quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O RETRATO DE JOEY RAMONE


por Edson Negromonte

Acordara disposto a terminar o retrato. Olhando melhor, sentado em frente ao cavalete, a suspeita se confirmava: a madame estava a cara do Joey Ramone; só ele sabia o quanto lhe era custoso pintar retratos de gente esnobe que, só porque está pagando, pensa que pode comprar a beleza que, na realidade, não possui, transformando o artista em criminoso. Suspirou fundo, acendeu um baseado, entreabriu a janela da sala. Segurou a fumaça o mais que pode, precisava fazer logo a cabeça para encarar mais um dia. O prazo estava vencido, logo ela telefonaria para saber se estava pronta “a grande obra”, assim a madame se referia ao quadro, terminando a frase num cacarejo. De que os ricos riem tanto? Até que não estava mau... para um retrato de Joey Ramone. Ele precisava de grana, não podia se dar ao luxo de pintar o retrato de um roqueiro morto que não interessava a ninguém. Não tinha sido assim com as telas de Eros Volúsia, Boris Karloff e Tintim? Onde estariam esses quadros agora? Provavelmente esquecidos nos porões de uma galeria qualquer, amontoados como lixo. Poderia começar outro retrato da socialite, mas isso já estava dando nas nervos, não aguentava mais gastar a vida que sabia pouca pintando retratos da grã-finagem local, invariavelmente mal pagos. Como os maridos são capazes de pechinchar, depreciar, até o pintor se sentir mal e muitas vezes entregar o trabalho por preço de custo. Tá bom, não vamos discutir, me paga só o material. Era assim que se encerravam as negociações, o golpe de misericórdia, um pedido de clemência. O que ele faria com uma tela sob encomenda, de gente empoada? Pintar por cima? Não, recusava-se a isso.
O que fizera dos sonhos? Quem o conhecia, sabia que a vida não lhe fora madrasta, e o eterno problema de um teto estava garantido, morava de graça no antigo apartamento da irmã mais velha. As necessidades básicas de Artur Araripe eram poucas: uma substanciosa refeição diária, cigarros e maconha, sem a qual não conseguia se entender. Eventualmente um litro de Sangue de Boi, acompanhado da inevitável dor de cabeça do dia seguinte, que o deixava prostrado; então ele tirava o dia para dormir. Na pensão Vidor, onde fazia as refeições, gostava da companhia de Gilda à mesa; sempre calado, o travesti o fazia divagar, construir mentalmente uma caixa retangular, negra, a silhueta de Rita Hayworth recortada; no fundo da caixa, a foto de dois ciclistas desconhecidos. No alto, o bonequinho do Dick Tracy, de capa amarela, sugerindo o mistério a ser resolvido. Um crime? Tinha consciência da obviedade do título, “Nunca mais um traveco como Gilda”. Criaria as mais disparatadas teorias sobre o objeto, evocando o desesperado Glenn Ford. Ah, a infatigável arte de inventar teorias sobre os seus trabalhos, títulos que invariavelmente remetiam à literatura, música, cinema. E à própria história da arte. Não fora assim com “O Pássaro do Ciúme Sobrevoa o Paraíso”, “Drácula Mon Amour”, “A Mulher-Gorila Só Come Pipoca de Microondas”, “Solo de Sax para Doris Day”? Assim também com “A Felicidade”: sobre fundo vermelho, uniforme, dois revólveres, calibre 38, de frente um para o outro, a sugerir um 69. No vernissage, quando o banqueiro e a esposa aproximaram-se, intrigados com a tela, disparara “a felicidade é como a gota de orvalho”, o lapidar verso de Vinicius. Ou “happiness is a warm gun”, de Lennon, para a jovenzinha coquete, encantada por estar conversando com o artista arredio, avesso a aglomerações, mas que dera o ar da graça à coletiva. Por que ele agia assim? Autodestrutivo, Artur Araripe vivia com a arma apontada para a própria cabeça; antes que alguém pensasse em destruí-lo, ele já tinha apertado o gatilho.
Precisava terminar o retrato da madame, prometera a si mesmo não pedir mais um centavo à irmã, a única pessoa que ainda o compreendia. Desde a morte do pai, ela tomara a peito o encargo de cuidar do irmão. Pianista frustrada, o casamento abortara a carreira promissora de Mercedes, a vinda dos filhos, as responsabilidades domésticas, o dia-a-dia insípido. O irmão era tudo para ela, a oportunidade de realização, mundo ao qual só os dois tinham acesso. Com a mudança para o Alto da Glória e a boa situação do marido, Mercedes deixara o apartamento para Artur; no leito de morte, o pai pediu-lhe que jamais abandonasse o irmão, que não o deixasse à deriva, que o protegesse de si mesmo. O relacionamento de Artur e Mercedes era quase incestuoso, ela fora o seu primeiro modelo vivo, todas as mulheres que Artur pintava tinham um quê da irmã, ora os olhos claros, castanhos, quase verdes, ora a boca vermelha, entreaberta, convidativa. Os seios das musas eram sempre os seios pequenos e eternamente redondos de Mercedes. Bem que