quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

EM QUE MUNDO VOCÊ VIVE?

Edson Negromonte

Gaetano Moricone chegara bem aos 70. Tinha saúde, embora o tabaco lhe cobrasse o preço: a voz enrouquecida, o pulmão esquerdo funcionando pela metade, perda do paladar, tosse. Menos a memória, esta continuava cumprindo seu papel: não deixá-lo só; era a fiel companheira. A chegada à idade avançada não era, para ele, motivo de comemoração. Os amigos, aqueles que lembravam ainda da data, quando o encontravam na rua, sequer lhe davam parabéns. Pouco importava; era melhor que o esquecessem. Estava bem assim, eximia-o de responsabilidade.

Gaetano não casara. Os parentes que lhe restavam (a irmã mais velha, dois sobrinhos), tinha-os banido, desde que tentaram se imiscuir em sua vida, importunando-o com conselhos baratos. Para que servem as pessoas? Para nos entediar com seus achaques, os mais velhos. E os mais novos, com a sua vivacidade, comprometem ainda mais o tempo que nos resta. Preferia assim, quisera o viver solitário. Tinha apreço pelos livros, pela poesia, independente de escolas, mas principalmente por Ovídio. Embora soubesse “Metamorfoses” de cor, a cada leitura descobria novas inflexões. Não se considerava um latinista. No início, para lê-lo no original, fez uso de dicionários, gramáticas, edições bilíngues. Leitor ávido desde a adolescência, agora fazia uso de uma lupa. O enfraquecimento da visão, o médico atribuía mais à constante fumaça do cigarro que à idade.

A monotonia da casa era quebrada somente pelo ronronar de Publius, pouco afeito a carícias. Gaetano jamais suportaria um gato se enrodilhando em suas pernas, carente. Entendiam-se bem assim e isso lhes bastava. Pela manhã, leite morno com pão picado; uma tigela para Gaetano, outra para o bichano. Publius surgira, vindo sabe-se lá de onde, de que becos, aparentemente sem dono. Como ninguém o reclamara, foi ficando. Gaetano tinha certeza de que Publius iria embora um dia, sem mais nem menos. Por quê? Pela simples razão de que tudo é transitório. Cortinas semicerradas, a sala da casa tinha uma mesa, atulhada de livros, duas cadeiras de palha, um pequeno sofá de dois lugares. E ironicamente, no canto, uma namoradeira, ocupada pelos 32 volumes da “História Universal”, de Césare Cantu. Nas paredes de madeira, verdes, descascadas, nem um único quadro, coisa que à primeira vista denota uma alma desprovida de encantos. No assoalho, um tapete descorado. As estantes exibiam um grande número de lombadas pardacentas. Gaetano gostava das coisas assim, cada qual no seu lugar, sem surpresas. De madrugada, mesmo com a luz da sala apagada, era capaz de encontrar o livro procurado: satisfação infantil de uma criança cega. Nessas horas insones, de leitura até altas horas, era grato à vida por lhe ter roubado a chance de uma família, uma esposa, filhos pequenos, essa minúscula oportunidade que entrevira certa ocasião: de ser um homem comum. Não, ele não legaria a ninguém a herança de suas mazelas quando atravessasse à outra margem do rio, obscura. Não teve nunca ninguém para incomodá-lo com a arrumação da casa, a poeira acumulada nos cantos, hora de dormir, de acordar, essa aporrinhação do dia-a-dia na qual o homem comum tanto se compraz. Mesmo assim, acordava todos os dias muito cedo. Escovava os dentes, aliás, a dentadura, lavava o rosto na água fria, bebia um copo de água fresca. Antes do banho matinal, religiosamente olhava para o céu e murmurava:

– Puta que pariu!

Por certo, não era blasfêmia. Aprendera com o agnosticismo caboclo do avô que, se um homem não tem nada a dizer, ao se levantar, que diga então qualquer coisa, para não deixar passar em brancas nuvens a ocasião de se mostrar vivo ao Criador. O avô lhe ensinara muitas coisas: encilhar cavalos, a longevidade do bebedor de mate, a carneação do porco, o ritmo dos trens, a linguagem dos apitos. Todas essas coisas, Gaetano fizera questão de esquecer, após a morte do velho. Para que cultivá-las, se não eram de serventia para o solitário que ele se tornara? Das lições avoengas, conservou somente a saudação ao dia.

