quinta-feira, 22 de março de 2018

UM CASO DE FAMÍLIA


Edson Negromonte

Papai não admitia espelhos em casa; quando queríamos nos ver, olhávamos no fundo embaciado de uma bandeja de prata. Papai queria, com isso, nos livrar do narcisismo, pela simples razão de que éramos provavelmente muito bonitos. Até certo ponto, conseguiu seu intento. Quando demos conta da nossa beleza, ele já tinha ido embora, deixando-nos o legado da genética. E nós jamais nos miramos em espelhos, em obediência a Papai. Raramente saímos de casa, então, isso nos facilita a observância. Nós, eu e minha irmã, apesar de belíssimos, éramos as crianças que ninguém queria, os enjeitados, aqueles que os próprios parentes fazem questão de esquecer, fazem de conta que não existiríamos. Assim, aprendemos a tomar conta de nós mesmos, a nos protegermos. De Mamãe, sabemos muito pouco. Talvez o que eu e minha irmã sabemos dela seja fruto da nossa própria criação, da nossa imaginação de delfins à beira do tabuleiro de xadrez, defronte à lareira, nos dias gelados, artimanhas de criança para não nos sentirmos tão órfãos... que ela nos deixou, a mim e a minha irmã, e também a Papai, para ir se juntar aos guerrilheiros no Araguaia. Também que ela não morreu em uma troca de tiros com as forças do exército, como quiseram fazer crer na época. Quando a luta interior acabou e ela sentiu-se recuperada, com forças para novamente enfrentar a vida, ela resolveu abandonar tudo que lembrasse as existências anteriores e seguiu para o norte do País; chegando no Acre, embarcou em um avião, em Santa Rosa do Purus, que levou-a para um paradeiro até hoje ignorado. Para mim, a história de minha mãe termina aí, e me conforta imaginá-la ascendendo aos céus, com asas de avião, uma espécie de anjo, metade carne, metade ferro. Minha irmã, a surpreendo, algumas vezes, chorando, umedecendo o bordado com as lágrimas, nas noites de lua cheia, quando as mulheres tornam-se mais emotivas e, então, choram pérolas. Papai esteve sempre presente, apesar das idas e vindas, em meio aos frequentes desaparecimentos. Reaparecia, sempre à noite, rejuvenescido, parecia voltar alguns anos no tempo. E contava-nos, a mim e a minha irmã, as histórias mais inverossímeis, como a de que lhe tinham extirpado os testículos com alicate, os torturadores da inquisição. Ou de como os ferozes cães de guarda de uma mansão lhe tinham arrancado os testículos, com os dentes afiados e muito brancos, quando, nu, em fuga, escalava o muro da casa de uma famosa atriz do cinema nacional. Todas as explicações sobre a sua ausência terminavam sempre com a inevitável extirpação dos testículos. Eu e minha irmã, dentro da madrugada, aplaudíamos e íamos dormir felizes. Papai, então, permanecia conosco por mais alguns dias, e tínhamos, assim, desse modo, a proteção que nos confortaria, à sombra gigantesca do seu próximo desaparecimento. A última vez que vimos Papai, ele nos encheu de conselhos, beijando nossas faces, como nunca antes o fizera. Chorando, advertiu-nos de que este seria o nosso último encontro e, consequentemente, o penúltimo adeus; ele estava embarcando em uma longa jornada, rumo a Calecute, na esquadra de Vasco da Gama.

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