terça-feira, 16 de março de 2010

RECORDAÇÕES DO VELHO BIBLIOTECÁRIO



por Edson Negromonte

Ao mudar para a minúscula cidade litorânea, aos pés da Serra do Mar, além de descobrir outros interesses, como o sexo oposto, a poesia e o rock’n’roll, deparou pela primeira vez com um escritor de verdade, publicado por uma grande editora paulistana. Narrando, na primeira pessoa, as suas aventuras no mar, Sven Andersen era afável, de miúdos olhos azuis, sempre disposto a entabular uma boa conversação com alguém de menos idade, pronto a dar conselhos, quase todos a partir da sua vivência marítima. Ou assim fazia parecer.
Com Sven, aprendera sobre mitologia e teatro gregos, sobre filosofia, os pré-socráticos, em longas conversas informais, intermináveis, na varanda da casa, em meio a tragadas de Marlboro e, eventualmente, de uma providencial cannabis, quando então davam muitas risadas, ante a impossibilidade de poderem cuspir, a pouca saliva ficava-lhes presa, teimosa, como cola branca, tenaz, nos lábios. Riam, duas crianças, dos olhos vermelhos um do outro, planejavam então uma viagem às Galápagos, num veleiro negro, de velas brancas, piratas redivivos, ou dariam a volta ao mundo, num balão, em menos de 80 dias, só para fazer inveja a Júlio Verne. Por fim, se alistariam, sim, com certeza, na Legião Estrangeira. Um leve sorriso, nostálgico, dançou em seus lábios.
A decoração da casa de Sven, desde as camas até os pratos e talheres, era toda feita do saque a navios encalhados na costa de Paranaguá, como o panamenho Santa Maria de las Visiones e o tailandês Mongkut. A mornidão daquelas tardes... O menino bebia cada gota das palavras do velho. Veio-lhe, de supetão, à memória, uma madrugada, quando estavam os dois a assistir à Sessão Coruja, a um filme dos anos 50, com muita rebeldia e dança. Quando o jovem disse que achava a dança da geração de Sven muito mais interessante que a dele, o velho foi categórico ao afirmar que a nova geração era muito mais livre, sem aqueles passos marcados, acrobáticos, pondo-se imediatamente de pé, a agitar os braços e as pernas em movimentos desengonçados, tal e qual um mamulengo baratinado. A última notícia de Sven é que está com quase 80 anos, cheio de saúde, vivendo numa colônia de pescadores, em Santa Catarina, que abandonou o cachimbo, sobe ladeiras íngremes sem demonstrar o mínimo cansaço, e que se tornou um reconhecido mestre de uma arte marcial qualquer, uma espécie de guru.
– Ah, bons tempos! – exclamou o velho bibliotecário.
– Não diga asneiras!
– O quê? Quem está aí?
– Aqui, ó!
O homem recusava-se a acreditar. De um buraco no rodapé corroído, ao lado da escrivaninha, um camundongo o admoestava.
– Não vês que já se passaram mais de vinte minutos do teu expediente, pobre funcionário público municipal? Veste o teu casaco e vai embora, vai pra casa, descansar, que estou morto de fome e preciso roer alguma coisa. Quem sabe, as obras completas de algum poeta parnasiano... Ou o saboroso miolo de um atlas de anatomia humana, todo em cuchê. Uhm! Vai-te, vai-te! Xô!

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