sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A ESCUNA MALDITA


Edson Negromonte

Esta, para dizer o mínimo, curiosa carta, encontrada entre os pertences do meu tio-avô, o Sr. Hipólito Leal Gomes de Almeida, o último Barão de Guaraqueçaba, pode vir a ser um documento esclarecedor sobre um crime ocorrido há mais de quarenta anos e, até hoje, ainda não esclarecido no município vizinho de Antonina, se estudada sob a luz da compreensão filosófica da alteridade, penso eu. Por isso, e somente por isso, é aqui dada a lume:

“Arquipélago dos Atobás, Ilha Menor, 27 de novembro de 2007.
“Caro Leal, após tanto tempo sem dar notícia, perdoe-me se o deixei preocupado. Aceite minhas desculpas, pois não quis ofendê-lo com meu silêncio, sendo você o único amigo que me restou depois de tudo o que aconteceu. Esta carta é muito mais um desabafo que qualquer outra coisa, já que ultimamente venho sentindo a proximidade da morte, essa mãe amorosa que jamais esquece seus filhos, mesmo os ingratos, e que, mais cedo ou mais tarde, vem resgatá-los do mar proceloso da ignorância e infortúnios no qual a espécie humana se debate e chafurda desde o nascimento. Como não pretendo seguir para o ansiado e silencioso esquecimento do último lar acompanhado do segredo que há tanto me atormenta, o designei como o fiel depositário de minha mazela. Dou-lhe o direito de duvidar do que vai ler, jamais o de fazer pouco caso; compreendo que seja um relato assaz fantástico, mas jamais fantasista. Eis, pois, a razão por que me calei durante tanto tempo, sempre fechando-me em copas todas as vezes em que as nossas conversas resvalavam no assunto.
Você lembra com certeza de quando aquela escuna malldita amanheceu atracada em nosso pequeno porto, no ano de 1977. No primeiro dia de maio, para ser mais exato. Sintomático que fosse a madrugada de 30 de abril, véspera da noite consagrada à Santa Valburga, além do mais, o sábado de um ano bissexto. Sem tripulantes, a escuna estava vazia, deserta, sem carga nenhuma. Lembro-me muito bem da comoção dos moradores da nossa decadente aldeia. Imediatamente começaram a surgir suposições sobre a chacina de toda a tripulação por amotinados, que depois teriam fugido, como ocorrera alguns meses antes com o navio pesqueiro Chin-Kai 2, de bandeira chinesa, encalhado na ilha do Superagui. Outros, os ditos supersticiosos, asseguravam ter visto figuras fantasmais andando pelas ruas. Isso é impossível. Se, durante a noite, alguém tivesse transitado por essas ruelas, eu, com certeza, teria notado, ou melhor, percebido. Devido a um distúrbio do sono, surgido na adolescência, tornei-me um noctâmbulo, perambulando pelos becos a noite toda. Devido a tal distúrbio, desenvolvi uma acuidade perceptiva exacerbada que não permitia que um gato sorrateiro passasse incólume sem que meus ouvidos registrassem este fato aparentemente desprezível para o comum dos mortais, mas que, para mim, não passaria desapercebido em meio à solidão noturna a que me vi, desde então, condenado. Prestes a romper a aurora, voltei a me refugiar em casa, nos livros, o meu lar seguro. Não que eu não pudesse com a luz do dia, longe de mim querer jogar mais sombra sobre a minha personalidade já tão estranhamente ensombrecida. A leitura era, sempre foi, para mim, um paliativo à maldade humana que, ignorante das nuances da personalidade, insiste em excluir os diferentes do convívio social, como uma ameaça; sei que sou somente mais um dos que não se conformam à normalidade. Apesar da segregação surda, nunca ninguém me disse explicitamente que eu não podia fazer parte de algum círculo, mas pelo apelido que me deram, o Velador, é nítida a relação de medo que meus concidadãos tinham comigo. Digo medo porque aquele que é diferente das pessoas comuns gera este sentimento aniquilador, levando muitas vezes à intolerância e ao ódio, como ocorreu em relação aos místicos medievais, queimados nas fogueiras santas. Independente do medo, pelo apelido de Velador é perceptível alguma compreensão, apesar da aparente ignorância à qual estão submetidos, do meu papel em suas vidas, na vida da cidade: o de velar, zelar pela tranquilidade do seu sono, com toda a ambiguidade da palavra “velar”. Além de manter a luz, “velar” também significa ocultar. Você deve estar se perguntando como, com tamanha sensibilidade auditiva, eu não percebi a movimentação no porto, no velho cais de madeira, o qual range a qualquer movimento mais brusco da maré. Não saberia dizer, embora venha-me à mente agora, enquanto escrevo este relato, a nitidez do silêncio daquela sinistra madrugada.
