terça-feira, 30 de setembro de 2014

O CÃO ENCARNADO OU A CRENÇA ESQUIMÓ


Edson Negromonte

Talvez o leitor mais jovem não compreenda o que irá ler a seguir, quando hoje não existem mais cães vagando pelas ruas; a limpeza pública se encarregou de exterminá-los, após o grande surto de gripe canina, logo depois da aviária e da suína. Eram outros tempos, mais perigosos, porém mais livres, quando grande parte da população canina errava livre pelas ruas das cidades, grandes ou pequenas, até mesmo nos vilarejos. Esse pré-histórico “melhor amigo do homem”, quer dizer, do homem que, como eles, vagabundeia pelas ruas, vivia em sua grande maioria à solta, sobrevivendo dos restos que abundavam no lixo dos restaurantes, lanchonetes e até das casas, rosnando para os ratos. Era um tempo de muitos ratos também, mas nunca se ouviu falar de gripe murina. Com o extermínio dos cães e o consequente aproveitamento ecológico do lixo, os ratos acabaram devorando a si mesmos, desequilibrando ainda mais a cadeia alimentar. Assim, a vida nas ruas perdeu grande parte do encanto natural. Nas casas, também o cachorro foi erradicado; aqueles que teimaram em manter os seus bichinhos de estimação, receberam permissão do Ministério da Saúde, desde que empalhados.

Os cães foram, durante muito tempo, fonte de inspiração para a literatura, música, pintura, as artes em geral. Todos os grandes homens faziam questão de ter entre os seus fiéis amigos, pelo menos um desses vira-latas. Assim, foi com Churchill, Courbet e até Steinbeck, que escreveu “Viajando com Charlie”, o nome do seu parceiro de aventuras: um cão atravessando os Estados Unidos, lado a lado com o grande escritor, numa caminhonete. Whitman, cuja dicção deu origem a toda a poesia do continente americano, também tinha em grande conta o amigo Watch. Sei que é cansativo para o leitor mais jovem essa enumeração das personalidades caninas que passaram à história, portanto vou dar início ao meu relato, mas fique ciente de que poderia citá-los aos montes.

Havia entre os cães da minha rua, um que julguei, segundo a crença esquimó, ser a encarnação do meu avô. Calhou de ele aparecer no bairro justamente sete dias após o sepultamento do pai de meu pai. Logo que me viu, balançou o rabo e eu, se ainda tivesse uma cauda, com certeza a balançaria para ele também, em resposta à saudação. Devo confessar que um estremecimento percorreu minha espinha, até terminar em cócegas no cóccix, esta última lembrança de um tempo em que nós, humanos, tínhamos rabo. Acompanhou-me até o portão, rosnando para as sombras da noite, como se quisesse me proteger. Inicialmente, atribuí a sua companhia a algum odor peculiar, talvez o cheiro de gordura barata impregnada em minhas roupas, pois eu costumava jantar numa dessas cantinas que servem uma boa porção de comida por um valor irrisório, de onde se sai fedendo tão ou mais forte que a cozinheira do lugar. Ao me despedir dele, fiz-lhe um leve afago, o qual ele aceitou de bom grado. Fez, então, menção de comigo entrar. Bati o pé, coisa que ele imediatamente entendeu, afastando-se cabisbaixo.

Na manhã seguinte, ao sair para trabalhar, encontrei-o deitado na calçada em frente. Ao me ver, abanou o rabo como se eu não tivesse sido grosseiro. Acompanhou-me até o ponto. Até onde pude ver, ficou olhando o ônibus se afastar. Ao voltar do trabalho, fiquei surpreso ao encontrá-lo deitado à minha porta, tendo conseguido, de alguma maneira que até hoje não consegui descobrir, ultrapassar o alto muro do quintal. Que remédio! Deixei-o ficar, mas avisei-o de que a comida não era suficiente para dois. Muitas vezes, tenho certeza, fui dormir com mais fome do que ele.

