sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

CORPO POÉTICO




Edson Negromonte

Toda vez que um adolescente descobre, enlevado, que o poeta Shelley foi imolado em uma fogueira, erguida por Byron, às margens do oceano, a poesia inaugura-se, uma vez mais, nova em folha. Quando toma conhecimento do gran finale do poeta divino, ele passa vários dias inebriado pelo cheiro característico do corpo poético, a carne humana, queimando, ardendo em chamas. E descobre-se, pelo olfato, tal qual um lobo faminto, permanentemente à beira do mar, em uma praia próxima de Viareggio. O mar deixa-se, por isso, encapelar indefinidamente, somente para o seu gozo. É aí, então, que o adolescente pode perceber, pela primeira vez, a poesia que se desprende das labaredas dançarinas, sedutoras línguas de fogo. jamais poderá anotá-la, a essa poesia que do fogo emana, e que esta seja a sinistra sina de todo aquele que se aventura pela bruma da poesia. Tudo o que, a partir da noite eternal, escreverá, será em decorrência desse encontro momentâneo, e no entanto definitivo, ao qual foi levado por mãos invisíveis, que ainda o conduzirão a um plano em que as cenas fundamentais, necessárias à confecção da poesia, são temperadas na forja do ferreiro cósmico. Após esse plano sublime, o adolescente será, em seguida, conduzido ao jardim circular das dores de amor dos amantes não correspondidos. É somente nessa idade, quando se é capaz de construir catedrais na instabilidade das nuvens, que a poesia o julgará digno para se instalar em seu coração de neófito. Sonhar-se-á, assim, o mesmo poema de amor que, de tão original, bilhões e bilhões de outros poetas na imensidão do inescrutável universo já o sonhariam. E tentaram, tentariam, tentarão, então, escrevê-lo. E esse poeta ora e para sempre adolescente, tão ingênuo, tão inaugurador, torna-se mais uma vez, enfim, o responsável pela harmonia dos planetas de inumeráveis sistemas. Esse sofredor, irmão dos amores vãos, se é que algum amor na vida pode ser vão, como todos os poetas a ele anteriores, assim como todos os poetas do porvir, tornar-se-á, sem perceber, o principal auxiliar do inominável artífice, o responsável pela formação de novos poetas para as novas gerações, todos eles sob a influência do cheiro característico da carne ardente em fogo de Shelley. Posto que poesia é, como o amor, coisa volúvel, portanto, louvável, este será o segredo daqueles que, após a breve idade transitória, insistirão ainda na tessitura de poemas, atividade com a qual o mundo adulto das certezas não pode arcar e nem mesmo suportar. Porque poesia é mergulhar de cabeça na escuridão de um precipício marítimo desconhecido. Ouvir-se-á, desse modo, o estrépito do intrépido mergulhador, até o momento ignorante da máquina do mundo. Esse eterno amante amantíssimo, o fazedor de poesia, o fazedor da vida, detém a única e íntima certeza em um mundo de incertezas: a poesia só terá início novamente quando mais um adolescente desavisado reconhecer, em êxtase, o odor agridoce do corpo franzino de Shelley, em chamas, à beira do oceano, enquanto Mary Shelley, no desassossego do lar, em Chester Square, ainda acariciará o coração vivo, pulsante, do amado poeta.

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