Pela manhã, em meio à multidão de curiosos, eu observava a escuna; pintada totalmente de preto, três mastros e, na proa, em vermelho, a inscrição BAPHA. Meu interesse aleatório por línguas indo--europeias valeu-me então. Sem dúvida, eram caracteres cirílicos Pronuncia-se Varna o nome do barco! Esta palavra soou-me levemente familiar, embora, naquele momento, não conseguisse ter acesso ao escaninho da mente onde ela se alojara. Recorrendo a uma enciclopédia, na biblioteca municipal, encontrei o verbete correspondente: uma cidade turística, aprazível balneário na Bulgária. Somente isso, o que, por certo, não me foi de grande ajuda. Decepcionado (como é da minha índole, eu sempre espero uma revelação), tomei o rumo de casa. Ao chegar, deixei-me cair na poltrona; alguns poucos minutos de sono, durante o dia, eram, e ainda são, suficientes para recompor mental e fisicamente o meu organismo cansado das deambulações notunas. As decepções sempre tiveram o poder de me prostrar. Muitas vezes, durante dias, principalmente quando as decepções vêm acompanhadas de uma interrogação, de uma resposta não obtida. Principalmente as respostas intelectuais. Daí, repentinamente, do nada (eu bem sei que não pode ser do nada, pois essa insignificância ardentemente desejada pelos homens insiste em não existir), em repouso, vem, num lampejo, a resposta. Categórica, certeira, iluminadora, com a qual não há discussão, oriunda dos registros cósmicos nos quais tudo, absolutamente tudo, todas as ações do homem, fica assinalado. Os orientais chamam a isso “registros acásicos”. Não é fácil o acesso a esse manancial do conhecimento de todas as eras, somente quando se tem real necessidade. Eu mesmo, quando estudante devotado dos aspectos místicos da vida, não tinha acesso a eles quando bem entendia. Sei que existem, conforme comprovei nas ocasiões em que tive real necessidade, principalmente quando o apelo não era egoístico. Afundado na poltrona, próximo da sonolência, veio-me à mente a palavra “Drácula”. Sem muita convicção, me dirigi à estante, tomei nas mãos o clássico de Bram Stoker, abrindo-o exatamente no capítulo VII. E, como se tivesse um olho na ponta do dedo indicador, lá estava a palavra! Varna, sim, Varna, o porto de onde partira o conde malévolo em direção a Whitby, na Inglaterra. Mera coincidência, diriam os céticos. Devo confessar que eu também, a princípio, tive o mesmo pensamento.
Com o tempo, a população acostumou-se com a negra e perniciosa presença da escuna, com os meninos, indiferentes a tudo, fazendo-a de trampolim para as suas brincadeiras nas águas turvas da baía. Nem quando grande parte da população foi atacada pela meningite, as autoridades médicas ou os supersticiosos foram capazes de associá-la à escuna maldita. A maldição é a nossa sina desde o princípio; vivíamos sob a condenação da capela erguida pelo fundador da vila sobre um cemitério sambaquita, local respeitado até pelos índios guaranis, os quais foram os responsáveis pelo extermínio do povo do sambaqui. Será que não percebiam o odor acre de urina de rato, muito embora não se percebesse visivelmente a presença dessas criaturas nojentas, espalhando-se pela cidade, a partir da embarcação? O cheiro de terra molhada, apodrecida... Seria exagero dizer “a terra pútrida da Transilvânia”, como ouvíamos nos filmes da Hammer, no Cine Ópera? Era como se a população vivesse em um estado alterado de percepção. De que as pessoas tinham medo? Que os seus piores temores tivessem fundamento? Certo dia, sem que ninguém notasse, arranhei a pintura do casco da nau pressaga com a ponta da chave. No dia seguinte, confirmou-se a minha suspeita: a escuna refazia-se à noite de qualquer avaria. Não havia em seu casco qualquer risco; erguia-se imponente, desafiadora. Será que só eu, o Velador, compreendia a ameaça imanente? Como alertar a população sem que me tomassem por lunático? Aliás, mais lunático ainda. No íntimo, acredito que as pessoas são capazes de pagar um preço alto, muito alto, por permanecerem na ignorância confortadora. Basta-lhes dizer “Deus quis assim” ou “Deus deu, Deus leva”. É fácil culpar um ser superior pelas nossas desgraças, muito fácil nos eximirmos da responsabilidade quando nos fazemos de joguete nas mãos implacáveis do Grande Titereiro, movendo-nos para lá e para cá, ao seu bel-prazer. Desculpe-me, mas não posso crer em um Deus caprichoso. Veja bem, não estou blasfemando, é somente que a minha concepção da divindade é muito diferente. E não se dê ao trabalho de querer saber, meu amigo, qual é o meu Deus; a minha concepção é única e exclusiva, somente a mim serve, somente a mim diz respeito, mas, tenha certeza, você não gostaria de conhecê-la; revoltá-lo-ia.
