quinta-feira, 27 de agosto de 2009

A MALDIÇÃO DE IXIÃO

por Edson Negromonte
Euritião nascera centauro. Não que isso fosse novidade em sua família ou, melhor, em sua árvore genealógica, onde constam centauros que passaram para a história, como Abby, que pertenceu à trupe de comediantes de Eduardo, o Príncipe Negro, de Gales, no século XIV. Na verdade, Abby era mais que um centauro de estimação, funcionava como uma espécie de conselheiro. E Volon; seu esqueleto é exibido, como uma fraude, na Universidade do Tennessee. Também digna de nota é a cortesã Veronique Vertz, cuja poesia está hoje completamente perdida. Os pais de Euritião eram aparentemente seres comuns, normais, humanos, se assim se pode dizer. Tiveram o filho metade homem e metade cavalo, mas não se alarmaram com isso, já era previsível. Segundo o oráculo, Euritião seria o último dos centauros, mesmo porque a vida hodierna não comporta mais esses seres fantásticos; a imaginação do homem moderno está se tornando, a cada dia, mais árida, solo nada propício ao nascimento de centauros, os quais tiveram a origem terrível na conjunção carnal de Ixião com uma nuvem, enganado por mais uma das artimanhas de Zeus.
Os pais de Euritião, ajudados por uma psicóloga, sempre trataram o filho como uma criança normal, como se outros iguais a ele andassem por aí impunemente, pelo playground, na escolinha, quem sabe, até no mesmo prédio onde moravam. Mas isso não era verdade, Euritião era mesmo o último de uma antiquíssima raça de monstros mitológicos. Durante a infância, brincava com as outras crianças, levando-as na garupa, trotando, galopando, sob os olhares preocupados dos outros pais. Na adolescência, com o despertar do desejo sexual, as coisas se complicariam, mas a psicóloga, que já se tornara amiga da família, ajudou-o a superar as crises. O que importa saber é que Euritião, até onde isso é possível, levou uma vida normal: cursara Direito na PUC, era querido pelos colegas, apesar das piadinhas que faziam às suas costas, mas, assim pensava ele, tudo isso era normal, muito normal; afinal de contas, ele era um centauro, o último dessa espécie de seres, segundo a lenda, imaginários. De posse do diploma, conseguira um emprego no banco onde o pai era gerente; começou como escriturário, foi galgando degraus, um após outro, sem concessões, até chegar a uma chefia de serviço, em outra agência, para evitar falatórios de favorecimento. Depois que o pai morrera, Euritião foi se tornando, a cada dia, mais e mais recolhido. Sem o carinho, a compreensão, as reconfortantes palavras paternas, achou melhor pedir as contas no banco. Com a pensão deixada pelo velho, podia se dedicar em tempo integral às pesquisas sobre a importância do byronismo no Brasil, sempre postergadas. Com o advento do comércio eletrônico, dispunha de uma boa biblioteca sobre o assunto, abarrotada de volumes raros, amealhados pelos sebos do mundo todo. Precisava de todo o tempo disponível para levar a termo a tese. E, muito mais agora, que a sua mãe, Néfele, devido à perda repentina do marido, não saía mais da cama, necessitando de cuidados constantes. Assim, deixando de sair de casa, Euritião abandonara o convívio social, penoso após a morte do pai. No espaçoso apartamento de cobertura, na Avenida Paulista, Euritião podia trotar à vontade, pela manhã e à tarde (exercício necessário para que não se atrofiasse a sua bela musculatura equina), enquanto os vizinhos do andar de baixo estavam fora.
Quis o destino que, naquele início de madrugada, levado por uma insuspeitada insônia, Euritião deixasse a TV ligada, após terminar o jornal da meia-noite. Foi quando, no Programa do Jô, o entrevistador anunciou, com um estardalhaço inusual, a entrevista com uma grande atriz, criatura fabulosa no meio, um monstro do teatro, mas até então um nome desconhecido do centauro.
Tomado de curiosidade, Euritião puxou a cadeira para mais perto da TV. Sem entender bem o porquê, as propagandas, a vinheta, as piadinhas do apresentador lhe pareceram uma eternidade. Finalmente, ela foi chamada ao palco. Atravessou a plateia, desceu a escada, subiu ao palco, as ancas (que ancas!), para lá e para cá, num movimento harmonioso, os adivinhados seios, cobertos por uma faixa quase transparente de seda verde, os olhos negros, profundamente negros, os lábios, vermelhos, carnudos, um belo sorriso, a cabeleira negra, farta, descendo pelas costas desnudas, a pele de pêssego, em flagrante contraste com a pelagem avermelhada, as pernas, principalmente as traseiras, magníficas. Sim, era isso mesmo, seus olhos não o estavam enganando, ele não estava sonhando. Uma centaura, uma fêmea da sua espécie. Pela primeira vez, o auditório não soube como reagir; primeiro, um silêncio constrangedor, para, logo em seguida, explodir em palmas, à imitação do apresentador.
– Que mulher! – exclamou Euritião.
Sem despregar os olhos da tela, buscou na lista telefônica o número da emissora, pediu para entrar em contato com a produção do programa, no dia seguinte solicitou o telefone da centaura, educadamente lhe responderam que não podiam fornecer, ele disse que era também um centauro, que precisava conhecê-la, amor à primeira vista, começou a contar a sua história pessoal, que ele era também um centauro... Do outro lado, a atendente deu uma risada e desligou, achando que era trote.

Um comentário:

  1. Amei esse conto! Fiquei com ele na cabeça depois de um tempo... Muito bom!

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