terça-feira, 28 de outubro de 2014

MAIS ALGUMAS RECORDAÇÕES DO VELHO BIBLIOTECÁRIO

Edson Negromonte

Durante a convivência com Sven, ambos descobriram a poesia, o adolescente e o velho, embora este não perpetrasse versos, somente os lia, com uma entonação peculiar em determinadas palavras, às vezes em certas frases, inteiras, com a voz pastosa, sempre, como se estivesse cansado, num cantochão algo teatral, como se remoesse pequenas, pequeninas pedras entre os dentes amarelados pelo tabaco. Sua melhor interpretação acontecia em algumas passagens de “A Canção do Velho Marinheiro”, de Coleridge. Ao final, o jovem sempre o aplaudia. calorosamente; a brincadeira fazia parte de um acordo tácito. Apesar das orientações, os primeiros versos do velho bibliotecário ocorreram sob a influência da música popular, dos Beatles, de Dorival Caymmi, coisas como “The Fool on the Hill”, “The Long and Winding Road”, “O Mar”, “O Vento”, “Suíte dos Pescadores”, sem saber que assim estava se afiliando irresponsavelmente à tradição dos antigos trovadores provençais. Veio a descobrir isso somente muitos anos mais tarde, ao tomar contato com a poesia concreta, com as traduções de Arnaut Daniel e Rimbaut d’Aurenga.

Durante o tempo em que conviveu com o velho Sven, a sua paixão contagiou o adolescente (um vírus que não mais o abandonaria: a paixão pelo mar, fosse verde, azul, vermelho ou negro, lodacento ou de águas cristalinas), levando-o a ler obras clássicas na íntegra, dos grandes navegadores, as edições completas, não as recontadas, adaptadas, fáceis de encontrar. Saiu, então, à caça de “Vida e Aventuras de Robinson Crusoé”, em dois volumes, incluindo a breve passagem, como fazendeiro, por terras brasileiras, e “Viagens de Gulliver”, com a quase sempre extirpada passagem pelo país dos houyhnhnms. Viajou a bordo de “Marujos Intrépidos - Uma História dos Grandes Recifes”, lado a lado com Kipling. Deve-se acrescentar também que “Dois Anos de Férias”, de Júlio Verne, levou-o a devanear sobre as possibilidades de se refugiar numa ilha próxima, a do Cardoso, da Cotinga, dos Valadares... Pensando melhor, a ilha das Cobras seria ideal. Podia muito bem morar no farol e escrever, à imitação de Alphonse Daudet, “Poemas do Meu Farol”. Em meio a tais lembranças, veio-lhe, sabe-se lá de que meandros da memória, (ah, como essa fêmea, a memória, prega-nos peças), a palavra “faroleiro”, associada à figura do coelho Pernalonga, encostado num poste, de perna cruzada, roendo uma cenoura. Associou-a imediatamente com uma cena de “Aconteceu Naquela Noite”, com Claudette Colbert e Clark Gable, de orelhas enormes, camiseta e chapéu, também roendo uma cenoura, à imitação do coelho sacana. Assustou-se com a velocidade das imagens, achando que a sua propalada capacidade de fazer pontes entre informações colhidas a esmo, aqui e ali, lá e acolá, não estava assim tão danificada como pensara. Voltou, propositadamente, ao velho Sven, o qual não era tão velho assim quando o conheceu; talvez tivesse por volta de quarenta anos, um pouco mais, um pouco menos. Deu, então, com os olhos na estreita lombada de um livro, sabia que era dele, não conseguia lê-la, então puxou o cordame da memória. O título? Sabia-o perfeitamente, embora não pudesse lê-lo, a vista cansada, mas tinha certeza, “O Menino e o Mar”, sim, de Sven, do velho e bom Sven, todo ambientado na pequena cidade onde o velho bibliotecário voltara a morar após tantos anos de exílio voluntário. Não, jamais saíra do país por problemas políticos; era um exílio auto-imposto, sentimental, cultivado, uma forma de flagelar a si mesmo, entre a consciência e a inconsciência, dentro das fronteiras do próprio país, a terra dos homens-elefante, da elefantíase da memória. Quando, um dia, foi embora dali, no final dos anos 70, ainda não sabia disso. Agora, bem mais velho, estava pondo ordem na casa dos sentimentos, no palácio das emoções, no castelo das recordações, argamassa de areia, cal e óleo de baleia, e sangue, filetes de sangue; tinha agora todo o tempo do mundo naquele emprego, que conseguira graças à intervenção de Candinho.

