sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

CORPO POÉTICO




Edson Negromonte

Toda vez que um adolescente descobre, enlevado, que o poeta Shelley foi imolado em uma fogueira, erguida por Byron, às margens do oceano, a poesia inaugura-se, uma vez mais, nova em folha. Quando toma conhecimento do gran finale do poeta divino, ele passa vários dias inebriado pelo cheiro característico do corpo poético, a carne humana, queimando, ardendo em chamas. E descobre-se, pelo olfato, tal qual um lobo faminto, permanentemente à beira do mar, em uma praia próxima de Viareggio. O mar deixa-se, por isso, encapelar indefinidamente, somente para o seu gozo. É aí, então, que o adolescente pode perceber, pela primeira vez, a poesia que se desprende das labaredas dançarinas, sedutoras línguas de fogo. jamais poderá anotá-la, a essa poesia que do fogo emana, e que esta seja a sinistra sina de todo aquele que se aventura pela bruma da poesia. Tudo o que, a partir da noite eternal, escreverá, será em decorrência desse encontro momentâneo, e no entanto definitivo, ao qual foi levado por mãos invisíveis, que ainda o conduzirão a um plano em que as cenas fundamentais, necessárias à confecção da poesia, são temperadas na forja do ferreiro cósmico. Após esse plano sublime, o adolescente será, em seguida, conduzido ao jardim circular das dores de amor dos amantes não correspondidos. É somente nessa idade, quando se é capaz de construir catedrais na instabilidade das nuvens, que a poesia o julgará digno para se instalar em seu coração de neófito. Sonhar-se-á, assim, o mesmo poema de amor que, de tão original, bilhões e bilhões de outros poetas na imensidão do inescrutável universo já o sonhariam. E tentaram, tentariam, tentarão, então, escrevê-lo. E esse poeta ora e para sempre adolescente, tão ingênuo, tão inaugurador, torna-se mais uma vez, enfim, o responsável pela harmonia dos planetas de inumeráveis sistemas. Esse sofredor, irmão dos amores vãos, se é que algum amor na vida pode ser vão, como todos os poetas a ele anteriores, assim como todos os poetas do porvir, tornar-se-á, sem perceber, o principal auxiliar do inominável artífice, o responsável pela formação de novos poetas para as novas gerações, todos eles sob a influência do cheiro característico da carne ardente em fogo de Shelley. Posto que poesia é, como o amor, coisa volúvel, portanto, louvável, este será o segredo daqueles que, após a breve idade transitória, insistirão ainda na tessitura de poemas, atividade com a qual o mundo adulto das certezas não pode arcar e nem mesmo suportar. Porque poesia é mergulhar de cabeça na escuridão de um precipício marítimo desconhecido. Ouvir-se-á, desse modo, o estrépito do intrépido mergulhador, até o momento ignorante da máquina do mundo. Esse eterno amante amantíssimo, o fazedor de poesia, o fazedor da vida, detém a única e íntima certeza em um mundo de incertezas: a poesia só terá início novamente quando mais um adolescente desavisado reconhecer, em êxtase, o odor agridoce do corpo franzino de Shelley, em chamas, à beira do oceano, enquanto Mary Shelley, no desassossego do lar, em Chester Square, ainda acariciará o coração vivo, pulsante, do amado poeta.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

ENROLANDO O ROCK - Parte 7: MEU OFÍCIO É O ROCK'N'ROLL



Edson Negromonte

O rock pesado é coisa que agrada sobremaneira aos machos da espécie e quando começa de firulas passa a ser chamado pejorativamente de progressivo, diria um velho roqueiro empedernido. Não é bem assim e a história está aí para quem quiser comprovar. Principalmente, no rock brasileiro, onde os gêneros flertam entre si, da forma mais salutar. Assim, a nossa primeira banda pesada é paulistana e atende pelo provocativo e, ao mesmo tempo, ufanista nome de Made in Brazil, formada, no final dos anos 60, pelos irmãos Celso e Oswaldo Vecchione, tendo como vocalista o andrógino e briguento Cornélius Lúcifer, substituído no segundo disco por Percy Weiss, de vocal mais condizente com todo o peso instrumental da banda. Também na terra da garoa ácida teve origem, na década de 70, época de efervescência roqueira, embora garageira, outra banda que fez história, a Casa das Máquinas. Com um começo indefinido, acabou mostrando no segundo disco todo o seu potencial com "Casa de Rock", hit da época e um dos hinos roqueiros, tendo como líder o baterista Netinho, aquele que foi o "namoradinho brasileiro" da roqueira italiana Rita Pavone, vindo da banda de jovem guarda Os Incríveis. A banda teve um fim trágico quando, em 18 de setembro de 1977, a masculinidade do vocalista Simbas foi questionada por um funcionário da TV Record, devido às suas roupas extravagantes, o que levou-o, junto com o guitarrista Pisca, a espancar violentamente o motorista, o qual veio a morrer 24 horas depois. Julgado, Simbas foi condenado a um ano de prisão.