Assim, os dias foram se passando, fomos nos apegando um ao outro, o meu salário melhorou, já não partilhávamos mais a fome. Para ele, somente para ele, no dia de Ano Novo, comprei meio quilo de carne moída. De segunda, é claro; o salário tinha melhorado, mas não tanto. Devorou a carne toda, crua. Como um digno representante da raça, detestava banho. Nada que eu pudesse dele exigir, pois o banho é, para mim também, um hábito repulsivo. Segundo os antigos, banhar-se diariamente amolece o caráter; coisa na qual creio piamente. O nome dele? Pois é, não consegui me decidir, ele era muito especial para que ficasse restrito a uma palavra. Dia após dia, eu me debati sobre como chamá-lo, mas nada era bom o suficiente. E sem nome ele ficou; nos entendíamos bem assim, mesmo porque ele nunca quis saber o meu. Talvez já o soubesse. Quereria permanecer incógnito? Mas o que é um nome se o ser ao nosso lado é um grande companheiro. Dar nomes às coisas é invenção dos homens: um pardal não pergunta ao outro qual o seu nome, onde mora, quanto ganha. A única exigência de meu amigo era que deixasse a televisão ligada quando eu saía e não podia levá-lo. E se eu já era avesso a sair de casa, com essa presença servil fui me apartando cada vez mais, dentro do possível, da convivência humana. Já não ia diariamente ao trabalho, nem desculpas esfarrapadas dava mais, até que fui despedido. Sem dinheiro, fui vendendo os poucos pertences, livros, roupas, alguns objetos de adorno, menos a televisão, a máquina de fazer loucos era agora o nosso único elo de ligação com o mundo exterior. Acabamos sendo despejados, a TV ficou para o locador, como parte do aluguel. Fomos morar debaixo do Viaduto do Chá.

Confesso que, de início, sofri muito com a situação, mas com o tempo acabei me integrando ao mundo da mendicância. Descobri que ainda havia pessoas de bom coração, as velhinhas. Elas, em sua grande maioria, são incapazes de negar um prato de comida, o qual eu dividia sempre com o meu fiel escudeiro canino, já que ele era incapaz de enternecer o coração dessas bondosas senhoras. Devido a minha formação escolar, segundo grau completo, tornei-me o porta-voz dos mendigos de São Paulo. Entre os meus iguais, outros havia com mais estudo, mas incapazes de eloquência, de retórica. À noite, à roda de uma fogueirinha, lia para eles, de Baudelaire, um poema em prosa sobre a necessidade de se espancar mendigos, para risada geral. Depois disso, eles iam dormir tranquilos, de alma lavada. Um dia, instado por alguns políticos corruptos (adjetivo desnecessário?), candidatei-me a vereador, e perdi. Nem mesmo meus colegas de infortúnio votaram em mim. Abalado, decidi não ser líder de mais nada. Dora em diante, seríamos eu e meu cachorro. Foi, então, que lembrei do companheiro de todas as horas.

Onde teria ele ido, durante os meses de campanha? Eu, ingrato, tinha-o abandonado à própria sorte. Procurei por ele em todas as ruas, todos os becos da grande cidade, fui a programas de rádio, e nada, ninguém sabia do seu paradeiro. Foi quando ocorreu o grande massacre de cães, em todo o território nacional. Dos pobres cães, não sobrara um para contar a história. O ar ficou empesteado, com o cheiro de carne queimada, as grandes fogueiras em praça pública.

E você, caro leitor, que teve paciência de ler estas linhas até aqui, deve estar se perguntando por que eu associei a doce figura do cãozinho com a memória do meu avô. Sinceramente, não sei, mas o que tenho como certo é que ele era mesmo a encarnação do velho, o pai de meu pai. É algo tão íntimo que não admito discutir o assunto com ninguém, nem mesmo com a família de esquimós que mora num iglu, feito de pequenas caixas de papelão, ao meu lado, nos baixos do Minhocão, onde resido atualmente. E, veja bem, tenho muita consideração por esses esquimós; eles costumam me oferecer, aos sábados, saborosos nacos de carne de foca.

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