“O Menino e o Mar” tornara-se um livro paradidático, da Coleção Jovens do Mundo Todo. Por que cargas d’água? Achava nociva a obrigatoriedade da leitura nas escolas. Antes, os meninos podiam sair em liberdade em busca das afinidades eletivas, da educação sentimental, e descortinar novos horizontes, sem as enfadonhas fichas de leitura.

– A leitura como obrigação só faz afastar os jovens dos livros – disse de si para si mesmo. – Hoje, lê-se muito mais nas escolas do que antigamente, mas com que peso a literatura é encarada por esses pequenos leitores, mentes em formação que na idade adulta estarão incapacitadas para abrir as páginas de um bom livro única e exclusivamente por deleite. Odiarão os livros, ao invés de amá-los.

Por sorte, pode se dar ao luxo de prosseguir em leituras erráticas (como um vagabundo tocando em surdina, título de um livro de Knut Hamsun; sua vida estava indissoluvelmente atrelada aos livros), descobrindo bons autores, de acordo com o próprio alvitre, tudo por sua conta e risco, embora Sven torcesse o nariz para certos nomes. O interesse podia vir através de títulos intrigantes ou, até mesmo, da ilustração da capa. Lembrou-se, então, de Monteiro Lobato, que na década de 40, recém-chegado dos Estados Unidos, passou a propagandear o livro como um produto, mercadoria exposta em mercados, farmácias, postos de gasolina, à disposição, como creme dental, sucrilhos e fiambrada. Daí, a ilustração e as cores da capa passarem a fazer parte do produto, diferentemente da política editorial anterior, herdeira da tradição européia, cujas capas eram ricas tipograficamente, mas de embalagem pouco convidativa. Depois de Lobato, a indústria editorial brasileira nunca mais seria a mesma. Digam o que quiserem sobre os seus quiproquós com os modernistas, mas o homem era um visionário. Pode-se até perdoá-lo por ter omitido em sua tradução de “Robinson Crusoé” a passagem do náufrago pelo Brasil.

A chuva não parava, o dia cinzento, convidativo à introspecção, o bibliotecário teve necessidade de firmar os olhos para ler algumas lombadas, numa conhecida brincadeira. Adivinhava-lhes os nomes e não podia mais enganar a si mesmo, sabia que precisava ir urgente ao oculista, lhe pingariam um colírio doloroso e depois o mandariam ler alguma coisa. Não conseguiria, evidentemente. Quem consegue? Lembrou-se então de Borges, o bruxo argentino, cego, pedindo às pessoas que iam visitá-lo no apartamento de Buenos Aires que anotassem os poemas que laboriosamente lapidara durante a noite eterna dos dias anteriores, lembrou-se da irônica personagem do bibliotecário cego do romance “O Nome da Rosa”. Não, não queria esse fim para si mesmo. Mesmo porque não haveria um Eco local para eternizá-lo. Amanhã, iria sem falta ao oculista.

Ao mudar-se para Curitiba, aos 20 anos, o velho bibliotecário passou a frequentar o único sebo da cidade (hoje, a capital paranaense conta com excelentes casas de livros usados). Assim, foi acumulando livros e mais livros no quarto de pensão onde morava. Ao mudar-se para Campinas, quatro grandes malas continham as suas preciosidades livrescas, grande parte em antigas edições de papel jornal, em meio a poucas peças de roupa: uma calça, cinco camisetas, cuecas e uns pares de meias. Esses volumes em papel jornal, que vão se desfazendo sob a ação do tempo, são o retrato da política de Guerra, quando o papel bom, de qualidade, era desviado para as frentes de batalha. Assim, os excelentes títulos da Editora Globo, do Rio Grande do Sul, são hoje encontrados em petição de miséria, desfazendo-se, e a preço de banana. Lembrou-se da gasta edição de “Um Gosto e Seis Vinténs”, a irretocável biografia de Paul Gauguin, de Somerset Maughan, comprada no Sebo do Mosquito, em Florianópolis, pela bagatela de um cruzeiro, na década de 80.