Surgida em 1976 e adepta dos riffs de guitarras, a também paulistana Patrulha do Espaço surgiu como a banda na qual o mutante Arnaldo Baptista, desacreditado por todos os colegas, daria vazão às suas idéias musicais, inicialmente sem estrelismos, mas não tardou que viesse a se chamar Arnaldo e a Patrulha do Espaço, gerando brigas internas que motivaram a sua saída. Os outros integrantes assumiram o comando, tornando-se, assim, um dos principais nomes da história do rock pesado brasileiro, com John Flavin na guitarra, Cokinho no baixo e Júnior detonando na bateria, comprovando que São Paulo é mesmo o túmulo do samba, como bem a definiu o poeta e letrista Vinícius de Moraes, mas, por outro lado, será para sempre o berço do rock'n'roll.

De outras plagas, viriam outros nomes importantes, como a inicialmente denominada The Bubbles, do Rio de Janeiro, que depois de voltar do festival da Ilha de Wight, adota o nome A Bolha, gravando em 1973 o progressivo "Um Passo à Frente", em que já há insinuações do hard rock que faria em "É Proibido Fumar", de 1977. Com formação inconstante, o único membro fixo foi o guitarrista e vocalista Renato Ladeira. A banda era tão barulhenta que foi despedida pela então roqueira Gal Costa durante a gravação de um compacto duplo, no qual toca as versões arrasadoras de "Zoilógico" e o hino bicho-grilo "Vapor Barato", numa descaralhante versão de estúdio, em 1971, muito superior a versão oficial, ao vivo, em "Gal Fa-tal - A Todo Vapor". No mesmo ano gravariam um compacto simples e conceitual com "Sem Nada" e "Os Hemadecons Cantavam em Coro Chôôôô", além de tocar em todas as faixas do disco proibido "Vida e Obra de Johnny McCartney", do cantor Leno, da dupla de ié-ié-ié Leno e Lílian, em carreira solo e com produção de Raul Seixas. Curiosamente, a banda, ainda como The Bubbles, está na trilha sonora do filme "Salário Mínimo", do diretor Adhemar Gonzaga, de 1970, com a atriz e vedete Renata Fronzi, mãe do guitarrista, o qual viria a fazer muito sucesso nos anos 80 com o grupo Herva Doce e a sua versão "Erva Venenosa", para "Poison Ivy", além de ser parceiro de Cazuza em "Faz Parte do Meu Show" e a inesquecível "O Universo Precisa de Vocês (Power Rangers)" com a dupla mirim Sandy e Júnior.

Do Rio Grande do Sul, veio a pesadíssima Bixo da Seda, anteriormente chamada Liverpool, de pegada stoneana, referência obrigatória no cenário da época e cultuada até os dias de hoje, principalmente pela presença do guitarrista Mimi Lessa e do vocalista Fughetti Luz, de grande importância para o atual movimento roqueiro gaúcho. Note-se que a formação do seu disco homônimo, conta com a presença de Renato Ladeira na banda. Do Paraná, dando início a toda a movimentação roqueira do estado, vem A Chave (foto), anteriormente Os Jetsons, com origem na cidade de Palmeira. Após a mudança do guitarrista Paulo Teixeira para Curitiba, sua principal formação tem, também, Carlos Gaertner no baixo, Orlando Azevedo na bateria e Ivo Rodrigues no vocal, o qual, após o fim da banda, foi cantar na Blindagem, outro nome importante do rock paranaense. Recentemente, A Chave viu, sem saber como, obscuras sessões de ensaio virem à tona num autêntico bootleg digital, o que levou-a a piratear seu próprio disco pirata para vendê-lo no show de 25 anos do término da banda.

Mas o grande nome do hard rock brasileiro é, com certeza, a banda Peso, com origem em Fortaleza, quando a dupla Luiz Carlos Porto e Antonio Fernando classificaram no VII Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro, a música "Pente", evidente alusão ao ato de se fechar um baseado com o artefato de marca Flamengo. Seu único LP, "Em Busca do Tempo Perdido", de 1975, tem o vocal de Luiz Carlos, o qual gravou, posteriormente, um disco solo, e a excelente guitarra do americano Gabriel O'Meara, que faria canções de sucesso para Tim Maia e produziria, depois, cantores de samba. Deste disco, a música "Não Fique Triste" tocou exaustivamente nas rádios. O'Meara ainda participa do disco "1990 - Projeto Salva Terra!", de Erasmo Carlos, em 1974, do qual consta a música "Cachaça Mecânica", bem humorada alusão caipira ao filme de Stanley Kubrick, "Laranja Mecânica".

