quarta-feira, 18 de março de 2015

CARLOTA

Edson Negromonte

Sozinha em casa, Carlota viu-se num local que há muito tempo não explorava, desde a morte do pai; dia nublado, propício à introspecção. Aliás, pensando bem, desde os tempos de menina ela não ficava remexendo os tesouros esquecidos do sótão. Apesar da meia-idade, Carlota mantinha um irritante comportamento infantil que desnorteava as pessoas que dela se aproximavam, apesar das pequenas rugas em sua face. Após subir os degraus, parada na porta, ela foi aos poucos acostumando os olhos à escuridão. Displicente, esfregou-os com as costas das mãos. O cheiro forte do pai ainda impregnava o ambiente. Durante os últimos anos, o sótão se tornara o refúgio do homem que ela mais amara durante toda a vida. Por que então associava o mofo com o suor do pai? As pessoas têm um cheiro característico, mas esse cheiro só se torna evidente após a morte, quando encontra o seu correspondente numa fruta, uma sonata ou num momento de solidão: o odor característico do pai remetia a bolor. Não que isso seja ruim, é somente a constatação do cheiro do ser amado, sempre envolvido com livros que adquiriam o cheiro de húmus depois de lidos. Principalmente os de segunda mão, de papel jornal, da década de 40. Esses livros, facilmente encontráveis nos sebos, possuem uma facilidade bem maior de se impregnar do cheiro das últimas pessoas que os leram, como mata-borrões ou vampiros ou as paredes porosas de um lupanar.

Cerimoniosa, como se pedisse licença ao fantasma do pai, Carlota sentou-se na poltrona gasta, forrada de um tecido estampado de flores que, um dia, tinham sido vermelhas, exalando um outro cheiro associado ao pai, o qual estava para sempre ligado às férias na praia, as infindáveis tardes de sal grosso que o vento impiedoso insistia em trazer de volta às narinas de Carlota. Doído, porém irresistível. Ligou a luminária; incrível que a lâmpada ainda acendesse após tanto tempo. Dias, meses que tinham se transformado em pouco mais de um ano. A claridade afastou as sombras incômodas de outros fantasmas para o lado, empurrando-as abruptamente para as paredes do pequeno cômodo, apesar de se parecerem com as outras sombras dançarinas que o pai projetara durante a sua passagem pela terra. Na mesinha de centro, com desenhos geométricos em vermelho e preto sobre o tampo branco (resquícios de um modernismo tardio), Carlota percebeu um livro, um único livro, ali, solitário, cada vez mais evidente, como se o pai tivesse esquecido propositadamente de guardá-lo na estante, junto aos outros, depois de lidos e anotados a lápis. Era um conhecido volume de poesia... Emily Brontë. Carlota sabia que as irmãs escritoras tinham sido a inspiração para o pai dar às filhas os seus nomes, devidamente aportuguesados. Emília falecera antes dos quinze anos, de um mal que nenhum médico soube diagnosticar, a doença lhe corroera os ossos em questão de meses, enquanto Ana, a mais moça, tinha fugido de casa para casar com o vagabundo do filho do vizinho. Nunca mais Ana botaria os pés na casa, nem na cidade. Ana não compareceu ao enterro do velho, sequer telefonou. Emília era a favorita do pai, Carlota tinha certeza; nos últimos momentos, ele chamara baixinho por ela: Emi, Emi... A enfermeira disse que certamente ele estava vendo os seus mortos, que vinham lhe dar as boas-vindas, segundo a crença popular. Somente Carlota ficara fadada à charneca da casa paterna. Sabia disso, tinha certeza, mas não se amargurou jamais. Como todos os parentes diziam: Carlota era infantil, incapaz de se irritar por muito tempo com as palavras mais ásperas das tias, tudo em Carlota era momentâneo, até o amor, nunca uma paixão arrebatadora. Somente ao pai ela foi capaz de amar durante toda a vida, sem restrições, nada exigindo, a não ser que exalasse diariamente o odor característico pela casa, inebriando a sala, os quartos, deixando um rastro que Carlota, empinando levemente o nariz, acompanhava sem sair do lugar.

Os nossos mortos nos acompanharão sempre, pois através deles somos capazes de medir os mínimos gestos, os mais cotidianos, os quais são imensuráveis enquanto os mortos futuros ainda estão aparentemente vivos. Mas, contra tudo e contra todos, contra si mesma, Carlota sabia que precisava se livrar daquele fardo, do esquife que a arrastava ao abismo, a tampa entreaberta, o olho bom do pai observando-a, fixo. Sentia-se incapaz de pisar nos ovos de barata de uma alma sequiosa de carinhos. De repente, Carlota percebe a língua branca de uma papeleta, de entre as páginas do livro, estendendo-se, movimentando-se em sua direção, como um réptil. Num gesto impensado, confiante, infantil, Carlota apanha o pequeno volume encadernado, abre-o no ponto marcado e lê, na inconfundível caligrafia paterna, a reveladora frase de toda uma vida de silêncios: “Eu sou o homem-baiacu”.

3 comentários:

  1. Que lindo, Edson!! e que final desconcertante...

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  2. Suas palavras, Jeff, são sempre um grande incentivo.

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  3. Caro amigo, parece que Você está reescrevendo José Condé... Muito bom.

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