As estantes, em casa, tinham muitos livros de poetas, de poesia, de estudos sobre poesia, de biografias de poetas, em fileiras duplas, a casa era humilde, de poucas paredes, quase todas tomadas pelos livros. A solidão e o amor aos versos levaram-no a publicar dois livros de poesia, aos quais somente os mais chegados tinham acesso. Não que se envergonhasse deles, nem que modesto fosse, mais o medo de parecer arrogante, pois sabia, desde menino, que em terra de cego, quem tem um olho é caolho. Sempre em gestação, tinha um inédito que escrevera e reescrevera várias vezes, não por capricho, nem por excesso de zelo, mas por não ter encontrado editor que por ele se interessasse, também não saíra em busca. Achava o título o máximo: “A Tal da Poesia”, uma traquinagem com “O Tao da Física”, de Fritjof Capra. Agora, pensando bem, a graça do título se esvaíra com o passar do tempo, ninguém mais lançava o tao disso, o tao daquilo. Perdera a oportunidade. Como a poesia lhe era cara, não conseguia entender por que certos prosadores torcem o nariz para a arte poética. Novamente, a teia da memória fazia das suas: o grande escritor William Faulkner, em entrevista à Paris Review, afirmava que todo romancista é um poeta fracassado, que impossibilitado para escrever poemas, tenta a forma do conto e, fracassando na arte da narrativa curta também, faz finalmente a opção pelo romance. Onde lera isso? Será que a grande aranha estava jantando as moscas do seu cérebro? Tinha certeza de que a poesia, a verdadeira poesia, deveria ser, antes de tudo, a arte da concisão, a alta voltagem da palavra, o resgate da língua. Onde lera isso? Em certa época, deixou-se envolver pela poesia visual.

Não publicou nenhum desses poemas, devido ao alto custo dos fotolitos. Mas também ao excesso de elaboração que esse tipo de poesia exige. Passou dez anos burilando um único poema, tridimensional, feito a partir do rótulo da aveia Quaker, onde substituíra o tradicional quacre pela foto de Walt Whitman, descendente de quacres, trabalhando a mesma tipologia, criando outras palavras, outros significados, até completá-lo com chave de ouro. Em vez de “peso líquido: 250g”, “solo líquido: logo”. Extasiou-se ante a própria obra, explicando para si mesmo, como se conversasse com um igual (onde estariam os seus pares?), que o “solo líquido” é o terreno pantanoso da poesia, e “logo” remete ao logos filosófico e, ao mesmo tempo, à razão e ao advérbio de tempo. Tempo, essa abstração tão palpável, nada pantanosa, onde sempre sentira chafurdar os pés. Lembrou-se de um clube barra-pesada da cidadezinha, o qual só existe agora na memória de alguns habitantes, e muito poucos, o Não Tem Tempo, cuja placa encontra-se no gabinete do secretário de cultura, como a cabeça de um leão. Assim foram se atropelando trechos de música, tempo, tempo, tempo, és um senhor tão bonito, como a cara de meu filho, o tempo não para no porto, não apita na curva, não espera ninguém, tempo, tempo, falta um pouco ainda, eu sei, pra você correr macio. Durante certo tempo, também praticou poemas matemáticos, decompondo uma única palavra, trabalhando as inúmeras variações, associações, embaralhando-a, descobrindo novos vocábulos a partir da palavra-matriz. Por exemplo, a decomposição de poesia deu origem ao refrão: e Poe, após o ópio, passeia a pé. Noutra dessas elucubrações, feitas à noite, sob a inspiração de uma bruxuleante lamparina, durante um blecaute, quando toda a cidade ficara às escuras, a palavra nicromante fora decomposta em várias outras, dando origem ao verso "A memória caótica trará à tona o crânio e atônito encontrarei na areia a cimitarra". Ou "Monocrômica, anacrônica, atraente, arcaica, não amei-te ao meio, amei-te à maneira inteira". Percebe-se, assim, a que precipícios chegara a poesia do velho bibliotecário, às raias da rarefação. Sozinho, batera palmas de alegria, como uma criança ao receber um presente, quando descobriu na palavra nicromante o nome da cidade que lhe era tão cara, eternamente deitada aos pés da Serra do Mar, como uma baleia encalhada, decompondo-se, assim como o velho bibliotecário, cetáceo em decomposição; as entranhas, a primeira, a segunda pele, a mais exterior das peles, a mente, a memória, a perda da memória, feitas, construídas, do óleo daquela baleia que, desde o dia da sua chegada à cidade, ele, aos 15 anos, percebera ali parada, julgando-a adormecida, como se baleias pudessem adormecer impunes no raso da maré baixa.

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