Finalizando, em meados da década de 80, o hard paulistano demonstraria sua pujança com o Golpe de Estado e seu insano vocalista Catalau, o qual começou compondo, aos 16 anos, para a Casa das Máquinas e, hoje, cansado das drogas e da vida desregrada, tornou-se pastor evangélico da igreja Bola de Neve, pregando a palavra do Senhor através de muito... rock'n'roll.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

ENROLANDO O ROCK - Parte 6: AS TRAPALHADAS DO ROCK'N'ROLL



Edson Negromonte

Muito antes dos megafestivais, na década de 80, o Brasil, valendo-se da sua tradição festivalesca, já tivera vários woodstocks, sonho de qualquer jovem daquele tempo, depois de 1969. A primeiríssima tentativa, em fevereiro de 1971, foi o Festival de Verão de Guarapari, no Espírito Santo, sem infra-estrutura nenhuma e organizado por Antônio Alaerte e Rubinho Gomes. Foi neste festival que, enquanto cantava o sucesso "BR-3", aconteceu o desastrado stage dive de Toni Tornado, que aterrissou sobre uma fã, deixando-a paralítica da cintura para baixo. No mesmo festival, convidado por Carlos Imperial, estava o aparentemente "estranho no ninho" Luiz Gonzaga, sanfoneiro que, na ausência dos roqueiros convidados, deu uma canja.

No Teatro João Caetano, na região central do Rio de Janeiro, aconteceria o show Abertura da Temporada de Verão, com várias bandas, em 31 de outubro de 1974. Entre elas, com performances sem hora para acabar, a nata do progressivo nacional: Veludo, Terço, Vímana e Mutantes.

No ano seguinte, em janeiro de 1975, aconteceria o primeiro Festival de Águas Claras, em Iacanga, na fazenda Santa Virgínia, propriedade de um hippie woodstockiano conhecido, na região, como Leivinha. As bandas revezavam-se, com shows tidos como memoráveis: Terço, Som Nosso de Cada Dia e Moto Perpétuo (banda progressiva de Guilherme Arantes), entre muitos outros. Sucederam-se outras edições, nos anos 80, contando com a presença, inclusive, do bossa novista João Gilberto, quase sempre avesso às multidões, um Raul Seixas bêbado, vomitando atrás dos amplificadores, a banda curitibana Blindagem e uma vaiada Tetê Espíndola, caracterizando muito bem a intolerância da juventude em relação ao novo. Nos três últimos dias de maio e primeiro de junho desse ano, São Paulo veria, no Teatro da Fundação Getúlio Vargas, o Banana Progressiva, com certa organização, realizado em local fechado, muito mais um show com várias bandas que propriamente um festival, com apresentações de A Bolha, Veludo, A Barca do Sol, Som Nosso de Cada Dia, Terreno Baldio, Vímana e Erasmo Carlos. Ainda, entre tantos outros, a figura inusitada do inqualificável Hermeto Paschoal e suas experimentações sonoras. Eram tempos de abertura, palavra tão em voga àquela época, quando os militares tornaram-se, aparentemente, maleáveis em relação a uma juventude aparentemente apolítica, que queria deixar o cabelo crescer, fumar maconha em paz e fazer música, muita música, a mais libertária possível, como um ato político muito mais abrangente e libertador. Evidentemente, muito antenada com o que se fazia lá fora. Ainda neste ano, outro evento importante foi o primeiro Hollywood Rock, de Nelson Motta, no campo do Botafogo, patrocinado pela companhia de cigarros Souza Cruz e ao qual a empresa do tabaco jamais se refere, retirando o patrocínio, em decorrência de um traficante, preso naqueles dias, "entregar" que venderia todos os seus singelos e inofensivos ácidos lisérgicos no dito festival. Apesar de todos os contratempos, chuva, queima de equipamento, transferência de local, é um marco na história do rock brasileiro, com um falso disco ao vivo "Hollywood Rock" e o filme "Ritmo Alucinante", além das presenças de Raul Seixas, Rita Lee e o Tutti-frutti, Veludo, Peso, Vímana, Cely Campello (a nossa primeira Rainha do Rock) e o tremendão Erasmo Carlos, com a recém-formada Companhia Paulista de Rock, banda que contava com o baixista Liminha e o baterista Dinho, dois ex-Mutantes cansados das firulas do rock progressivo.

