quarta-feira, 14 de julho de 2010

O AMIGO MAIS VELHO


por Edson Negromonte

A minha conscientização política aconteceu de variadas maneiras, seja através de panfletos, surgidos sabe-se lá de onde, seja ouvindo as conversas veladas dos adultos ou através da leitura de alguns livros ainda permitidos, como "A República", de Platão, e "A Cidadela", de Tomaso Campanella, em edições surradas, mas principalmente através do amigo Wagner que, um dia, me emprestou sem como nem porquê, mas cheio de recomendações, o diário de guerrilha de Che Guevara. Talvez visse no amigo mais novo alguém digno de confiança. De uma geração anterior à minha, muito antes da minha chegada a Antonina, ele já se mudara para Santos; por aqui aportando somente nas férias. Antes do total obscurantismo, imposto pela censura dos generais, ele colecionara religiosamente as páginas do líder guerrilheiro, publicadas no jornal O Globo, colando-as cuidadosamente nas folhas de um prosaico caderno de desenho. Era um dos seus tesouros. Agora, isso dava prisão, tortura e até morte, que podiam se estender a outros membros da família. Então, todo cuidado era pouco. Portanto, isso era coisa que não se comentava com qualquer um. Para que se ficasse sabendo desses tesouros enterrados nos porões das casas, era preciso primeiro adquirir a confiança do outro. Eis que, uma dada noite, recebi o diário do Che das mãos de Wagner, como se recebesse um carregamento de droga, num tráfico de conhecimento, mocozeado numa encardida mochila de lona. Despedi-me dele e fui para casa, trêmulo, apreensivo, à espreita; a qualquer instante vultos saltariam da escuridão e me arrebatariam o volume. Consegui chegar incólume ao meu quarto, o qual ficava do lado de fora da casa. Com o abajur aceso até altas horas da madrugada, deliciei-me com os recortes, lendo-os gulosamente, deixando escapar palavras, adivinhando sentidos, mas comungando com a tão sonhada liberdade da América Latina, quase toda controlada por militares e pelo poderio econômico dos Estados Unidos. Com a chegada das primeiras luzes da manhã e do sono insistente, escondi o caderno sob o colchão, pois nem meus pais deviam saber o que eu andava lendo. Podia ser perigoso para eles; eu não queria ver minha mãe pendurada no pau de arara, levando choques na genitália. Ou as unhas de meu cachorro Toddy sendo arrancadas a frio, para que o coitado, sob coação, confessasse que o meu quarto era um aparelho. Hoje, isso pode parecer paranoia, mas contava-se nos bares sobre um bebê ameaçado pelos torturadores, os quais lhe faziam perguntas sobre atividades comunistas. A mãe, presente na sala, a tudo assistia, aos prantos, enquanto os policiais interrogavam o pequeno. Evidente que a mãe é que respondia pela criança, mas os policiais nem sequer olhavam para ela, ignorando-a, fazendo de conta que as respostas desesperadas e convenientes vinham da boca do bebê, que aterrorizado só sabia chorar. Então, estava decidido: no dia seguinte, eu iria também dar a vida pela causa, pela libertação do país, pegar em armas, combater o poder dominante. Depois da limpeza doméstica, como o Che, combateria em outras terras e não descansaria enquanto houvesse um foco de totalitarismo no planeta. Sim, eu iria embora, sem avisar pai nem mãe. Não podendo expor meus entes queridos ao perigo, adotaria outro nome, um codinome. Adormeci, cheio de convicções revolucionárias.
Por volta do meio-dia, radiante o sol atravessava a vidraça do quarto, sem cortinas. Agora, pensando melhor, como eu faria para participar da luta armada? A quem me dirigir? Era melhor deixar a partida para a noite. Ou, quem sabe, para o dia seguinte. É isso mesmo, precisava antes fazer os contatos, não podia sair assim sem mais nem menos. Precisava contar os meus planos para o amigo mais velho. Somente para ele. Quem sabe, e se ele me acompanhasse na luta pela libertação dos oprimidos? Andei pela cidade e não o encontrei. Talvez estivesse em reuniões importantes, engendrando novos planos para a tomada do poder. Encontrei outros amigos, da minha idade, a conversar despreocupadamente sobre futebol, as meninas, o mar, o tempo... Com eles fiquei; sim, a revolução podia esperar.
Na tarde do dia seguinte, finalmente encontrei o amigo mais velho. Entusiasmado, contei-lhe meus planos. Desconversou, perguntando-me se eu já ouvira com atenção os sambistas da velha guarda. Sentados na escadaria em frente à casa do avô, falou-me de gente como Zé Kéti, Cartola e Nelson Cavaquinho, enaltecendo as letras, de aparente simplicidade, mas, ao mesmo tempo, de insuspeitada herança parnasiana. As letras de música eram, para ele, de grande interesse, relacionando Caetano Veloso com Fernando Pessoa, principalmente no fado "Os Argonautas", alertando-me, em voz baixa, sobre um trecho da letra de "Soy Loco por Ti, América", quando o compositor diz el nombre del hombre muerto, ya no se puede decirlo. Surpreendentemente, revelou-me que isso era uma alusão ao Che. Eu, por minha vez, mais jovem, retribuía as lições de música popular brasileira com informações sobre rock, a minha paixão, contando-lhe sobre bandas como Blood, Sweat & Tears, Sugarloaf e Argent, entre tantas outras. (Alguns anos mais tarde, assombrou-me a sua paixão por Pink Floyd. Ele comprara dois exemplares de "The Dark Side of the Moon". Um para ouvir até gastar e o outro para guardar no fundo do baú, como se guarda uma relíquia, acrescentando que era coisa digna de se mostrar aos filhos, os quais ele ainda não tinha. Contei-lhe, então, indignado que o crítico Tárik de Souza escrevera na revista "Rock – História e Glória" que, neste LP, a banda tinha se transformado no Ray Conniff do rock. Plácida e sabiamente, retrucou: – E que problema há em ser o Ray Conniff do rock?)
A nossa agradável conversa sobre música foi interrompida por um bêbado, cantarolando:

Com a marvada pinga que eu me atrapaio
Eu entro na venda, já dou meu taio...

Era a famosa "Moda da Pinga", o imorredouro sucesso de Inezita Barroso ecoando no morno final de tarde antoninense. Despedimo-nos em meio a risos; era hora de jantar.
À noite, saboreando uma Choco-milk, eu assistia ao Fantástico, encostado no balcão da lanchonete do Oswaldo quando, num dos quadros musicais do programa televisivo, surge um jovem tocando uma craviola, instrumento de belíssima sonoridade, mas de difícil execução, inventado por Paulinho Nogueira. Extasiado com a técnica de Stênio Mendes (este era o nome do virtuose), ouvi uma voz conhecida ao meu lado.
– Esse cara é demais!
Era Wagner, também encantado com a execução de "Algazarra dos Monges". Ao final do quadro, tecemos comentários sobre os grandes músicos do país, esquecidos, marginalizados, sem acesso aos meios de comunicação. E continuamos conversando sobre música, muita música, todo o tipo de música, trocando ideias, muitas ideias, e voltando à nossa mais recente descoberta, Stênio Mendes, o qual ainda não tinha nenhum disco lançado; falamos também sobre o disco ao vivo de Alceu Valença, com "Papagaio do Futuro", música que o amigo considerava um primor, sobre a guitarra infernal de Lanny Gordin, no disco da Gal; o tão comentado e jamais ouvido "Não Fale com Paredes", do Módulo Mil, sobre A Bolha, o Terço, Novos Baianos, as letras estranhas e cheias de toques de Galvão, a voz de Baby Consuelo, que Wagner dizia remeter à Ademilde Fonseca (de quem eu nunca ouvira falar), sobre Wally Sailormoon, que lançara o livro "Me Segura que Eu Vou Dar um Troço", sobre bolero (outra coisa que eu detestava, mas que o professor fez questão de mostrar a beleza do ritmo na voz de Roberto Luna. Puxa, outro desconhecido!), sobre Drummond, o "Orlando", de Virginia Woolf, João Cabral, Silvia Plath, a poesia engajada de Ernesto Cardenal, Neruda, Cesar Vallejo, Mao Tsé Tung, a capa de "Some Time in New York Ciry", a nudez de John e Yoko, os contos de Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Mario Vargas Llosa, enfim, a emergente literatura latino-americana, a entrevista de Sidney Magal para o Folhetim, a cigana Sandra Rosa Madalena, sobre o carnaval que se aproximava, Nenê Chaminé, o carnavalesco que abria a festa carregando um urinol cheio de cerveja, onde boiava uma prosaica linguiça, sobre o Bloco das Escandalosas, com insuspeitos chefes de família travestidos com as roupas das esposas...
Porque a ocasião exigia, pedimos então mais uma rodada dos deliciosos sonhos do Oswaldo, recheados de creme.

Um comentário:

  1. Quantas referências, parece sempre uma aula misturada por uma boa prosa.
    Sinto saudades de nossas conversas e risadas.

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