quinta-feira, 29 de abril de 2010

O VIOLEIRO


por Edson Negromonte

Minhas erráticas pesquisas sobre a viola caipira e as diferentes afinações, instrumento caro à real compreensão da alma brasileira, levaram-me à Ilha do Cardoso, em busca do único descendente vivo do afamado violeiro Bento Cego. Conta-se que, seguidor dos passos do bisavô, Setembrino tornou-se também mestre na arte de tanger as cordas desse artefato de origem ibérica tão bem aclimatado às nossas plagas. Os eruditos são unânimes em afirmar que, assim como a boiúna, este violeiro existe somente nas mentes infantis dos caboclos do litoral paranaense. Como sói acontecer com os navios piratas naufragados em nossa costa, muitos se aventuraram em rastrear as pegadas de Setembrino, em busca da fama, mas todos indistintamente fracassaram. O pouco apreço pelas verdades cristalizadas concedeu-me, assim, a liberdade de sair a campo na busca quixotesca de mais um moinho de vento abandonado na paisagem das páginas empoeiradas das universidades, pelas quais nutro o mais sincero desprezo. Durante muito tempo, tentei aprender o ponteado da viola, mas meus dedos entrelaçavam-se entre os cinco pares de cordas duplas, lembrando-me de uma impraticável simpatia: deve-se apanhar, à meia-noite, um filhote de cobra coral, de coloração vermelha e preta, e segurando-o pelo pescoço, com o polegar e o indicador da mão direita, deixá-lo se entrelaçar entre os outros dedos. Depois, proceder da mesma forma com os dedos da mão esquerda, evitando-se somente de deixar a cobra se enroscar nos polegares. Assim, desculpando-me a um possível leitor, posso atribuir a minha incapacidade de dedilhar o instrumento à aversão que sinto pelas serpentes. Decidi, destarte, devido à minha já citada incapacidade, tornar-me um dedicado estudioso da história da música, mormente das raízes musicais brasileiras, mas principalmente da cultura caipira, coisa que levou-me a rastrear a origem desse instrumento, indo para além das terras lusitanas e adentrando os pagos ignotos da influência árabe na cultura de Espanha e Portugal, e conseqüentemente do Brasil. Com o passar dos anos, movido pela paixão, fui sem critério acadêmico algum coletando biografias de violeiros, de fabricantes do instrumento, famosos e desconhecidos, causos e lendas, as mais diversas afinações, chegando finalmente ao Santo Graal dos estudiosos da viola, o quimérico Setembrino, sobre o qual conta-se ter cabeça de leão, corpo de cabra e rabo de serpente, além de lançar fogo pelas ventas. Evidente que essa fantasiosa descrição não passa de invencionice da mente criativa do nosso caiçara, à beira do fogo, quando uma garrafa de aguardente passa de mão em mão. A verdade é que nem o venerável Mário de Andrade e muito menos o saudoso Marcus Pereira, em seus insuspeitados mapeamentos musicais, tocaram sequer de raspão no legendário nome desse violeiro, talvez por excesso de zelo ou até acovardamento perante o impalpável.
Ao desembarcar na ilha, ao entardecer, fui recebido por pescadores que estavam na praia, consertando a malha de uma rede que tinha sido destroçada por um grande peixe, o qual um deles, aparentemente versado na Bíblia, afirmava ser o colossal Leviatã, do caos primitivo. Olhavam-me, entre curiosos e desconfiados. Surpreendentemente, hospitaleiros, ofereceram-me uma cabana desocupada, para o pernoite, assegurando que pela manhã o menino me levaria ao encontro do violeiro, como se há muito esperassem a minha chegada e tivessem prontas de antemão as respostas para as minhas ainda não formuladas questões. Mesmo receoso ante a inusitada situação, mal pude conter a satisfação. Onde tantos fracassaram, seria eu o predestinado a andar sobre o terreno movediço do manguezal das lendas? Imediatamente, desculpei-me comigo mesmo por tamanha arrogância.