Endividado até o pescoço com o fracassado show "Feiticeira", da sua mulher Marília Pera, o compositor e produtor Nelson Motta promove, em 1976, o desastrado festival Som, Sol e Surf, em um pequeno estádio de futebol em Saquarema, no estado do Rio de Janeiro, na esperança de ganhar algum para se ver livre dos credores. A ideia surgiu quando ele se encontrou, em Búzios, com um músico doidão chamado Flávio Spiritu Santo, que o convenceu das facilidades de realizar um festival de música naquela região tão aprazível. Na verdade, o dito estádio era apenas um campinho de futebol, murado. Ali estavam, então, os principais nomes da época: a obrigatória Rita Lee, Tutti-frutti, Raul Seixas, Vímana (com um baterista de 16 anos: João Luiz Woerdenbag Filho, o Lobão), o paulistano Made in Brazil, com o crítico Ezequiel Neves assumindo a persona de Zeca Jagger, fazendo backing vocal, o pesadíssimo gaúcho Bixo da Seda, um Ney Matogrosso solo, já sem o Secos e Molhados, e a estreante bluseira Ângela Ro-Rô, aos 26 anos, acompanhada por uma banda que tinha, entre outros, o lendário Zé da Gaita, do grupo Flamboyant, e ex-integrantes do Peso, em performance ensandecida de "Meu Mal é a Birita". Além de Flávio Spiritu Santo, é claro! Na ideia original cabiam um disco e um filme, que registrariam mais uma peripécia roqueira de Nelson Motta, que, segundo ele mesmo, não chegaram a público por causa das grandes estrelas terem tido uma atuação morna, não condizente com o que se espera de apresentações ao ar livre (o canal Brasil anuncia para breve a exibição do filme). Com previsão para dois dias, em decorrência das tempestades de verão, ficou reduzido a um único dia de lama, bebedeira e ácido. Além da música! Muita música! Na última hora, os portões foram franqueados ao público, quando verificou-se que a lotação do "estádio" não chegara à metade, em uma tentativa desesperada de atrair público para, pelo menos, salvar o filme. Ledo engano, a população local, por nada deste mundo, sairia de casa para prestigiar um festival de rock, justamente no horário do popularíssimo programa da TV: Os Trapalhões.

terça-feira, 11 de setembro de 2018

ENROLANDO O ROCK- Parte 5: E A MANHÃ TROPICAL SE INICIA



Edson Negromonte

O ano de 1968 daria a público três discos importantíssimos para a compreensão da Tropicália, nome pelo qual seria conhecido o psicodelismo no País, com inspiração na obra conceitual "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band", dos Beatles: os LPs de Caetano Veloso e Gilberto Gil, e o manifesto sonoro "Tropicália ou Panis et Circensis", com capa do artista plástico Rubens Gerchman, onde acontece a tão propalada mistura, às vezes mal resolvida, mas instigante, de tradição e modernidade, sob a batuta do maestro Rogério Duprat, envolvido com o rock desde 1963, quando arranjou a canção de Albert Pavão "Vigésimo Andar", versão de "20 Flight Rock" (Eddie Cochran e Ned Fairchild), sucesso dos Quarrymen. Duprat faria, ainda em 1966, outra incursão roqueira: o compacto do sexteto O'Seis, embrião do trio Os Mutantes. O conceito tropicalista de deglutição cultural deriva, principalmente, das experiências modernistas do poeta Oswald de Andrade, que defendia a importância do canibalismo cultural desde que os silvícolas brasileiros comeram o bispo Sardinha, e, também, das experiências plásticas do designer gráfico Rogério Duarte e do artista conceitual Hélio Oiticica, ambos criadores da palavra “tropicália" para designar uma instalação penetrável.