Admito que o vampiro de Stoker martelou o meu cérebro durante dias. Para mim, não há coincidências; recusei-me, como recuso-me até hoje, a aceitar tal alternativa. Para mim, as coisas relacionam-se muitas vezes de maneira desconhecida. O certo é que se relacionam, embora não consigamos compreendê-las na totalidade neste plano terreno. O que dizer, então, do nome da escuna? Coincidência? E o surto de meningite? Não foi este o diagnóstico médico quando o desafortunado Jonathan Harker foi encontrado pelas freiras, após conseguir fugir do castelo amaldiçoado? O que sei é que o carnaval, a história, se repete, muda somente a fantasia. Intimamente, eu sabia que esses fatos estavam relacionados. Só não atinava como, quando em uma das minhas andanças noturnas vi luzes na casa do morro. Há anos aquela casa estivera desocupada, desde que o prefeito Valdomiro ali matara toda a família com requintes de crueldade, empalando as vítimas e, dizem, bebendo-lhes o sangue. Depois disso, a maior casa da cidade, a qual chamávamos de castelinho, foi abandonada à própria sorte, às ruínas. Lembra-se disso? Só uma observação: como tem ruínas a nossa aldeola. Sobrevoá-la é a constatação de uma cidade bombardeada, só escombros; um mundo de aparências, universo de sombras ao qual se acha por bem fechar os olhos.
Sempre tive a fama de nefelibata, com a cabeça eternamente nas nuvens, mas os fatos aqui narrados me darão razão. Pelo menos, a sua razão, assim espero. As coincidências com o vampiro stokeriano não param por aí, pois o romance foi baseado em acontecimentos reais apropriados pelo folclore, a crendice popular onde reside a verdade. Para mim, era cada vez mais gritante a pergunta: O que a sanguessuga transilvânica fazia em nossa Antonina? Embora meu cérebro se recusasse a crer, algo mais íntimo dentro de mim, a convicção da minha alma (ou devo dizer mais apropriadamente “de meu sangue”, posto que os antigos acreditavam ser o sangue a morada da alma?), insistia na presença do ser terrível. Certamente, mais forte com o passar dos anos, ele vinha em busca de algo maior, não somente sangue. Você deve estar achando muito estranha toda esta exposição, peço-lhe apenas que a leia até o fim, sem pré-julgamento. Posso vê-lo balançando a cabeça, com ganas de abandonar a leitura, devido a sua educação cristã. Rogo que não me deixe falando ao léu, tudo o que preciso neste momento é desabafar com um amigo verdadeiro. Não peço que me dê crédito, mas leia-me até o final.