Duas leves pancadinhas na porta. Quem seria? Gente boa, os vizinhos não tinham por hábito incomodá-lo, sabiam que ele não era afeito a visitas. Muito menos as inesperadas. Novas pancadinhas; agora três, breves, seguidas de outras duas, longas, como arte de telegrafista. Pensou em não atender, fazer de conta que não estava em casa. A pessoa do outro lado insistia.

– Quem é?

– Eu preciso falar com o senhor.

Abriu a porta, contrariado. A garota esboçou um risinho infantil.

– Posso entrar?

– O que você quer?

Ela continuou sorrindo.

– Eu vim saber se o senhor pode me dar aulas particulares.

– Aulas particulares?!

– É que eu vou prestar vestibular no ano que vem e... como o meu português não é dos melhores...

– Mas eu não sou professor de nada, me aposentei pela ferrovia.

– Eu sei, eu sei, mas não tem mais ninguém na cidade que possa me ajudar. Sabe como é, né?

– Não sei não, não sei mesmo.

Já tinham lhe dito do mau humor de Gaetano, mas ela estava disposta a tê-lo como mestre, ele era tido como o intelectual da cidade.

– Eu li o seu livro...

– Ah, é?

– Gostei muito, apesar de não entender grande coisa.

– E qual o título? – disse ele, em tom de desafio.

– “A Maldição da Poesia”.

– Não seria talvez “A Má Dicção da Poesia”?

– Posso entrar?

Sem esperar resposta, a garota embarafustou-se casa adentro; Gaetano teve tempo somente de dar um passo atrás. Ela sentou-se no sofá, indiferente à poeira, fez um breve cafuné no gato que languidamente virou a barriga para cima, à espera de mais afagos, os quais não se repetiram. Os olhos azuis da garota passearam pela sala, pelos móveis, os poucos objetos de adorno (Santa Clara, em gesso pintado; Leda e o cisne, de bronze; uma moldura pequena e antiga, com o retrato de um casal, talvez os pais dele), o prato sobre a mesa, fundo, a colher acomodada na beirada, a xícara de café, outra xícara, mais outra... A garota Imaginou uma marimba improvisada com o que restasse de café nas xícaras. Ela esboçou um lindo sorriso, ante o suposto disparate dos sons. Definitivamente, concluiu apressada, não havia há muito tempo, naquela casa, a presença feminina, nem mesmo de uma empregada. Deteve, então, o olhar na primeira estante.

– Quanto livro!

Gaetano não pode deixar de sentir orgulho. Então, as mulheres, enquanto meninas, são capazes de se interessar por livros? Os olhos sem descanso da garota percorreram as outras estantes.

– Mais livros? Para que tantos?

Por certo, são todas iguais, em qualquer idade. Gaetano não escondeu a irritação, num leve aperto dos lábios. Ora, para que tantos? A garota fez de conta que nem era com ela.

– Os livros...

– Não precisa explicar, eu também amo os livros. A meu modo, mas amo, assim como amei minhas bonecas um dia.

– Os livros são...

– Olha, eu vim aqui para saber se você... o senhor... pode me dar aulas particulares.

– Não sei.

– Como não sabe?

– Não sei, simples, não sei. Nunca dei aula particular. A minha vida foi sempre a ferrovia, detrás de uma mesa, carimbando, assinando papéis, documentos, a insensatez que é a vida de um...

– Mas o meu pai vai pagar.

Gaetano resmungou qualquer coisa sobre o valor do dinheiro, venalidade, a estupidez juvenil.

– Olha, eu ligo para o senhor amanhã, pra saber a resposta.

– Eu não tenho telefone.

– Em que mundo você vive?

– Humpf!

– Olha, amanhã eu bato aqui de novo.

Sem cerimônia, ela mesma abriu a porta e se foi, deixando na casa o cheiro nauseabundo da juventude. Gaetano permaneceu no meio da sala, estupefato. Que topete! Então, ela entrava assim em sua casa, sem ser convidada, e praticamente o obrigava a aceitá-la como aluna? Publius espreguiçou-se e voltou a dormir. Gaetano encheu uma xícara de café, acendeu um cigarro, com o pensamento longe. Mecanicamente pegou um livro qualquer de cima da mesa, capa vermelha, letras douradas. Não o abriu, era uma espécie de muleta, muito útil quando se via na iminência de tomar uma decisão, de atravessar a ponte pênsil que o conduziria a uma margem desconhecida. Deixou-se cair pesadamente no sofá, deu uma tragada profunda, observou os dedos da mão direita, nicotina, alcatrão.