Em 1967, com um tanto de insatisfação, outro de provocação, Caetano e Gil participaram do III Festival.da Música Popular Brasileira, pela TV Record, incorporando a guitarra elétrica às suas canções, "Alegria, Alegria" e "Domingo no Parque", através do acompanhamento de duas bandas de rock, a argentina Beat Boys e a paulistana Os Mutantes, recebendo quarto e segundo lugares, respectivamente. Gil vinha de gravações de música tradicional, com vários compactos, por um selo local baiano, e o LP "Louvação", onde consta a antevisora "Lunik 9", além de parcerias com o poeta e jornalista Torquato Neto, figura importantíssima para o movimento, com uma coluna comportamental no Jornal do Brasil, a Geléia Geral, também título de uma canção dele com Gil. O baiano Caetano, crítico de cinema e dublê de pintor, gravara com a conterrãnea Maria da Graça, a depois famosa Gal Costa, o LP bossa novista "Domingo", na prática um comportadíssimo tributo a João Gilberto, além de ter sua "Pra Chatear" gravada por Ronnie Von, esta figura singular do rock brasileiro, de um mundo próprio, com formação erudita, principalmente música barroca, que faria dois discos clássicos da psicodelia brasileira, "Ronnie Von" e "A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre Contra o Império do Nuncamais", com um dos títulos mais longos para uma canção popular: "De Como Meu Herói Flash Gordon Irá Levar-me de Volta a Alfa do Centauro, Meu Verdadeiro Lar". Em seus quatro primeiros discos, Gal Costa é uma autêntica roqueira psicodélica, escorada pela guitarra endiabrada de Lanny Gordin, transformando a mais simples canção em um hino ao instrumento. Este nosso primeiro guitar hero, ao se exilar em Londres, deslumbrou-se com as possibilidades do ácido lisérgico, usando e abusando da droga, até que desgraçadamente desaprendeu a tocar. Também os Mutantes, com sua irreverência adolescente, são vitais para o movimento, principalmente com a gravação iconoclasta de uma joia intocável da seresta parnasiana, "Chão de Estrelas", de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, com um arranjo literalmente arrasador, com peidos, aviões e gargalhadas, do enfant terrible Duprat. Outros maestros, como Júlio Medaglia, Damiano Cozzella e o sempre esquecido Sandino Hohagen, alunos de Pierre Boulez e Stockhausen, e discípulos de Anton Webern e John Cage, também deram sua contribuição. Fundamental foi o encontro dos músicos com a Poesia Concreta, dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, que daria uma cara altamente intelectualizada à Tropicália, tornando-a única em toda a psicodelia internacional. Seguramente, poucos são os países em que o movimento, além de flertar com a cultura folclórica local, ainda se deu ao luxo de letras que remetem aos grandes poetas nacionais e à grande poesia internacional, através de traduções de altíssimo nível.

Naquele tempo de efervescência cultural, onde até os mais velhos reviam seus conceitos de certo e errado, surgiram várias artistas e bandas com propostas radicais para uma nova arte e musicalidade. Muitas experimentações ficaram esquecidas, como o único disco de Os Brazões, com versões interessantes para composições de Gilberto Gil, como "Pega a Voga, Cabeludo" e "Volkswagen Blues", além de um arranjo soberbo para a metafórica "Gotham City", na qual a cidade do homem-morcego é a representação do próprio País, com caça às bruxas e morcegos na porta principal, de Jards Macalé, violonista erudito que aderiu ao movimento, e do poeta baiano Capinam, o segundo letrista em importância para a Tropicália. Uma linguagem cifrada que os ouvintes da época sabiam muito bem decodificar. A banda ressente-se das diatribes de um Duprat, figura fundamental para se compreender a riqueza do Tropicalismo. O maestro era a eminência parda, alguém que atuava nas sombras, e só recentemente teve o seu verdadeiro valor reconhecido, alguém que mudou-se para um sítio no interior do estado de São Paulo, em decorrência da pobreza musical da atualidade. O grande poeta Torquato, letrista de várias canções-manifesto, depois de ser internado em um hospício pela própria família, vendo-se abandonado pelos amigos e parceiros musicais, suicidou-se deixando um bilhete que termina com a lapidar frase "Pra mim, chega!".

Enquanto isso, a ditadura comia solta, com prisões, torturas à luz do dia e corpos que até hoje clamam por justiça. Não tardaria para que os militares instituíssem o Ato Institucional No. 5, calando, de vez, as bocas do País, exilando, em 1969, Caetano e Gil, vistos como os cabeças de um movimento pernicioso, de amplitude não só política, mas comportamental, de curtíssima duração, e fundamental para a geração seguinte, aquela que se aventurou a fazer música nos Anos de Chumbo.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

ENROLANDO O ROCK - Parte 4: A TURMA DA TIJUCA



Edson Negromonte


No Brasil, o rock já rolava à toda. Vários jovens, nos seus bairros, formavam grupos e agiam como rockers, embora não entendessem muito bem o significado disso. Sabiam, e isso estava muito claro em suas cabeças, que os velhos, ou melhor, a música dos velhos não estava com nada. Assim, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, alguns desses garotos da época reuniam-se para trocar informações, aprender novos acordes e ouvir discos. Entre eles, estava o futuro Rei do Rock, Roberto Carlos, seu eterno parceiro e o mais fiel e digno roqueiro brasileiro, o tremendão Erasmo Carlos, e alguém que despontaria anos mais tarde e criaria a soul music brasileira, Tim Maia. Ah, mas havia uma figura de suprema importância, não só para o rock, mas para a música brasileira em geral. Ou melhor, para a música universal. Era Jorge Ben, hoje Jorge Benjor, às vezes, Ben Jor, e nascido Jorge Duílio Lima Menezes, gravado por José Feliciano, Herp Albert, escandalosamente surripiado por Rod Stewart.

