segunda-feira, 20 de setembro de 2010

JÚLIO


por Edson Negromonte

Desta cama, onde estou estendido há pouco mais de dois anos, posso observá-lo. Nada digo, as palavras há muito não vêm à minha boca. Ele também nada diz, sujeitando-se a me observar diariamente, religiosamente à mesma hora, quando chega em casa do trabalho. Acostumei-me, é o único membro da família que ainda vem me ver. Sei, pelos pequenos ruídos, quase imperceptíveis, pelos cheiros, ocasionais, que minhas irmãs ainda vivem no velho casarão da Rua Florêncio. Às crianças foi terminantemente proibida a entrada em meu quarto. O visitante habitual olha-me mais curioso que apiedado, os olhos negros não o permitem mentir. Iludem-se aqueles que dizem ser os olhos escuros impenetráveis; pelo menos os de Júlio não o são. Não para mim, que o criei como se fosse meu filho. Quando chegou à nossa casa, Júlio era uma criança calada, de quatro anos, vindo de um dos muitos lares desfeitos do fim da Guerra. Cresceu, tornou-se homem, não parou de crescer, até hoje cresce, alguns milímetros por ano. Ou será que, daqui de baixo, eu o vejo maior do que realmente é? Sempre de paletó, camisa de gola olímpica, chova ou faça sol, a vasta cabeleira negra, ele tem deixado a barba crescer, enquanto a minha é feita diariamente pelo enfermeiro. Para que todo esse cuidado com a barba, se ela crescerá sem cuidados após a minha morte? Às vezes, Júlio entreabre a boca; parece querer dizer algo importante, mas cala-se. Se soubesse o quanto isso me incomoda, o quanto me constrange, ele diria besteiras, palavras sem nexo, emitiria um som qualquer. Ah, se ele soubesse o quanto preciso ouvir a sua voz, o timbre característico, antes que a minha hora chegue. Nenhum de meus músculos é capaz de fazê-lo entender que necessito ouvir a sua voz, estou imóvel nesta cama, somente meus olhos têm alguma vida, apesar de não poder mais derramar uma lágrima sequer. Nem por Júlio, nem por mim. Sinto a vida presente em meu corpo através dos movimentos involuntários, o bater do coração, a pulsação do sangue, as fezes, a urina. A sensação da urina quente saindo pelo pênis, escorrendo pela perna, encharcando o pijama, o colchão, chega a ser reconfortante, chegando às raias da gratificação, apesar do constrangimento. Acredito que o fedor de mijo repugna Júlio, mas ele sabe muito bem que o enfermeiro só pode vir pela manhã. As tardes, eu passo sozinho, colecionando palavras, decompondo-as mentalmente, em exercício anagramático, avarento: uma por dia. O pior é que o meu cérebro insiste em se manter vivo, não há nada que possa submetê-lo à apatia, por mais que eu tenha tentado. Se isso fosse possível, tenho certeza absoluta de que sobreviria a morte, a tão desejada companheira. Queria poder perguntar a Júlio se há no dicionário a palavra requietório, não sei o significado, veio-me à cabeça a noite passada, logo depois que ele se retirou do quarto, fechando a porta sem ruído. Não demora e Júlio logo chegará do banco. Ele, então, ficará me olhando durante muito tempo com aqueles olhos miúdos e negros, mais curioso que apiedado.

2 comentários:

  1. Muito muito bom! ;)

    Quando li a primeira vez imaginei o Júlio igualzinho a essa foto!

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  2. Caramba!!!! que bonito! Júlio, grande Júlio. Mande lembranças a ele.

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