Mal preguei os olhos a noite toda, adormecendo somente quando os primeiros e tímidos raios da manhã adentravam as frestas das telhas, algumas rachadas, outras quebradas. Despertei sobressaltado, olhei o relógio; duas da tarde! Desesperado, fui à porta, em busca de alguém. Encontrei somente a imensidão azul do mar à frente. Bati nas casas, sem obter resposta. Pareciam todas recentemente desocupadas, as cortinas de chita ao sabor do vento. Silêncio absoluto dentro das casas. Espiei dentro de algumas: tudo deserto, nem sombra de alma vivente.
- E o menino, cadê o menino? – perguntei em voz baixa, para mim mesmo.
Sentia-me um personagem de ficção científica ou, pior, de um filme de terror, à espera de uma catástrofe iminente (confesso, cheguei a pressentir um macabro mantra marinho, como se numa ficção científica japonesa), quando um vira-latas foi se aproximando lentamente. Enquanto o pequeno animal de cor parda cheirava despreocupado as minhas pernas, fui devagar esticando a mão em sua direção, sinal de coração limpo, em busca de confiança. Após um breve tempo, que para mim pareceu uma eternidade, ele lambeu-a, abanou o rabo e deu um latido, olhando-me amigavelmente nos olhos. Em seguida, deu uma pequena corrida à frente e voltou-se, latindo e novamente abanando o rabo, como se quisesse dizer algo. Não sei por que cargas d’água o segui; instintivamente talvez. Ele embarafustou mato adentro e, de quando em quando, parava e olhava para trás. Continuei em seu encalço; a floresta ia tornando-se mais e mais densa. No início de uma elevação, ofegante sentei-me para descansar. O cão postou-se ao meu lado, silencioso, à espera de que eu recuperasse o fôlego. Manteve-se em tão rígida postura que lembrei-me instantaneamente de Anúbis, o cão sagrado dos egípcios. Retomamos, então, o caminho. No alto de uma elevação, divisei lá embaixo uma choupana, perdida em meio ao matagal, de onde se elevava um penacho de fumaça. O coração aos pulos, tomei uma respiração profunda, busquei o vira-latas, mas o danado desaparecera. Desci a encosta em direção à humilde habitação, certo de que aquela era a morada de Setembrino.
O inconfundível som de uma viola de arame foi tornando-se cada vez mais nítido. Minhas mãos suavam, latejavam as veias da fronte, meu corpo tremia, mas tudo isso é muito pouco para descrever o estado em que me encontrava. Febril, cada pequena célula de meu corpo vibrava, como se eu estivesse na antecâmara da grande pirâmide asteca, prestes a ser iniciado nos mistérios arcanos da vida. E a viola ponteando, indiferente à minha aproximação, quando, apesar da vista toldada, em meio a pontos de luz que brilhavam e apagavam, e novamente brilhavam para em seguida se apagar, percebi, sentado na soleira da porta, um homem magro, de pele clara, ressequida do sol, e roupas de aspecto terroso. Sem se perturbar com a minha inopinada presença, ele continuou o ponteado. De olhos fechados, o corpo balançando para frente e para trás, os dedos caíam certeiros, como pequenos martelos, nas cordas de aço, tal e qual um místico indiano em transe. Findou a execução com um acorde maior, no qual a viola pareceu dizer, de dentro da caixa de ressonância:
- Vieste!
Quem falara?! O homem ou a viola? Sobressaltou-me essa dúvida momentânea, tal e qual quando nos aproximamos de algo que desejamos fervorosamente a vida inteira e, nesse exato momento, resolvemos duvidar da sua veracidade. Nessas ocasiões, nosso velho e conhecido parceiro, o ceticismo, faz a sua parte, senhor das artimanhas da dúvida, para que permaneçamos no lodaçal onde chafurdamos, desde tempos imemoriais. Estariam os habitantes da ilha pregando-me uma peça, como porventura fizeram com todos os outros buscadores que aqui aportaram? Ou meus devaneios teriam me arrebatado para o bojo de um conto de fadas? Covardemente, desejei que toda a cena se transformasse de um momento para outro em nada, o palpável nada, quando a viola insistiu:
- Espero-te há tanto tempo...
Isso tudo fugia agora à minha estreita compreensão. Eu estava, com certeza, sendo alvo de uma muito bem urdida trama daqueles pescadores. Matreiros, eles tinham arquitetado essa brincadeira para dar boas risadas às minhas custas, assim como fizeram com os pesquisadores anteriores a mim.
- Aquieta o teu coração... - continuou a viola.
Obedeci prontamente, porque às coisas do outro mundo não é conveniente desobedecer, conforme aprendi com as velhas rezadeiras da minha infância.
Setembrino olhou para o alto, justamente quando um bando de gaivotas atravessava o céu azul, principiando então uma plangente melodia em perfeita harmonia com as aves marinhas. Aos poucos, sem que eu percebesse, as lagrimas começaram a escorrer pela minha face. Naquele exato momento, tive certeza absoluta de que comigo ocorrera o encontro que tantos abnegados tinham almejado. Eu estava sendo agraciado com o mágico soar da viola de Setembrino, o herdeiro de Bento Cego.
Não posso assegurar quanto tempo ainda fiquei ali, a olhar aquele homem e seu instrumento de sortilégio, lembrando-me vagamente de que ele apertava e desatarraxava cravelhas, e tocava uma ou tantas canções, pensando melhor, uma única e interminável melodia, com diferentes andamentos e variações sobre o vôo das aves, as quais nem posso mais afirmar se eram mesmo gaivotas, do ninho para o mar, do mar para o ninho, cujos fiapos melódicos, após tantos anos, ainda vêm-me à mente em momentos de desassossego. O que sei é que, como se eu despertasse de um transe místico, vi sua mão estendida mandando-me embora, quase enxotando-me dali, como se eu tivesse então conspurcado o paraíso, como se eu tivesse levantado o véu da face da vestal. Independente da minha vontade, virei as costas àquilo que eu fôra buscar e tomei de volta o estreito caminho por onde eu viera. Cheguei à aldeia dos pescadores.quando o sol ia se deitando no horizonte, banhando-o das mais diversas tonalidades. Na praia, vários vultos acocorados observavam silenciosos o movimento prateado dos cardumes. Conforme meu pedido, uma canoa foi preparada para levar-me ao cais de Antonina, onde, no Hotel Tóquio, faria algumas anotações e subiria no dia seguinte para a capital. Na praia, enquanto esperava a embarcação ser preparada, eu conjeturava, absorto, sobre a minha recente experiência com forças que até hoje não compreendo, quando fui despertado por uma voz feminina, vindo de dentro de uma das casas, chamando por alguém e batendo com um prato de alumínio na porta.
- Vem!
Repentinamente, um pequeno cachorro pardacento, sim, o mesmo que me conduzira a Setembrino, saiu de trás de uma baleeira e correu em direção ao chamado da mulher, enquanto ela gritava:
- Vem, Menino, vem!

2 comentários:

  1. Pelo amor de Deus!!!Edson, fiquei emocionado, juro.Pude ver nítidamente as cenas acontecendo em minha mente, como um filme. Teve momentos que não sabia mais se era verdade ou ficção...tamanha riqueza de detalhes e delicadeza na narração. A propósito, esse Bento Cego existe? Pergunto porque sei que você adora e pesquisa viola caipira e talvez o tal Bento Cego exista de verdade, se não, deveria existir.

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  2. Obrigado, Chris! O Bento Cego é uma das personalidades mais importantes do litoral do Paraná. Tomei-o como ponto de partida para criar o Setembrino, este sim ficcional. Abraço!

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