quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

SERENDIPIDADE ou A ARTE DE LIGAR AS DUAS MARGENS DE UM MESMO ABISMO


por Edson Negromonte

O ipê deita as flores amarelas na parte baixa do telhado da casa, visão digna da palheta de um pintor impressionista. Dando asas à imaginação, deleito-me a imaginar como Monet resolveria a problemática da leveza da cena que, no instante seguinte, pode muito bem ser dissolvida pelo vento sul que se anuncia. E o que faria Renoir, com a mão já trêmula e hesitante, o pincel amarrado aos dedos, uma extensão de si mesmo? Manet lembrar-se-ia, então, do brilho cegante do Rio de Janeiro, o sol integrando os objetos aparentemente separados entre si? Agosto vai a meio; e Debussy como resolveria tal questão em notas musicais? Apesar da beleza, tudo é transitório; sorte nossa que até as pirâmides do Egito se submetem às areias do tempo, corrosivas, lentamente corrosivas. O que restaria ao homem se tudo o que ele criou sobre a terra permanecesse?

E por que, em meio a esse enlevo, vem a Moura Torta à minha mente? Não, não a temo, somente gostaria de saber quando o homem começou a temê-la. Certamente, nos primórdios, ele a encarava com naturalidade, talvez nem mesmo chorasse os filhos que perdia. Talvez, no início do seu processo materialista, quando ele ousou pensar que Deus, ou a natureza, não proveria o dia seguinte, quando o homem ousou duvidar da bondade que impregna o Universo é que passou a temer a morte. Quando digo que não temo a morte, estou me referindo somente à minha própria morte, e não à passagem daqueles que amo. Apesar de acreditar na vida após a morte, ou melhor, não crer em vida nem em morte, lastimo até hoje a perda do cachalote, ele que era ao mesmo tempo meu pai e minha mãe. O vento soprará, como é do seu natural, e desfará a cena do telhado encardido salpicado de flores amarelas, mas a cena permanecerá em minha memória e talvez isso, somente isso, seja a eternidade: um momento de sublimação em que nos percebemos parte integrante da fugacidade da beleza, quando se passa do estado sólido para o gasoso.

E por que, em meio a essas divagações, enquanto caminhava, sou agraciado pela musa inspiradora com uma anedota certamente ficcional sobre um hipotético encontro, no início de 1961, entre Ernest Hemingway e J.D. Salinger, em que o autor de “O Apanhador no Campo de Centeio” saúda o maior escritor americano, com um gracejo que poucos compreenderiam: “Hemingway velho de Guerra”? A anedota só é possível porque, como os gregos antigos, eu acredito nas musas, principalmente Tália, como entidades possíveis de dialogar com os homens. As informações que adquirimos durante a vida, e que não são de uso cotidiano, são guardadas nos “arquivos mortos da mente” e, de uma hora para outra, quando necessárias, sabe-se lá por que razão, por que mecanismo mágico (traquinagem das musas?), são chamadas à cena para desempenhar um papel específico, dando-nos uma alegria fugaz, provocando-nos um sorriso irrevogável e, ao mesmo tempo, perecível, experiência que não conseguimos compartilhar com o outro, por ser uma anedota íntima, muito singular. Não que o outro não possa compreendê-la, mas porque só a nós diz respeito, somente em nós é capaz de provocar o sorriso inteligivelmente celeste, superiormente terrestre, proporcionado pelas musas. Quantas palavras tive de usar para explicar algo tão simples! E garanto que você sequer esboçou um sorriso complacente. Seria muito eu lhe contar que vi a cena: Salinger, com os braços abertos, a saudar Hemingway? Seria muito eu lhe dizer que foi proposital a grafia “Guerra”, com inicial maiúscula, em vez de simplesmente “guerra”, como seria correto? E, se é que você ainda tem paciência comigo, seria demais eu lhe contar que Salinger e Hemingway se encontraram durante a Segunda Guerra Mundial, em pleno campo de batalha? Ou em Paris, no Hotel Ritz? Esses lampejos são satoris, pequenas iluminações, que se ditas em palavras perdem todo o encanto. E não há nada de errado em usar a palavra satori, Salinger tinha interesse no zen-budismo. E Neil Gaiman, no livro “Os Filhos de Anansi”, associa a imagem do Buda a um limão. E se você estiver se perguntando o que isso tudo tem a ver com o ipê amarelo e o telhado da casa, eu responderia, sem cerimônia, sem medo de errar, tudo. E nada, num universo caótico em que tudo está interligado, mesmo que isso pareça só mais um clichê, entre tantos. Entretanto, não há como dizer de outra maneira. E você imediatamente pensa em física quântica, efeito borboleta e outras dimensões mais elásticas! Acertei? Quando o mundo ainda não era o mundo tal qual o conhecemos, se é que o conhecemos (“Não, ninguém conhece as coisas realmente, conhecemos somente as suas atualidades”.), quando o mundo não era nem mesmo o mundo dos tataravós dos nossos tataravós, um homem, um protótipo do homem, recém-saído das águas, sentou-se solitário em uma pedra em frente ao oceano e intuiu toda a sinfonia “La Mer”, que, muitos milênios depois, um compositor aquiliano, ao qual foi outorgado o nome secular de Claude-Achille Debussy, filho de uma nereida, no auge da solidão interior, a anotou nota por nota, a partir dos registros acásicos, aos quais ele teve acesso.

E esse protótipo do homem, sentado na pedra, diante da imensidão de água, que ele não classificou porque no alvorecer da humanidade tudo era um despropósito, esse homem que ainda tinha escamas, esse homem cuja respiração se fazia através de brânquias, ainda não tinha sequer concebido um dos seus mais primitivos arremedos de Deus. Nem de deuses. Esse homem era o seu próprio deus, até que o primeiro trovão ribombou no horizonte e um raio terrível rasgou o céu noturno em dois. E você acha que foi à toa que a uma enorme cratera do planeta Mercúrio foi concedido o nome de Debussy?

2 comentários:

  1. que bela algaravia, Edson!Do fundo do mar ao planeta mercúrio, de debussy a hemingway, um belo texto!!

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