Artur tentou superar a fixação, casando-se. A primeira mulher não tinha nada a ver com ele, sabia que não a amava. Ela tentou inúmeras vezes compreendê-lo, a barreira era intransponível. Após quatro anos de tédio, separaram-se, sem brigas, nem recriminações, sem filhos, nada em comum, como se não tivessem passado pela vida um do outro. Apesar disso, sem saber porquê, choraram na despedida. Outros três relacionamentos amorosos aconteceram, mais fugazes ainda, rápidos como um ato sexual na zona, porque a fila anda, como diria a dona da casa. Vacinado, Artur não admitiu mais ninguém em seu mundinho particular. Como todo artista precisa de paixões para produzir, principalmente as platônicas, enamorou-se de Catherine Deneuve, Anita Ekberg e Marilyn Monroe, todas volúveis, fúteis, propensas à traição. Somente Mercedes era capaz de amá-lo sem nada pedir em troca.
Enganando a si mesmo, Artur precisava acreditar que realizaria a grande obra, digna da genuína aspiração de deixar um legado para a humanidade. Sim, “A Grande Ceia Marciana”! Por que não pensara nisso antes? Como ponto de partida, “A Santa Ceia” de Leonardo da Vinci; no lugar dos apóstolos, alienígenas como os dos cards “Marte Ataca”. Em primeiro plano, pelo chão, embalagens de sabão em pó Omo, Rinso, Minerva, latas de Nescau, Toddy, Ovomaltine, salgadinhos Elma Chips, salsichas Sadia, Sonhos de Valsa, Marlboro etc, os patrocinadoresdo encontro sagrado. Nas paredes, pôsteres de Jimi Hendrix, Che Guevara, Hitler, Ginger Rogers, Rasputim, Mary Osmond, Monkees, Garibaldo... À mesa, uma garrafa de Coca-cola. De grandes proporções, a garrafa, a tela. Tinha de pensar grande, como fazia Picasso. Reacendeu o baseado, a fim de clarear as ideias, ver mais longe. Sim, “A Grande Ceia Marciana” seria a sua obra-prima. Ah, utilizaria as várias referências de toda uma vida que até então lhe parecera insossa. Como Hitchcock, Artur também estaria presente ao inusitado banquete, disfarçado, nada evidente, talvez escondido em baixo da mesa, deixaria sim vários enigmas a serem decifrados pelos arqueólogos. Como na música eletrônica, agiria como um sampler, o mundo como um grande banco de dados. Sim, a verdadeira arte teria de atuar em consonância com o procedimento das outras artes, principalmente a música. Eureca, Leonardo, além de pintor, tinha sido músico, o inventor de novos instrumentos para a nova música. Dodecafônica, serial, tonal, atonal, aleatória, samplear o velho e o novo. Leonardo não tinha sido também cientista? Infatigável, descobrira a grande e a pequena circulações do sangue, dissecando cadáveres roubados, na calada da noite, dos cemitérios. Sim, Artur utilizaria as novas descobertas industriais, a tinta automotiva, de maior durabilidade e cores metálicas. Era isso, sim, o nome Artur Araripe estaria inscrito na história da arte mundial. Nenhum crítico mais poderia se referir à arte do século 21 sem citar Artur Araripe. Deu uma puxada profunda no fumo e teve, então, a grande, fenomenal ideia: a assinatura, para sempre indelével, seria uma esplêndida ejaculada sobre toda a obra, o gozo do artista incompreendido preservaria para toda a eternidade o seu DNA, com o qual os cientistas dos séculos futuros pudessem clonar um novo Artur Araripe, quem sabe, Araripes, sim, Araripes aos montes, às mancheias, indispensáveis à renovação de uma arte estagnada. Porque, após isso, a arte jamais seria a mesma. Daí, cortaria os pulsos. Não, isso não, cortar os pulsos é coisa de empregada doméstica. Quem sabe, cortasse o pau após a obra finda. Só, se esvairia em sangue, o grand finale. Não, isso não, não podia dar mais trabalho a Mercedes. Tinha de pensar numa morte limpa, não menos apoteótica. E se se enforcasse, como Ian Curtis? Com uma ponta de satisfação, imaginou a irmã lavando o sangue coagulado do assoalho, chorando a perda, maldizendo-o, a impossibilidade de limpar os vãos entre os tacos. Não, ela não se daria ao trabalho, contrataria uma faxineira. Pena que ele não veria a cena. O que estava dizendo? Não, não podia dar tal desgosto à irmã, a pequena Mercedes dos seios eternamente redondos. Embevecido, entorpecido, “A Grande Ceia Marciana”, a obra-prima, a glória eterna, Artur deambulava, viajava, arrastando-se pantanoso através do tempo espectral que nem as ampulhetas podem medir.
O toque insistente do telefone trouxe-o de volta.
- Alô?
- Oi, grande artista, o meu retrato está pronto?
- Quem é, Joey Ramone?

3 comentários:

  1. hihi, adorei!!principalmente o desfecho! :)

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  2. Muito familiar todas essas obras citadas, deu uma saudade. Cê é foda!

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  3. Hahaha! Sempre tem algo de auto-biográfico no que secreve. Abraço!

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