– A impetuosidade da pouca idade.

Sentiu saudades de si mesmo, a primeira namorada, o primeiro beijo, o abandono, sentiu saudade da mãe. Divagando, deu com os olhos em “Cartas a Nora”, de James Joyce, a picante correspondência amorosa do grande escritor irlandês com a futura esposa. Ligou a TV: outro acidente com trens na Índia. Numa das estantes, deu com os olhos em “Lolita”. Por que os seus olhos o conduziam à sacanagem? Sentiu vergonha dos próprios pensamentos. Não, não a aceitaria como aluna. Ela não tinha mais de 17 anos. Dezesseis talvez. E ele? Um pé-na-cova. Era encrenca na certa. É sempre encrenca. Não era justo com a menina, e muito menos consigo mesmo. Abriu Ovídio, nada melhor que o amado poeta, companheiro das horas difíceis, de todas as horas, para distraí-lo do olhar insinuante da menina, dos seios adivinhados sob a camiseta branca, redondos, firmes, empinados, bicos apontando para ele. Gaetano sabia-se ainda charmoso, apesar da idade, da rabugice, que só o faziam mais misterioso e atraente às mulheres, principalmente às jovens. Um cigarro após outro; o gato dormindo, indiferente ao alvoroço interior de Gaetano. A mente divagando, nem Ovídio conseguia aquietar seu coração. Veio-lhe então a palavra “ninfeta”. Em seguida, sua consciência rosnou, entre dentes: – Velho sujo! Sentiu ódio. Preconceito? Ele nunca a vira antes, mas ela, com certeza, já andara se informando sobre ele. Até o seu livro ela lera. Bem, isso ela dissera. Teria lido mesmo? E, se fosse verdade, com que atenção? Passou a mão pela vasta cabeleira grisalha, outrora negra, quase azul. Não crê que uma menina seja capaz de se interessar por alguém de mais idade? A busca do amor? Uma aventura passageira para se gabar depois, isso sim. Ergueu-se. Era alto, ainda espigado. Os vincos da face davam-lhe uma aparência venerável, os olhos negros conservavam o brilho, a profundidade, nariz aquilino, lábios enérgicos. As mãos? Grandes, quase desproporcionais, angulosas, veias à mostra, apropriadas para pegar a vida pelos chifres, a qual ele sabia que não agarrara, falhara. As armadilhas do ego, o vampirismo dos mais velhos em busca do sangue dos jovens. Sentiu nojo de si mesmo. Teria ainda a aparência sedutora da meia-idade? Nas poucas vezes em que saía à rua, percebia envaidecido os olhares femininos. Amanhecera, e Gaetano ainda se debatia com os sentimentos. Afinal, conseguira tomar a decisão de não aceitar a menina como aluna. Sua vida estava muito bem assim, sem sobressaltos, sem novidades, sem ninfetas, nem paixões impossíveis, sem ervilhas abandonadas no campo de centeio. Mas Gaetano sentia-se, desde a visita da garota, mais vivo do que jamais estivera em toda a sua longa vida. Aguardou ansioso a manhã inteira que alguém batesse à porta, fumando um cigarro atrás do outro. Queria somente poder dizer não, como uma vingança, pelo desprezo. Cheirou as mãos e o fedor era para si mesmo insuportável, nicotina pura. Lavou-as com sabonete Lux. Por que Lux? Ora, porque nove entre dez estrelas do cinema usam Lux! Acendeu outro cigarro e se demorou olhando a chama intensa do fósforo, saboreou o fogo, o fogo da paixão... Virou o palito para cima, inclinou aos poucos a ponta enegrecida para baixo. Na pequena caixa sobre a mesa, lia-se Fiat Lux. Empilhou alguns livros, levou as xícaras para a cozinha, correu o dedo pela poeira dos móveis. Pensou em dar um jeito na casa, acabou deixando para lá. Engrolou “Fly me to the Moon”, e sentiu-se ridiculamente romântico. Meio-dia, e nada da menina. Arrastou-se a tarde, e ninguém. À noite, menos ainda. Cinzeiros, cheios. A sala, enfumaçada. Qual seria o nome dela? Vira-a somente uma única vez. Beatriz, a beata? Virgínia, do amor adolescente? Isolda, a lendária? Julieta, a dos espíritos? A proibida Júlia?

De manhã, insone, Gaetano olhou para o alto e, de punho erguido, gritou:

– Puta que O pariu!

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