O garoto Jorge vivia para a música desde a mais tenra idade, ouvindo discos de jazz e blues trazidos por um primo marinheiro e tentando tirar, de ouvido, aqueles acordes complicados e intrincados da bossa nova, sem deixar de estar atento à música jovem da época, o rock'n'roll. Tanto, que ganhou o apelido de Babulina, devido a sua paixão pelo sucesso de 1958 "Bop-A-Lena", do americano Ronnie Self, o Little Richard branco.

Em 1961, aos 19 anos, ele podia ser visto tocando pandeiro no jazzístico Copa Trio, do Beco das Garrafas, cantando rock na boate Plaza, assim como músicas próprias. Forjava, assim, a revolução permanente da sua arte, referência obrigatória para todas as gerações.

Em 1963, suas músicas "Mas que Nada" e "Por Causa de Você, Menina" são cantadas por ele mesmo em um disco do Copa Cinco, o qual contava com o lendário baterista Dom Um Romão. Neste mesmo ano, além das duas músicas serem lançadas num 78rpm, gravaria seu primeiro LP, "Samba Esquema Novo". Conforme o título deixa explícito, ele rompia com o samba, seja tradicional ou bossa novista, através das letras inovadoras mas, principalmente, através de uma batida de violão que não tinha nada a ver com o instrumento acústico, mas com a guitarra do rock, ou melhor, com o toque da palheta nas cordas de aço da guitarra elétrica. Para acompanhá-lo nas gravações, chamou os colegas de jazz do Beco das Garrafas, já que os músicos de estúdio, afeitos ao regional e ao quadradinho do rock, não entendiam aquelas harmonias novas e complicadas, muito menos aquelas divisões estranhas aos ouvidos desavisados. Mais tarde, eletrificaria de vez o samba, mormente em "O Bidu - Silêncio no Brooklin", de 1967, quando chama o conjunto The Fevers para acompanhá-lo na faixa "Jovem Samba".

Inqualificável, Jorge Ben tinha liberdade plena e transitava entre os vários programas musicais da época, inimigos figadais entre si. Quem fosse ao Fino da Bossa, sob as ordens da bossa novista Elis Regina e do sambista Jair Rodrigues, não poderia, em hipótese alguma, participar do Jovem Guarda, comandado pelos rockers Roberto e Erasmo Carlos e a ternurinha Wanderléa. Ele ainda podia ser visto em O Pequeno Mundo de Ronnie Von, ao lado dos Mutantes, os quais gravaram dele, em seu primeiro disco, "Minha Menina". Paradoxalmente, Ben não está na letra de "Festa de Arromba", o quem é quem do rock, do seu amigo Erasmo, muito menos em "Arrombou a Festa", da mutante Rita Lee. Como um estranho no ninho, incapaz de ser rotulado, o filho do seu Augusto, pandeirista do bloco Cometa do Bispo, e da etíope Silvia Saint Ben Lima, será de capital importância para o movimento tropicalista, com misturas inusitadas de tradição e modernidade.

terça-feira, 7 de agosto de 2018

ENROLANDO O ROCK - Parte 3: JOVENS TARDES DE DOMINGO SEM FUTEBOL




Edson Negromonte

É sintomático que, em 1962, quando o fenômeno do rock inglês começa a tomar conta das paradas mundiais, com "Love Me Do", dos Beatles, os pioneiros do rock brasileiro já estivessem saindo de cena. Celly, a Namoradinha do Brasil, que chegou a comandar com o irmão Tony um programa de TV, o Crush em Hi-Fi, deixara seu curto reinado para casar com o namorado de escola, indo viver em Campinas, como uma pacata dona de casa. E Tony Campello, roqueiro de boa cepa, ao perceber a perda da inocência inicial, passa a atuar nos bastidores, como produtor musical, por não compactuar com aqueles garotos de terninhos bem cortados. Tony ainda faria algum sucesso, cantando um novo e passageiro ritmo, na sacolejante "Vamos Dançar o Twist", além da versão "Boogie do Bebê", para o sucesso “Baby Sittin’ Boogie”, de Buzz Clifford.

