaneja da atualidade”.

– Gato e Cão, ao seu dispor! – ronronou o bichano.
– Cão e Gato, ao vosso dispor! - rosnou o cachorro.

Para comprovar os dotes musicais, sem que ninguém pedisse ou deles duvidasse, mais por exibicionismo, os dois foram logo entoando uma velha balada caipira. Entusiasmado, o burro entrou na melodia e fez um belo vocal que deu novo colorido à canção. Nesse mesmo instante, arrebatados pelas palmas de Maria, José e Tube, os três animais resolveram formar um trio. Mas o burro impôs uma condição somente: antes teria que levar José, Maria e o Menino, sãos e salvos, ao seu destino. O cachorro e o gato concordaram prontamente.

– Vamos juntos, todos juntos cantando, que é cantando que se leva a vida, e a viagem, assim, parecerá mais curta e menos árdua. Tudo que gente precisa é amor, e amor é tudo que a gente precisa!
– Assim é, se lhes parece! – disse um besourinho que estava pousado no chapéu de Tube e, calado, como testemunha dessa história, a tudo assistia, para poder contá-la às novas gerações.
– Posso dar um nome um tanto sugestivo, original e curioso ao grupo? Os Músicos de Bremen! Que tal? – disse Tube, com um sorriso.
– Ué, os Músicos de Bremen não eram em quatro? – perguntou-se, então, o leitor atento e perspicaz.
– E você ainda vai querer coerência nessa história? – respondeu o autor, perplexo.

Só mais uma coisinha, à guisa de explicação, para finalizar esse auto: o galo que Tube roubou do Acrísio, pela segunda vez, e cozinhou para a viagem de José e Maria ao Egito, era um galo mágico que, ao final da jornada, ressuscita pela segunda vez. Missão cumprida, o cachorro, o gato, o galo e o burro se reúnem e formam, afinal, o quarteto Os Músicos de Bremen e passam à história com os nomes definitivos de John, Paul, George e Ringo, que, muitos anos depois, passariam à tradição como o fabuloso quarteto de Liverpool. E a letra, prenhe de saudosismo, de sua música de maior sucesso, e que até hoje toca na Rádio Antoninense, diz assim: “When I find myself in times of trouble / Mother Mary comes to me / Speaking words of wisdom, let it be”.

E para arrematar de verdade essa tramoia toda, corroborando a sabedoria popular de que os anjos cuidam das crianças e dos bêbados, o arcanjo Uriel mandou gravar a fogo na porta da humilde choupana, na pequenina aldeia aos pés da Serra do Mar, banhada pelo oceano Atlântico, a estrela de Davi. E tendo dito como disse, afirmo, testifico e dou fé.