terça-feira, 3 de maio de 2011

ÁTOMO DE CORAÇÃO MATERNO


por Edson Negromonte

Todas as vezes que deparo com Flash Gordon, seja nas maravilhosas pinceladas de Alex Raymond, seja nas nostálgicas imagens em movimento dos seriados da década de 30 e 40, encarnado pelo campeão olímpico de natação Buster Crabbe, lembro-me dela, a mulher que me pôs no mundo, a qual, muitos anos mais tarde, serviu-me de inspiração para a obra “Ela é Doida por Flash Gordon”, onde reproduzi seu rosto angelical, aos 20 anos (grávida, uma fita de veludo verde amarrando os cabelos loiros, uma blusa de algodão branco, ombros juvenis à mostra), sobre um intenso fundo azul. Ela serviu-me ainda de modelo para o retábulo “Seja Você também um Cadete da Aeronáutica”. Lembro-me perfeitamente da primeira vez que assisti ao seriado do inesquecível personagem, ao qual os estudiosos afoitos atribuem erroneamente como o primeiro herói espacial dos quadrinhos. Esse privilégio pertence, na verdade, a Buck Rogers, uma criação de Dick Calkins.
O meu primeiro contato com Flash Gordon e a descoberta da televisão aconteceram ao mesmo tempo. Até aquele momento, esta grande novidade, pelo menos para mim, pertencia somente ao mundo da fantasia, da ficção, ou melhor, ao universo dos personagens de Walt Disney, particularmente às tiras de Chiquinho e Francisquinho, os sobrinhos do camundongo Mickey, onde o eletrodoméstico era objeto onipresente na sala de visitas. Deles, é claro.
Ao nos mudarmos da pacata São Francisco do Sul, em Santa Catarina, para a já agitada Niterói, na década de 60, uma das aquisições de meu pai foi o nosso primeiro televisor. À prestação, é claro, pois pertencíamos à classe média; ele era funcionário do Banco do Brasil. Evidente que essa maravilha do mundo moderno também ocupou o lugar mais nobre do apartamento onde morávamos, no bairro de Icaraí, a sala de visitas. As imagens em preto e branco sucediam-se vertiginosamente; tínhamos à disposição cinco canais, com a programação mais variada possível: desenho animado, filmes, séries, musicais, humorísticos e jornalismo, principalmente o Repórter Esso. Extasiados, assistíamos a tudo, indistintamente, inclusive aos comerciais, alguns em película, mas a grande maioria ao vivo. A minha sorte é que eu ia à escola pela manhã e a programação tinha início somente a partir do meio-dia, podendo assim deleitar-me com a variedade das ofertas televisivas, desde a hora em que voltava para casa até a hora de dormir, o que, naquele tempo, era muito cedo: as crianças iam para a cama por volta das sete horas da noite. Nos finais de semana, podíamos ficar até as oito. Quando meus pais iam dormir, eu, pé ante pé, escapulia da cama para assistir a antigas séries policiais americanas, como “Suspense”, “Nos Passos da Lei”, “Os Intocáveis”, “Na Corda Bamba”, “Peter Gunn”, “Cidade Nua”, entre tantas outras consideradas de temática adulta. Após o encerramento da TV Excelsior, à meia-noite, de posse de meu lápis preto, enchia folhas e mais folhas de papel em branco, desenhando as imagens do que vira: gângsteres, tiroteios, homens de sobretudo, mulheres fatais, graças a saudável insônia. Minha mãe conta que, aos três anos de idade, eu já tinha calo no dedo médio da mão direita, que até hoje me acompanha, de tanto rabiscar madrugadas adentro. Lembro-me da imagem dela, entrevista pela porta da sala de jantar, condoída com a minha falta de sono, balançando a cabeça e voltando inconformada ao quarto. Um dia, quando eu tinha 16 anos e já morávamos em Antonina, ela aprendeu uma simpatia, feita com uma folha de alface costurada entre a fronha e o travesseiro, que levou embora para sempre a minha velha companheira noturna, que me inspirava para, além de desenhar, escrever, ler, ouvir as vozes sutis dos fantasmas... Parafraseando o poeta Casimiro de Abreu: Ai, que saudade da insônia da minha vida.
Voltemos aos tempos niteroienses da descoberta da televisão. Havia, também, a TV Continental, a minha favorita, de parcos recursos, que exibia velhos faroestes do cinema, remontados para a televisão, como “Hopalong Cassidy” e “Durango Kid”, que não interessavam mais aos outros canais. Assim, meus olhos puderam despertar tardiamente para a novidade dos filmes mudos, para as esquecidas joias da sétima arte, guardadas no baú do tempo, como “O Fantasma da Ópera” e “O Corcunda de Notre-Dame”, com jogos apaixonantes de rembrandtesco claro-escuro, caras e bocas, olhos arregalados, a atuação característica de uma época em que o cinema ainda estava atrelado ao teatro, de onde viera a grande maioria dos atores. O grande atrativo nesse redemoinho que avassalava o meu ávido coração infantil eram os velhos seriados do cinema, principalmente “Os Perigos de Nyoka”, “Águia Branca” e “A Ilha Misteriosa”, mas foi “Flash Gordon no Planeta Mongo” que tocou profundamente a minha alma.
Como sempre, depois da escola, encontrava-me com o prato de comida sobre as pernas, em frente à TV, quando minha mãe veio da cozinha, enxugando as mãos pequenas no pano branco de prato, sentou-se ao meu lado e hipnotizada pela cena que, naquele momento, emanava do tubo de imagem, segredou:
– Esse é o Flásh Górdon... o imperador Ming, o terrível... a rainha Azura... o príncipe Bárin... a princesa Aura... O doutor Zarcóf... Larri Búster Crábe... eu era apaixonada por ele... não perdia um capítulo... todos os sábados... no cinema... depois, eu passava a semana toda imaginando como ele ia se safar do perigo... eu sonhava com ele.

5 comentários:

  1. Edson, narração bela e instrutiva. Por todas as linhas te vi claramente.
    Abraço

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  2. Ao ler o título, logo imaginei: Edson, vai falar sobre o disco "das vacas", do Pink Floyd. Ledo engano. É um Proust buscando o tempo perdido.
    abração, meu amigo.

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  3. Consigo imaginar a cena dela sentadinha no sofá do seu lado!!

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  4. Boas lembranças...vc se deliciava com as maravilhas da Tv ao ponto de ficar escondido no quarto olhando à tv na sala!Que coragem!Eu ,muito pequena não me arriscava e achava bem mais interessante dormir!E por conta dessa sua insônia que vc ficou tão bem informado!Graças a Tv Excelsior,Tupi,Bandeirantes e não lembro as outras...

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  5. Amei, conheci um pouco mais de você e da bela moça que te trouxe ao mundo...
    Até parece que estava lá...

    Beijinhos

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