terça-feira, 16 de novembro de 2010

CARA DE CHUVA

por Edson Negromonte

Este era o apelido de Reinaldo: Cara de Chuva, e que só vinha tornar mais evidente a tristeza, a profunda tristeza da sua fisionomia. Embora o apelido lhe caísse bem, eu sempre o chamei pelo nome, conhecia o rapaz bem antes de os antoninenses o terem apelidado de maneira tão maldosa, porém nunca vi um apelido calhar tão bem a alguém. Chamá-lo de Cara de Chuva era, para mim, evidenciar ainda mais essa tristeza intrínseca que todos os homens, especialmente Reinaldo, carregam. Ele era funcionário do Banco do Brasil, levado por meu pai a assumir uma posição melhor, a chefia do câmbio, na agência da cidade de Antonina, no Paraná. Depois do expediente, Reinaldo enchia a cara, e isso não é força de expressão, ia peregrinando de boteco em boteco até acabar na zona de meretrício, onde ficava o único bar aberto toda a madrugada. Nunca se soube de uma única falta de Reinaldo ao serviço, era um funcionário exemplar, cordato, atencioso.
Numa dessas madrugadas em que não se consegue conciliar o sono, estava eu sentado no meio-fio, no cruzamento das ruas Dr. Carlos Gomes da Costa e Conselheiro Alves de Araújo, às voltas com os questionamentos da adolescência, quando vejo a distância a figura cambaleante vindo em minha direção. Não restava a menor dúvida, só podia ser ele: Reinaldo. Sentou-se ao meu lado, dizendo com voz engrolada:
- Eu bebo, você sabe que eu bebo, mas nunca bebi o juízo.
Olhei-o com um sorriso condescendente e, pela primeira vez, à luz difusa da iluminação da rua (ah, as noites de breu de Antonina), eu percebi, em sua face, a dor profunda de um homem. Toda a tristeza mostrava-se em suas sobrancelhas negras, espessas, caídas em demasia nas extremidades, líquidas.
- Eu bebo desde pequeno, de criancinha. Meu avô tinha alambique, lá em Ponte Nova, antiga Fazenda da Manteiga, eu era o experimentador oficial das cachaças do velho. Por isso, o meu fígado é resistente, eu tenho resistência ao álcool, não fico bêbado nunca...
Parou repentinamente de falar, perscrutando a noite.
- Edson, você já conhece o meu filho?
- Não, ainda não.
- Vamos lá em casa, pra você ver o bichinho.
- Deixa pra outro dia.
- Não, eu faço questão.
- Já é muito tarde, a Lúcia deve estar dormindo.
- Você não vai me fazer uma desfeita dessas.
- Reinaldo, a Lúcia ainda tá de quarentena...
Tanto ele insistiu que acabei indo conhecer o menino, entrando pé ante pé na casa quieta, adormecida. No berço, a sono solto, o herdeiro do meu orgulhoso amigo.
- Ainda não sei que nome dar a ele. Pensei em White Horse, nome forte, de índio, pra ser um vencedor; Johnny Walker também é bom. O que você acha? É, acho que vai ser Johnny Walker mesmo, mas, como eu sou nacionalista, o apelido vai ser Tatuzinho. Ou Pitu?

5 comentários:

  1. Tatuzinho é ótimo. Escrever é muito bom né?

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  2. Muito legal.
    os latinos diziam: in vino veritas, no vinho a verdade...
    Cada dor, cada questionamento existencial ( esse conhaque, como diria o carlos Drumond) deixam a gente comovido pra diabo...
    muito legal, edson!!

    Jeff Picanço

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  3. Porra, Edson.
    Que legal vc lembrar de cara-de-chuva.
    Texto romântico, como nosso querido Reinaldo.
    Parabéns
    Abração!

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  4. Nunca pensei que foi teu pai que levou Reinaldo para Antonina, vivendo e aprendendo.

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  5. permisso, meu amigo, para postar nos amigos do jekiti
    abração

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