quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O AVÔ MATERNO


Edson Negromonte


– Ah, eu queria tanto morrer...

– É só desligar a tomada!

– Que tomada?...

– A tomada da vida!

– Ah, se fosse tão fácil assim, neto...

Era duro ver aquele homem que eu conhecera forte, em tudo o esplendor da vida, prostrado na antiga cama de casal, assim como ele, de ferro, o homem que eu não precisara aprender a admirar, a memória viva, em carne e osso, com as suas histórias da Guerra do Contestado, as andanças pelos sertões de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, tangendo gado, levando boiadas de um Estado a outro, o homem que gerara a minha mãe, que gerara mais dois filhos, que vira o irmão mais novo ser assassinado, que criara como seu o filho de outro irmão, tuberculoso, que morrera em seus braços, o homem que a vida toda fora a representação do cerne, no qual a lâmina do machado não penetra, não penetrava. Poderia dizer muito mais sobre o homem antigo, de valores cristalizados, que dera um dote às quatro irmãs, que só se casara após vê-las casadas, que levara a mãe para morar com ele, a qual minha mãe chamava também de mãe, a mãe velhinha que, vendo a neta com o nariz escorrendo, erguia uma das várias anáguas para limpar o pequeno nariz de bolinha, vermelho, da menina. Poderia eu contar muito mais sobre ele, que recebera de presente de casamento uma fazenda na Serra do Tamanduá, cuja casa ficava à beira de um rio caudaloso, cheio de mutucas, dos bugios a gritar em dias de chuva, macacos que invadiam a área da casa grande. Certa madrugada, meu avô sacudiu-me do sono para que eu assistisse ao espetáculo da macacada correndo assustada, por causa dos tiros de espingarda que disparava para o alto. Rimos a valer. Ele, o homem decidido que administrava com mão de ferro a peonada, mas que com eles compartilhava a cuia de chimarrão, que, com eles, à beira da fogueira, no curral, saboreava, depois de cozidos em água e sal, os colhões dos bezerros castrados. Contou-me também a história do filho do Silvino, o capataz, que encurralado pela polícia, no matagal, enraivecido deixara as marcas dos dentes no cano do próprio revólver sem balas. Noutra vez, seria o caso do filho mais novo do capataz, que tinha a testa afundada pelo coice de uma mula. Justo ele, o homem que amava os cavalos de corrida, que me deu de presente o seu relógio de algibeira, de prata, um Omega, com cronômetro (relógio que continua marcando as horas até hoje, independente do primeiro dono, e que assim continuará, independente de mim, de meus filhos, netos... Ele, o vaqueiro que me ensinou a montar tanto os baios quanto os tordilhos, para que, um dia, eu cavalgasse garboso as pradarias do mundo adulto. Assim, andávamos lado a lado, pelas estradas poeirentas, em visita aos seus amigos, de outras fazendas, aos quais me apresentava, como se eu fosse da mesma idade deles. Varandas, onde eu permaneço a ouvir incansável as mesmas histórias: de lobisomens, da égua que parira dois potrinhos e só parou de sangrar às custas da reza forte de nhá Totica, do sangue derramado no telhado, do porco capão, da fazenda onde morava a mulher-macaco, fugida do circo, apaixonada pelo meu tio. Ele, que também era amigo do velho Zé, cachaceiro de dentes podres e esverdeados, os quais nunca escovara, com quem meu pai dividiu um litro da pior aguardente numa noite de frio intenso, de cortar as entranhas. Era para mim muito doído ver aquele velho prostrado na cama, de ferro, ambos feitos da mesma matéria, a cama e o velho na cama, justamente ele que enfrentara os fantasmas mais terríveis, a fome, a geada, as contendas políticas, a incompreensão dos outros homens, justamente ele que me dera o primeiro beijo, quando do meu nascimento, em sua velha casa de madeira, no alto do morro, ao lado da igreja, a igreja dos padres com os quais brigara e jurara nunca mais lá pôr os pés. Ele que ia me buscar de jipe nas férias, que me deu a primeira garrucha, ele que aquecia os pés no beiral do fogão à lenha, enquanto o frio lá fora embranquecia o pasto antes verdejante, como lhe embranquecera também os cabelos. Ele que, num ímpeto, arremessara furioso o machado de rachar lenha em minha direção, ele que me chamava de manhã bem cedo para ordenhar as cabras, para assistir à matança do porco. Naqueles tempos, os homens eram feitos assim, da matéria da vida, a qual não exclui, em hipótese alguma, a morte. Ele que, jurado de morte pelo genro, o marido bêbado da filha mais velha, eu defendi com minha risível espingarda de ar comprimido. Ele, o compulsivo leitor de bangue-bangues, mas preocupado com a minha leitura voraz dos livros de crime e mistério da Coleção Amarela. Com o passar do tempo, talvez por covardia, não o visitei mais, para não vê-lo em estado tão deplorável, para resguardar em meu peito o retrato esmaecido do jovem, flanando, de terno e chapelão, pelas ruas de Curitiba. Naqueles tempos, os da sua juventude, era chique para o catarinense da fronteira ser fotografado pelas ruas da capital paranaense. Somente no necrotério revi novamente o grande amigo. Descansava ele comodamente sobre a morgue, sorrindo, indiferente ao choro convulso de parentes e amigos que lamentavam a esperada partida do ente querido, quando me veio à mente a capa do disco "Closer", do Joy Division, e os versos Love, love will tear us apart again.

– Ah, eu queria tanto morrer...

– É só desligar a tomada!

– Que tomada?...

– A tomada, vô, a tomada da vida.

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