Uma nova geração mais cínica em relação ao mercado insinuava-se. No ano de 1963, Roberto Carlos lançaria, com grande sucesso, "Splish Splash", versão de Erasmo para o hit de Bobby Darin. Em 1964, aconteceu o golpe militar que levaria os generais ao poder durante os próximos 20 anos. Enquanto isso, os jovens esbaldavam-se com o verdadeiro hino do rock brasileiro: "Rua Augusta", composição do cinquentão Hervé Cordovil, na voz do filho Ronnie Cord, nascido Ronald Cordovil, sobre a paixão juvenil por máquinas velozes e furiosas. Singelamente, em contraposição à transviada e perversa “Rua Augusta”, Roberto Carlos grava "Calhambeque", doce versão de Erasmo para o sucesso "Road Hog", de John Loudermilk, mantendo da letra original, sobre os típicos rachas de carro, somente o beep beep. A canção foi lançada, no Brasil, em um flexi disc promocional da caneta Sheaffer. Em 1965, os publicitários da agência Magaldi & Maia Publicidade, de São Paulo, viram no movimento emergente a chance de aproveitar o horário ocioso das tardes de domingo, na TV Record, impossibilitada de transmitir os tradicionais jogos de futebol, para evitar os estádios vazios. Assim, em uma jogada de marketing, criou-se o programa Jovem Guarda, nome advindo da vanguarda comunista russa, patrocinado pela Shell, para aglutinar os jovens telespectadores da época e, consequentemente, vender os produtos da nova marca Calhambeque: roupas, bonés, botinhas, bonecos etc. Era a ascensão de um novo rei: Roberto Carlos (alguém que, na verdade, queria ser, apenas, João Gilberto, o papa da bossa nova), da rainha Wanderléa, acompanhados pelo valete Erasmo Carlos. Iniciava-se, assim, para o grande público, a idolatria de uma juventude aparentemente sadia. Mas, nos bastidores, enquanto o Rei ficava com as filhas, o valete Tremendão comia as mamães. E a droga rolava solta, principalmente no apartamento do produtor Carlos Imperial, em festas que chegaram a ser noticiadas pelos jornais como “orgiásticas”. O eterno bad boy Erasmo, hoje setentão, grava, neste ano de 1965, o seu primeiro long play "A Pescaria", onde consta o sucesso do ano anterior "Festa de Arromba", o who’s who do rock brasileiro da época, além da curiosa "Beatlemania", composição dele e Renato Barros, guitarrista e vocalista do conjunto Renato e Seus Blue Caps, na qual eles prometem acabar com os quatro cabeludos de Liverpool na porrada.

Muitas foram as publicações “especializadas”, inclusive uma Revista do Rock. Vários programas pipocaram nas rádios e televisões, muitos de curtíssima duração; assim, os artistas da primeira leva, antes rivais, agora desempregados, iam fazer parte do séquito da Jovem Guarda, engrossando o cast do bem-sucedido programa, “rendendo-se ao encanto natural” do líder, de jeitinho doce e matreiro. Assim, muitos cantores de segundo escalão, como Wanderley Cardoso e Jerry Adriani, experimentaram o gostinho do sucesso. Programas de outros gêneros, principalmente de Bossa Nova e MPB, viam-se como uma resistência ao rock e àqueles cabeludos descerebrados. À imitação da reacionária Marcha da Família com Deus pela Liberdade, série de passeatas contra o comunismo que se insinuava no País, músicos emepebistas e bossanovistas, sentindo-se ameaçados, fizeram a nefasta Passeata Contra a Guitarra Elétrica, para, logo depois, envergonhadamente, capitular ante a irresistível beleza sonora do instrumento musical inventado pelo Capeta.

sábado, 21 de julho de 2018

ENROLANDO O ROCK - Parte 2 ou FAZER ROCK NÃO É CONTAR PIADA



Edson Negromonte


Como a indústria fonográfica americana, no final dos anos 1950, ainda não estendera seus longos tentáculos na América do Sul e as novidades importadas demoravam certo tempo para chegar ao País, vários artistas brasileiros, uns com pseudônimos, outros desavergonhadamente com os próprios nomes, gravam o ritmo do momento, na língua original. Principalmente as baladas, muitas vezes com arranjos próximos à nossa cultura, que soam como marchinha ou samba-canção e, até mesmo, bolero. Vai sendo criado, assim, através do processo de aculturação, muito próximo ao ocorrido com a valsa brasileira, cujo grande nome é Zequinha de Abreu, e o tango brasileiro, representado pelo genial Ernesto Nazareth, algo que, muitos anos depois, virá a ser conhecido como um produto único e identificável, o rock brasileiro.

