quarta-feira, 4 de março de 2015

O SEBO


Edson Negromonte

Quatorze anos passei atrás do balcão de um sebo, onde, além de livros e revistas usados, eu vendia, comprava e trocava também discos de vinil. Esses estabelecimentos comerciais, as primeiras livrarias permitidas em terras brasileiras, entraram em minha vida quando eu morava em Antonina e carecendo de grana para ir ao show "Atrás do Porto Tem uma Cidade", de Rita Lee e Lúcia Turnbull, subi a Curitiba para me desfazer de uma coleção de Tecnirama, a qual não me era mais útil. Eu a ganhara de um primo, numa aposta; ele duvidou que eu fosse capaz de pular do segundo andar de um prédio, em cima de um monte de areia. Passei, então, a frequentar com assiduidade os sebos, em busca de preços acessíveis, para em seguida descobrir as obras raras, fora de catálogo, e tornar-me, adulto, o feliz proprietário de um, ao qual dei o original nome, assim eu pensava, de O Alfarrábio, inspirado por Jorge Luis Borges, durante uma palestra no auditório do MASP, no exato momento em que o grande escritor argentino proferiu a sugestiva frase en los viejos alfarrabios de mi padre. Ao voltar para casa, corri ao Aurélio e deparei com o significado: livro antigo ou velho e de pouco préstimo, ou valioso por ser antigo. Mais tarde, descobri que alguns Estados, como Minas e Pernambuco, também tinham os seus tão originais Alfarrábios. Nessa época, o velho escritor já estava cego, sendo carinhosamente levado pelo braço pela secretária Maria Kodama.

Para minha surpresa, o meu Alfarrábio era o primeiro sebo de toda a história de uma operária cidade paulista, que os urubus de plantão asseguraram que jamais daria certo, “operário não lê”. Orgulhosamente, mostrei a todos o contrário: operários e filhos de operários leem sim, assim como os meninos de rua, guardadores de carro, os quais iam se divertir com as revistas de histórias em quadrinhos do Batman, Capitão América e Super-homem, inclusive as prostitutas que faziam ponto na praça em frente à livraria, nos fundos da igreja matriz. Ao sebo, elas iam, nas horas de folga, em busca das histórias de amor das revistas Sabrina, Júlia e Bianca. Curiosamente, poucas se interessavam pelas histórias de príncipes e princesas de Barbara Cartland. Algumas dessas mulheres da vida, cansadas da leitura água com açúcar, pediam-me que lhes indicasse um livro para passar as horas entre um cliente e outro. Inevitavelmente, indicava-lhes "Horizonte Perdido", de James Hilton. Todas eram unânimes em dizer que tinham adorado o livro. Assim, eu ia pondo em prática a teoria de que todo ser humano, independente da classe social, almeja a atividade intelectual, precisando somente ser despertado para tal.

O proprietário de um sebo, geralmente um amante dos livros, precisa ser muito cauteloso, pois pode acontecer de consumir o estoque, como é comum entre os alcoólatras que resolvem abrir um bar. E, para amantes de livros, não basta somente lê-los, é preciso possuir o objeto de desejo. Então, eu os levava para casa durante um tempo, para depois devolvê-los, quando o dinheiro minguava (alguns, nem todos), para as prateleiras do sebo. Com os discos acontecia a mesma coisa. Apesar do desprendimento quase obrigatório, cheguei a ter em minha coleção mais de cinco mil elepês e uma infinidade de livros, que ocupavam as paredes de casa. Os de poesia concreta eram os meus preferidos, a menina-dos-meus-olhos. Tanto, que dei ao meu filho mais novo o nome de Augusto, uma homenagem ao grande poeta-inventor.

O colecionismo é uma prática, ou doença, como queiram, que me concedeu algumas alegrias. Uma delas, ser citado numa matéria do jornal O Estado de S. Paulo, no caderno de variedades, como um dos maiores colecionadores do país de séries de TV. Com o advento do videocassete e, mais tarde, da TV a cabo, e com a enorme gama de opções, principalmente dos canais dedicados à nostalgia, passei a dormir somente duas, três horas por dia. Cheguei ao cúmulo de colocar o despertador dentro de uma lata de Neston, um improvisado amplificador, para despertar entre uma atração e outra, a fim de gravar de madrugada todas as velharias da minha infância, como Lassie, Missão Impossível, A Família Dó Ré Mi, Os Monkees, Flipper, Speed Racer, Os Monstros, Família Addams, e tantas outras mais. Um dia, tive lamentavelmente que me desfazer de todo o meu acervo, ao mudar para o Estado do Rio, em busca da segurança da casa paterna, depois de um casamento desfeito. Certamente, conservei algumas coisas, poucas, raras, caras, queridas, que me acompanham até hoje.

No pouco espaço que restava das paredes do sebo, fiz questão de pendurar alguns retratos, emoldurados, dos meus favoritos. Os fregueses podiam, assim, admirar o jovem Jack Kerouac, segurando uma velha mala de papelão, pronto para botar o pé na estrada; um Pedro Kilkerry, de terno e gravata, o qual me fora cedido pelo poeta e editor Cléber Teixeira; a belíssima Hilda Hilst, quando ela ainda frequentava a alta sociedade; a foto da única reunião dos quatro grandes do terror: Vincent Price, Christopher Lee, John Carradine e Basil Rathbone; uma gravura de Walt Whitman, de mangas arregaçadas e grosseiro chapéu de feltro, à época da primeira edição de "Folhas de Relva"; John Fante, de olhar lânguido, tal e qual um artista hollywoodiano dos anos 50. A galeria completava-se com as fotos, lado a lado, de Edgar Alan Poe e James Joyce, mais um postal, com a vista da rua principal de Antonina, ainda com o canteiro central, onde escrevi a nanquim no rodapé, parafraseando Drummond, no poema "Confidência do Itabirano": Antonina é apenas uma fotografia na parede, mas como dói. Houve um tempo que arranjei espaço para afixar também um pequeno quadro de feltro, onde as pessoas podiam ler as notas publicadas na imprensa diária sobre as barbaridades da vida pregressa de Fernando Collor, então candidato à presidência da República. Petista, partidário de Lula, eu dava descontos a quem declarasse voto favorável ao líder operário. Quase fui preso pela brincadeira: no ar, através do seu programa, um radialista local, partidário do Collor, exigiu a minha prisão.