O que o maldito brucolaco buscava? O que ficara inconcluso para que o príncipe das trevas se aventurasse tão longe dos Cárpatos? Sim, esta é a formulação correta da questão! Esperei a resposta e nada. Eu, por um momento, cheguei a duvidar de tudo, admito, quando meus ouvidos foram surdamente assaltados por uma palavra, um nome: Mina! Sim, Mina! Mina, o desejo inalcançado, irrealizado. Sim, os vampiros também são movidos pelo desejo! No cartório, infrutíferas foram minhas averiguações; desde a sua abertura, nniguém fora registrado com este nome. Desanimado, voltei para casa, deixando-me cair na poltrona em busca do lenitivo que só o sono é capaz de proporcionar. Despertei sobressaltado com um nome de mulher martelando-me a cabeça: Guilhermina. Sim, o nome cujo apelido era Mina! Sim, a filha mais nova de uma família tradicional da cidade, os Tepes, a jovem por quem todos choraram ao despencar de carro de um despenhadeiro, em alta velocidade, na Serra da Graciosa. Sim, tornava-se então evidente a relação do aportuguesado Guilhermina com a Wihelmina do romance, nome de origem teutônica, a protetora resoluta. Seria Guilhermina a reencarnação de Wihelmina, a nossa Mina, a virgem dos cabelos negros e cacheados, da pálida pele de opala, cuja lápide ostentava um retrato merecedor de admiração, e até a adoração, dos estrangeiros vindos sabe-se lá de onde, aos quais chamávamos de ciganos? E o que pensar do seu sobrenome Tepes, Guilhermina Tepes? Seria leviandade relacioná-lo com o do cruel Vlad III, príncipe da Valáquia, conhecido como o empalador? Que caminhos tortuosos traça a lei do eterno retorno para os devidos resgates cármicos? Coincidência, diria você. Justaposição? Sincronia? Pois, hoje, posso asseverar, de acordo com meus estudos quânticos, indo contra toda a ciência, que o tempo, essa realidade somente terrena, portanto, útil apenas às finalidades da matéria, é diacrônica, jamais sincrônica. De posse dessa certeza é que posso explicar, talvez somente para mim mesmo (gostaria que você, em nome da nossa longa amizade, me acompanhasse), o motivo por que o morto-vivo estava entre nós, tão longe da terra natal, após tantos séculos: o amor. Sim, somente este sentimento é capaz de explicar tamanho deslocamento da sua realidade imediata. Afirmo ainda que é a diacronicidade do pensamento moderno, fragmentário, através dos séculos, era sobre era, que fortalece o vampiro, seja pelos livros, filmes, lendas. Hoje, a luz do dia não mata mais os vampiros, como dantes, somente os enfraquece. Por isso, desta vez, ele, o excomungado, não repetiria, como não repetiu, os erros do passado. O amor, e somente o amor por uma mulher, pela mulher amada, fez com que o conde viesse de tão longe, das brumas do passado, atravessasse o oceano de Cronos, para alcançá-la. Até mesmo a empedernida ciência dos homens chega a admitir atualmente a existência dos vampiros psíquicos, para explicar os males de um mundo em desarmonia consigo mesmo.
Aconteceu, como já se podia prever, de me ver envolvido com uma investigação por conta própria sobre o conde, sobre a sua permanência em Antonina. Noite e dia, vi minha mente ocupada por essa obsessão, perseguindo como uma sombra invisível as pegadas do vampiro. Onde quer que ele estivesse, lá estava eu, à espreita. Foi assim que vi os lobos, espectros de lobos, cinzentos, rondando, protegendo a antiga mansão do prefeito, no alto do morro, a qual chamávamos de castelinho. Lembra-se da canção “As crianças da noite fazem a sua música”, ouvida na voz das lavadeiras de nossa terra, em nossa infância? Estou, hoje, convicto de que esta cantiga aparentemente singela (não vivemos num mundo de aparências?) era o vaticínio da futura vinda do brucolaco. Lembra-se também do verso na lápide de Mina, versos estes intrigantes, dignos de um poeta ultrarromântico de província: “Dos recõnditos abismais, cessam os uivos, levanta-te, ó alma”? Seria loucura ver neles a intenção de um acróstico macabro? Peço ao amigo que exclua do epitáfio o artigo “os” e a interjeição ó”, mera partícula expletiva. O que acontece? Forma-se a palavra, o nome Drácula. Eu vejo nisso os liames de uma incognoscível matemática cósmica, que sempre se escapa como areia fina por entre os dedos do buscador.