Então, várias gravações nacionais vão surgindo para suprir a necessidade do público jovem, ávido por rock’n’roll. Assim, a excelente cantora Lana Bittencourt espertamente "tempera" seus 78rpm, com o ritmo que os sábios da época rotulam como “modismo passageiro”: sua gravação de "Little Darlin'", rotulado como rumba (não se sabia ainda o que era esse tal de rock’n’roll), sucesso do grupo vocal The Diamonds, em outubro de 1957, tem do outro lado a oportunista "Feliz Natal". Na segunda edição, passadas as festas natalinas, consta o baião "Zezé", de grande sucesso. No ano seguinte, Lana grava "Alone", sucesso de Pat Boone, tendo no outro lado a bossa nova "Se Todos Fossem Iguais a Você". Com a receita infalível, “acender uma vela para Deus e outra para o Diabo”, Lana grava mais dois bolachões: "With All My Heart" (no lado B "Quero Ir à Bahia"), e "Just Young" (na outra face "Amor Sem Repetição", de 1959). A título de curiosidade, o grupo vocal The Playings, inventado pelo produtor José Scatena, nada mais é que o sexteto vocal e instrumental Titulares do Ritmo; todos os componentes são cegos. Excelente negócio: seis Ray Charles pelo preço de um. Até o Conjunto Farroupilha, da tradicional música gaúcha, vê-se gravando, em 1957, "Mr. Lee", sucesso do quinteto feminino The Bobbettes. De grande sucesso é o lançamento de "Não Pise no Sapato" e "Skirock, Skirock", a cargo de Os Cometas, conjunto sob nítida inspiração de Bill Haley e que, estranhamente, esclarece no selo do próprio disco tratar-se de Louis Oliveira and Friends. Um dos integrantes dos Cometas é Adilson Ramos, que vem a fazer sucesso na década de 60 com "Sonhar Contigo" e "Turbilhão.

Uma das figuras lendárias do rock brasileiro é o rotundo dançarino e saxofonista Bolão, com os seus Rockettes, que regrava "Short Shorts", hit do grupo The Royal Teens, tendo no lado B "Big Guitar", clássico do rhythm'n'blues. (Bolão era um músico de jazz que prestou bons serviços ao rock'n'roll, era conhecido como excelente dançarino de twist: gênero criado para substituir o rock, quando se acreditou necessário criar outro modismo para suprir as “fúteis necessidades da juventude”). Até Hebe Camargo, que começara imitando as Andrew Sisters, tira uma casquinha do rock, com o original "Serafim". No ano seguinte, em 1959, o cantor e comediante Moacyr Franco, assume a identidade de Billy Fontana, acompanhado pelos Rockmakers, e grava um 78rpm com "Baby Rock", o qual não vinga. Sintomaticamente, ele grava, no mesmo ano, com grande sucesso, a marchinha "Me Dá um Dinheiro Aí", e, no ano seguinte, "Rock do Mendigo", aparentemente encerrando a sua curtíssima fase roqueira. (Em 2003, ainda aproveitando-se do rock’n’roll, Moacyr Franco vê a sua recente composição “Tudo Vira Bosta” fazer grande sucesso na voz de Rita Lee). Também o humorista Paulo Silvino, sob o pseudônimo de Dixon Savanah, integrante de Os Terríveis (a formação deste grupo conta com o bossa-novista Carlinhos Lyra, além de Carlos Imperial e Roberto Carlos), grava "Let's Rock Together", em parceria com Abelardo Barbosa, o Chacrinha, em 1960. Vocês querem rock’n’roll?

Apesar da precária tecnologia dos instrumentos nacionais fabricados pela Giannini e Del Vecchio (guitarras, contrabaixo e amplificadores), o rock instrumental de qualidade fazia-se presente com o grupo The Avalons e os sucessos "Baby Talk" e "China Rock", entre outros, em 1959, cuja formação contava com Solano Ribeiro, criador dos festivais de música popular e da sigla MPB. Outros grupos instrumentais que surgiram antes de The Avalons, mas gravaram somente no início da próxima década: The Fellows, com "I'm Gonna Get Married", em 60, The Jordans, com "Boudah", em 61, e The Jet Black's, com "The Jet", em 1962, todos sob nítida influência da surf music emergente de The Ventures e The Shadows.

O grande acontecimento do final da década, perceptível somente algum tempo depois, é a estréia em disco de um grupo vocal, formado por três irmãos e um primo, chamado The Golden Boys, inspirado nos conjuntos de do wop e nas levadas soul de Roy Hamilton, com "Wake Up Little Susie", sucesso dos Everly Brothers. No lado B, a canção 'Meu Romance com Laura", número musical dos Golden Boys na chanchada "Cala a Boca, Etelvina", estrelada por Dercy Gonçalves. Quando os Golden Boys passam a cantar somente em português, serão de máxima importância para a Jovem Guarda e a MPB, assim como para o que se convencionou chamar, anos depois, samba rock, apesar do termo já aparecer, em 1958, como título de uma gravação do grupo vocal Os Cariocas.

E a história continua.