quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O MAIOR MÁGICO DO MUNDO

Edson Negromonte


O avô de Maquiné tinha sido mágico. Aliás, um grande prestidigitador. Dizem que o homem era chegado até em taumaturgia. Viajara, quando jovem, por vários países. De um deles, da Índia, se não me engano, trouxera uma arca, à qual ninguém tinha acesso. Mesmo quando ele estava roncando, a sono solto, ninguém da família se atrevia a vasculhar os seus pertences. Corria na cidade uma piada sobre os seus sortilégios, engendrada nas muitas horas de ócio criativo que os moradores de Antonina dispõem. Contava-se que o avô de Maquiné abandonara a carreira devido a um grande desastre ocorrido em teatro da capital argentina, durante uma turnê com artistas locais: atores, cantores, músicos, poetas, declamadores.

Durante o espetáculo, era o Mágico Xandu dizer “pomba” e um destes pássaros saía batendo asas das suas mãos. Se ele dissesse “coelho”, do nada surgia um da cartola. Até um pônei apareceu, sabe-se lá de onde. Da casaca é que não pode ter sido. Serrou uma mulher da plateia ao meio. Muito aplaudido na primeira noite, bem mais que os outros, provocava entre os seus pares certo desconforto. Pode-se dizer ciúme? Dizia-se discípulo de Chung Ling Soo, o maravilhoso conjurador chinês. Na noite seguinte, o teatro lotado esperava ansioso a última atração, o Magnífico Xandu. Quando ia entrar no palco, todo senhor de si, aconteceu de o grande ilusionista tropeçar. Alguém pusera de propósito um tijolo em seu caminho. Dizem os cronistas de nossa cidade que esse ato vil foi ideia do invejoso Bairon, um dos nossos poetas locais que fizemos questão de esquecer, ajudado por Polidoro Bautista, um homúnculo coxo que já não existe mais. Polidoro foi um dos maiores declamadores de poesia de nossa terra, de voz tonitroante, apesar da baixa estatura: 31cm. Deixou inédito o livro “Vãs Piras”, o qual também tratamos de esquecer e as traças de roer.

A dor da topada fez Xandu gritar “merda”. A plateia, atenta, achou que o impropério fosse parte do show. Sem crer, viu a conhecida massa marrom descendo do palco, subindo pelas cadeiras, como coisa viva. E de péssimo odor. Alguns até chegaram a aplaudir, encantados. Quando perceberam que aquilo era mesmo o que Xandu tinha invocado, subindo pelos sapatos, pela barra das calças, pelas pernas, um desespero; atropelaram-se, escorregaram, foram ao chão. Poucos se salvaram, as portas laterais estavam fechadas. A inteligente e bem aparelhada polícia de Buenos Aires chegou à conclusão de que um mero prestidigitador não podia ser responsabilizado pela tragédia; fora o esgoto que transbordara. Xandu prometeu a si mesmo nunca mais abrir a boca. E, para sempre, mudo ele ficaria. Assim o conheci, em sua providencial ausência de impulso verbal. Os únicos sons que lembro de tê-lo ouvido emitir foram os grunhidos do ronco, quando íamos roubar Gardenal da sua mesinha de cabeceira.

Quando ele não estava de ovo virado, o seu comum, num movimento furtivo de olhos anunciava, silencioso, que estava prestes a fazer um truque. Sua arte refinada chegara ao ponto de não necessitar mais da conjuração das palavras. Com gestos cabalísticos, tocava o peito, batia três vezes no coração, ante os olhares apreensivos dos meninos, e da terra fazia brotar uma pequena labareda. Num gesto de mandraque, guardava o fogo no bolso do paletó e, como se nada demais tivesse feito, voltava para a cadeira de balanço em frente à TV, nheec, nheec, nheec. Boquiabertos, o rodeávamos. Ele, absorto com as imagens, distraía-se com o movimento coleante das chacretes. Posso dizer catatônico? Excitado, você diria. Certa vez, depois de tirar várias moedas de nossas orelhas, ele apontou para um quadro pendurado na cozinha e fez correr sangue do Sagrado Coração de Jesus. Sua mulher avisou-o de que aquilo era pecado. Sorriu malicioso. De outra, essa eu não vi, me contaram, transformou vinagre em vinho, e vinho em água. E, dentro da água, na tigela, a nadar vários lambaris. Seu neto dizia que o vira multiplicar pães, mas que ninguém comera, de medo. A convivência com o mágico não era fácil; quando esquecia de tomar o remédio, punha-se a quebrar pratos, que voavam pela casa toda. Depois, com a força da mente, tentava em vão colá-los. Cansado do esforço excessivo, voltava à cadeira de balanço, nheec, nheec. Com tal capacidade de sacar moedas das orelhas dos meninos, não compreendíamos como Maquiné estava sempre duro. Nheec. Perto dos 80 anos, Xandu se recolheu de vez ao quarto, não saiu mais da cama, olhar absorto no teto de madeira, pó de cupim caindo sobre ele, sobre o cobertor. Só o víamos quando íamos surrupiar alguns comprimidos de Gardenal para os embalos de sábado à noite, no Clube dos Operários.

Após muito tempo, de volta à cidade, lembrei-me dessa passagem de minha juventude, mas principalmente da arca misteriosa, a qual ninguém se atrevia a sequer olhá-la, o que dirá abri-la. Encorajado pela idade, fui à procura de Maquiné, que ainda mora no mesmo endereço. Pai de família, convidou-me para uma tomar uma no bar da esquina. Depois de uns copos, como quem não quer nada, perguntei-lhe sobre o avô. Falecera.

– E a arca?

– Desapareceu, nunca mais se soube dela.

– Como assim?

– Foi embora.

– Você está falando como se aquilo tivesse livre arbítrio, como se fosse coisa viva.

– E não era? – arrematou.

Ficamos em silêncio, cada um olhando para o seu copo de cerveja. Depois de olhar para os lados, Maquiné esticou o pescoço e segredou:

– Ele morreu de combustão espontânea.

– Quem?

– Levou junto com ele o segredo.

– ...

– Queimou tudo, as roupas, lençol, a gordura do corpo... menos as mãos. Até a arca, queimou. Cinzas, não sobrou nada. Só as mãos. De manhã, minha avó foi levar o café para ele e foi só o que viu: as mãos do grande mágico que ele sempre foi. E um cheiro adocicado.

– ...

– Pensa que ela gritou? Nem.

Admirando o copo, Maquiné passou o dedo no vidro suarento.

– Recolheu tudo com a pazinha do lixo, botou numa urna que ninguém, mesmo os de casa, sabia da existência. Botou as mãos, intactas, numa sacolinha. Nem chorar, ela chorou. O médico veio e atestou o efeito pavio, de dentro pra fora, uma vela às avessas. Ela mandou depositar a urna no jazigo da família, no Saivá. Não teve guardamento, nem mesmo enterro. Pensa que alguém na cidade estranhou? Nem, nem. Falar disso em casa, virou tabu. Eu, de minha parte, nunca fui visitá-lo. Tá lá, descansando... as cinzas. E as mãos? Intactas

– Garçom, mais uma! Bem gelada, estupidamente.

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