Um sebo sempre proporciona ao seu dono histórias interessantes, além dos chatos que abusam da boa vontade alheia, vangloriando-se por terem lido meia dúzia de livros. Esta história é uma das que mais me marcaram: uma manhã, por volta das nove horas, como era de costume, devido ao pouco movimento, estava eu entretido com as páginas de um bom livro, quando adentra a livraria uma negra vistosa, num vestido azul celeste, de babados, o que só vinha a realçar ainda mais a sua beleza madura. Pousa no balcão a bolsa e pergunta-me suavemente, num cicio, se eu tinha "O Livro de São Cipriano", de capa preta. Coincidentemente, no final do expediente do dia anterior, eu comprara um lote de ocultismo. Entre eles, viera um exemplar do tal livro, de cantoneiras prateadas e capa nigérrima.

– Esse é o verdadeiro São Cipriano? – perguntou.

– Sim... – respondi.

Folheava o volume encadernado, o qual ia tornando-se cada vez mais negro, resplandecente. Folheava à cata de um capítulo, uma página, um parágrafo, o qual ela sabia muito bem onde encontrar. Leu atentamente, quase em voz alta, os olhos acompanhando o dedo indicador da mão direita.

– Isso funciona? – perguntou à queima-roupa.

– Funciona! – respondi, buscando convicção sabe-se lá de onde. Das entranhas, talvez. Eu precisava vender; tinha contas acumuladas, de água e luz, que precisavam ser pagas, além do mais tinha uma família para sustentar, essas coisas que os fracos alegam quando querem se desculpar ou culpar a outrem por suas próprias faltas.

– Funciona mesmo? – insistiu.

– Funciona!

Meu Deus, como eu precisava vender! Fazia parte do meu procedimento comercial que o primeiro cliente saísse do sebo com um livro debaixo do braço, mesmo que o desconto fosse maior que o lucro, mesmo que eu perdesse, porque o cliente satisfeito deixa no estabelecimento uma aura de felicidade, aura essa que no decorrer do dia atrai mais clientes. E essa mulher era justamente a primeira pessoa a entrar no sebo naquela fatídica manhã.

– Porque se não funcionar, eu volto aqui – disse ela, com perceptível tom de ameaça na voz quente e levemente rouca, vinda dos lábios pintados de carmim.

Estremeci, subiu-me o sangue às faces, minhas mãos esfriaram, as pontas dos dedos formigavam, mas nada disso deixei transparecer. No comércio, aprende-se a dominar os sentimentos.

– Eu preciso matar a mulher do meu amante...

Quase desfaleci; a vista toldada, eu via somente uma nuvem negra, de dentro da qual o próprio Cipriano me espreitava, de sorriso escarninho. A mulher levou o livro, sem que eu precisasse fazer o mínimo desconto. Trêmulo, embrulhei-o. Ela, com um sorriso, guardou-o na bolsa (que agora me parecia bem maior) e foi-se, rebolando, deixando o rastro de um perfume adocicado que ainda me vem às minhas enquanto escrevo essas linhas. Devo acrescentar que precisei sentar para me recompor, para assentar as ideias. Com o decorrer do dia, a calma de meu coração disparado foi se restabelecendo. A chegada das pessoas foi diminuindo os efeitos da visita inesperada.

No domingo seguinte, ao passar em frente à TV, o sorridente Silvio Santos anunciava uma das maiores jogadoras de búzios de todos os tempos. Como sou morbidamente atraído por charlatões, essa gente capaz de se aproveitar da credulidade alheia, como se as artes divinatórias fossem ciências exatas, parei para ver as patacoadas que a vidente diria a respeito da economia mundial, da morte do Papa ou do andamento da eleição do novo Presidente. E quem surge na telinha? Sim, a minha cliente, a mulher que comprara o “Livro de São Cipriano”, de capa preta e cantoneiras prateadas. Saí para a rua, preocupado. A mulher era mais poderosa do que eu supunha. Abri a loja na segunda-feira, à espera de que, de uma hora para outra, ela entrasse e atirasse o São Cipriano na minha cara. E eu merecia mesmo! Ela estaria coberta de razão e eu aprenderia a não me aproveitar da credulidade alheia. Veio a terça-feira e nada da mulher aparecer. Quarta, quinta, sexta e, finalmente, o sábado. Meu coração apaziguou-se, com o bálsamo que é um dia após o outro. Passaram-se meses, ou nem tanto, o que sei é que tudo voltara ao normal. Eu nem lembrava mais do ocorrido, quando, certo dia, pela manhã, ei-la que surge vestida toda de branco, caminhando decidida em minha direção, para na minha frente, encarando-me com olhos negros e brilhantes. Então, a senhora dos búzios abre um belo e alvo sorriso e diz:

– Funcionou!

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