Mesmo neste paraíso que é o Arquipélago dos Atobás, mormente a Ilha Menor, de beleza exuberante, ainda tenho pesadelos com tudo o que vi e presenciei, acordando no meio da noite suado, sobressaltado, a camisa do pijama molhada. E choro; as lágrimas são a chuva redentora da alma. Apesar de tudo, sinto-me então estranhamente rejuvenescido, com força sobre-humana, apesar da imagem do cemitério e o seu ocorrido grudados em mim, em meus olhos arregalados, como moscas de cozinha em papel pega-moscas, me trazerem de volta à realidade mesquinha, definhante. É justamente por isso, por esse irreversível enfraquecimento de meu invólucro físico, muito embora curiosamente eu sinta as faculdades mentais cada vez mais aguçadas, que me faz sentir às portas da benfazeja morte, a mãe misericordiosa, é que lhe estou endereçando esta missiva, o testamento de um homem inocente de todo o mal que lhe imputaram e ainda imputam. Peço-lhe que só a torne pública, se isso lhe convier, após o meu passamento. A mim, hoje, interessa principalmente que você, meu único e grande amigo, saiba toda a verdade. Verdade essa que fiz questão de ocultar dos meus contemporâneos, apesar de sofrer enormemente com a sua execração; meu ódio por eles foi, e ainda é, tanto que até hoje me regozijei em mantê-los na ignorância. Haverá vingança maior que saber que fomos injustos em nosso julgamento e que nada mais poderá ser feito para reparar tal dano? Que, por nossa causa, por nosso juízo afoito, fizemos alguém passar os ditos melhores anos da vida, para mim os piores, atrás das grades de uma penitenciária, depois, de um manicômio mais imundo ainda, por um crime não cometido, se é que crime houve. Sim, eu presenciei toda a cena do cemitério, mas nela não tomei parte. Seria o expectador, segundo a lei dos homens, responsável pela atuação, boa ou má, dos atores? Então, o talento e a genialidade não estariam com Sir Lawrence Olivier, mas com a plateia? E o que sobraria para Shakespeare?
Na noite desgraçada, eu segui a minha intuição: uma voz dentro de mim, de início sutil, logo intermitente, que recomeçava a curtos intervalos, cada vez mais impositiva, a qual mandava-me ir ao cemitério, onde a bela e casta Mina fora enterrada. Ao chegar, a lua cheia, uma esfera magnífica no céu, tudo iluminava, especialmente o túmulo de Mina, sortílega. Não precisei esperar muito; um pouco depois da meia-noite, a hora aziaga, escondido atrás do grande jazigo dos Oliveira, posição que me dava boa visibilidade, eu vi o imundo nosferatu surgir, se materializar. À sua chegada, pesadas nuvens negras, em promíscuo conluio, ocultaram a lua. E como se o ator principal desse drama macabro precisasse de testemunho, da minha cumplicidade, da minha conivência, diriam os juristas, a silhueta esguia, mais negra que o negrume ora instaurado, de energia descomunal, retumbante, deu início à exumação de Mina. Diante da cena atroz, repulsa e ódio. Apesar da escuridão, eu vi, percebi o sorriso da horrível criatura. Preso ao chão, os pés cada vez mais pesados, não pude correr dali. Morbidamente, apesar do terror, eu devo admitir que, estranhamente, meu coração se comprazia com tudo aquilo, deleitando-se, abandonado diante do espetáculo: desprovido de ferramentas, ele, o desventurado, utilizava-se somente de gestos, tal e qual o senhor dos elementos, a terra da cova se erguia aos montes, girava em espirais, rodopiava no ar, espalhando-se pelos túmulos em um bailado macabro, porém apaixonante. Em seguida, com um único gesto, exato, taumatúrgico, ele trouxe o esquife virginal à superfície: branco, intacto. Num supetão, a tampa se rompeu, revelando a beleza de Mina, perfeita, entreabertos os lábios vermelhos, ainda, após tanto tempo, intocada pelos vermes interiores. Viva, sim, viva! Rediviva! Abriu os olhos, aparentemente vinda de um sono breve e repousante. Mina, o desejo inalcançado, agora realizado! Ante a violação do sono sagrado, senti ter sido eu escolhido pelo Diabo, ou pelos Céus, quem sabe, para presenciar o acontecimento do amor, atitude arrebatadora capaz de transgredir as leis naturais, às quais todos os seres se submetem, menos aqueles capazes de amar incondicionalmente. Foi neste momento ensurdecedor (sim, ensurdecedor, não há outro termo para descrever a sensação de que fui acometido. Seria isso a música das esferas?), em que desmaiei, justamente quando o conde a tomava nos braços e com ela, para sempre, desaparecia. Quando recobrei os sentidos, encontrava-me já detrás das grades, acorrentado, como se eu fosse um monstro, a besta-fera responsável pelo desaparecimento do cadáver de Mina.
Certo de que não mais nos veremos, agradeço sinceramente a nobreza de sua amizade. Parto com a certeza de que muitas questões ficaram inconclusas, mas não é assim mesmo a vida, incompleta?
Sinceramente seu,
R.

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