quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

NA GALERIA DO ROCK


por Edson Negromonte

Assistindo a novela das 7, vem à tona um tempo em que eu subia as escadas rolantes sempre paradas de um prédio de linhas modernistas, conhecido como a Galeria do Rock, em busca de raridades discográficas. Na década de 80, não era tão difícil de encontrar os discos de vinil que então me interessavam. Como o nome sugere, a galeria era um amontoado de lojas mais ou menos especializadas em rock; dois andares abarrotados de bolachões à minha disposição. Raridades, muitas raridades, discos piratas, importados, capas originais, duplas, de cores intensas, sem aquele tom esverdeado ao qual os consumidores de rock estavam acostumados (a impressão nacional economizava em fotolito, em tinta, além de usar como original as capas já impressas das bandas estrangeiras), encartes, brindes. Levei um susto quando deparei numa das vitrines com a capa americana de “Beat”, do King Crimson. A nota musical, no centro, era rosa choque, sobre um fundo azul celeste, intenso. A edição nacional esmaecida era aquilo que as tricoteiras chamam de azul bebê, não batendo com o som poderoso da banda de Robert Fripp. Além de tudo, a indústria fonográfica brasileira empurrava goela abaixo um vinil de péssima qualidade que, muitas vezes, já vinha com a chiadeira típica dos velhos 78rpm. Mas o preço do disco importado era proibitivo; com o mesmo valor se adquiria três ou mais vinis nacionais. Não dava para fazer como o menino Claude Debussy que, em vez de gastar as parcas moedas em guloseimas baratas, como as outras crianças, preferia comprar um único e refinado e caro bombom de licor. Sem arrependimentos tardios, a avidez de conhecimento levou-me a optar pela quantidade em vez da qualidade.
O meu conceito de rock era bem mais elástico que o dos caras da minha geração e das seguintes; a minha curiosidade fazia de mim um ouvinte disposto a construir pontes inusitadas ligando margens aparentemente opostas. Devo ter sido um adolescente muito chato. Na Galeria do Rock, esperto, eu buscava os cantos empoeirados e esquecidos das lojas, destinados àquilo que os lojistas entendiam como entulho, discos difíceis de vender ou mesmo invendáveis, quase sempre a preços irrisórios, com uma tímida papeleta de “oferta” grudada nas caixas de papelão espalhadas pelo chão. Numa loja especializada em rock cinquentista, que exibia piratas e edições limitadas de Elvis e Little Richard, encontrei, em meio a uma montoeira de repudiadas duplas sertanejas, xuxas e paradas de sucesso, o “Molhado de Suor”, de Alceu Valença, pela Som Livre, e “A Música Livre de Hermeto Paschoal”, pela Sinter, ambos cobertos pelo pó branco do mofo. Pagando uma ninharia pelas duas preciosidades, deixei para conferir em casa, depois de uma cuidadosa limpeza com água morna e sabonete neutro. Perfeitos, praticamente intactos. Talvez tivessem pertencido a um radialista falecido, pois tinham o carimbo “promocional”. Assim, minhas peregrinações levaram-me a adquirir o ensandecido LP “Ferro na Boneca”, dos Novos Baianos, mais os compactos da dupla Diana & Stul, com “Ai que dor” e “Não é preciso correr”, de 1972; De Kalafe e a Turma, com “Guerra” e “Mundo quadrado”, pela Rosenblit; Tiago Araripe, com “Os três monges” e “Sodoma e Gomorra”; o compacto duplo psicodélico da Gal, no qual ela é acompanhada pelo som ácido de A Bolha, entre tantas outras joias.
Um dia, deparei com um engradado de plástico, onde os discos estavam empilhados na horizontal. Como todo colecionador de vinil sabe, os LPs devem ser colocados na vertical; evita-se assim que deformem. Enquanto o dono da loja observava intrigado aquele cabeludo escarafunchando o que ele entendia como lixo, eu já estava quase desistindo, em meio a tantas nulidades, quando fui agraciado pelos deuses com um LP de Lupicinio Rodrigues, “Dor de Cotovelo”, cantando as próprias composições, coisa para mim inédita. Como se isso não bastasse, a capa pobre continha um autógrafo do grande sambista gaúcho, com dedicatória para uma tal de Silvana. Como se estivesse cometendo um ato sórdido, coloquei o Lupicinio entre outros dois discos para não despertar a cupidez do comerciante, paguei a bagatela pedida pelos três LPs e saí da loja, andando nas nuvens. Ao ganhar a luz do dia, como um ladrão, sem olhar para trás, dirigi-me rapidamente ao metrô, agarrado ao meu tesouro. Dentro do vagão, onde ninguém podia reconhecer o facínora que eu era, o ladrãozinho vil capaz de enganar o incauto lojista, tirei o disco da sacola plástica e passei a admirá-lo. Em seguida, acariciei sensualmente o autógrafo em esferográfica azul do pequeno Lupe, que olhava-me de lado com um sorrisinho sacana em preto e branco.
De outra feita, encontrei também na Galeria do Rock a trilha sonora de “Minha Querida Lady”, a montagem nacional para “My Fair Lady”, com Bibi Ferreira e Paulo Autran, mas isso já é outra história.

Um comentário:

  1. Santa Galeria, hihi! Vem, pra cá pra gente passear lá! Eu moro pertinho...

    Ah, eu sou como o Debussy.

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