
texto de Edson Negromonte
foto de Luiz Henrique Ribeiro da Fonseca
e como varreria tudo para baixo do tapete se nem tapete eu tenho? Houve um tempo que acreditei que a poeira vinha dos desertos, que o pó depositado nos cantos da casa avoenga, ora avultante e arenosa, era apenas resquício, resíduo de um deserto particular, interior, intransferível, destinado. Isso, ah, isso foi há muitos, muitos anos atrás quando eu ainda acreditava em tuaregues à espreita, acampados no quintal das gordas goiabas vermelhas, vermes maduros, tempo em que o povo do deserto, montado em grandes, enormes, gigantescos camelos amarelos, assaltava os meus olhos através da tela estelar do Cine Ópera, escondido na avenida central de uma minúscula cidade à beira do mar. Um dia, o povo do deserto, de salteadores, de assalto, seccionou-me os olhinegros. Na mesma sessão, a decisiva sessão de cinema, o povo do deserto desapareceu entre as nuanças do nunca mais. Aos poucos, capítulo a capítulo, a miraculosa luz do sol foi devolvendo-me a visão, uma visão a mim estranha, estrangeira, à qual eu não estava acostumado, que não me pertencia, mas que tornou-se minha, à qual ainda não me acostumei completamente, embora me permita ver as gravuras do povo do deserto, muito embora eu não o reconheça nas gravuras falseadas de um povo nômade e arisco que não mais existe, se é que um dia existiu, desde que levou os meus olhos: o prêmio de uma cegueira cinéfila, cultivada. Dias quentes, inclementes, noites intransigentes, não pude mais ver, sequer perceber por trás do diáfano véu das dançarinas, sentindo somente o odor terrível das cabras do povo do deserto. Hoje, a visão recuperada, não a anterior, mas a adquirida, o que resta de tudo o que intuí é o sentimento da lâmina aguda a cortar a córnea, da lâmina gélida, o aço da cimitarra a cortar a córnea. O que me consola é a consciência de que um menino cego, da mesma idade que eu, a mesma idade que eu tinha àquela época, também abandonado pelos deuses, dará com os meus olhos num dos muitos cantos empoeirados do antigo Cine Ópera, o qual atende agora pelo pomposo nome de Theatro Municipal. Como eu poderia varrer isso tudo para baixo de um, mesmo que fictício, tapete?
Parabén Negromonte, vc faz falta em Antonina, as vezes não sabemos acolher pessoas talentosas como vc. um grande abraço
ResponderExcluirPorra, Edson, não vi este maravilhoso texto sobre o nosso querido cine ópera.
ResponderExcluirabraços