quarta-feira, 15 de abril de 2015

NA TAVERNA DA VELHA HAQUB ou O UNICÓRNIO


Edson Negromonte

Naquele tempo, em que minha alma ainda não havia sido completamente corrompida pelo álcool, tempo em que eu era um jovem de certa beleza, que tinha todos os dentes da boca, e que a pele da minha face ainda não estava lanhada e salgada pelos vagalhões do mar do infortúnio, eu tive a desgraça de conhecer o unicórnio, essa figura que dizem lendária, e pertencente ao mundo fantástico das fadas... ah, só eu sei, só eu posso confirmar o quanto o unicórnio é real.

Pelo menos para mim, tudo começou quando eu ainda vivia em Dw Revhs, próximo do limite ao sul de Nusredmtap, e ainda morava com os meus avós, os quais me criaram muito bem, com severidade, em conformidade com os seus preceitos religiosos, e não são em absolutamente nada responsáveis pela criatura bestial que vim a me tornar com o decorrer dos anos. Esta criatura que você agora vê, entre asco e piedade, à sua frente, bêbado feito um gambá-micurê. Foi a partir dessa mil vezes maldita visão do unicórnio que teve início a minha desgraça. É ainda bem nítido, após tanto tempo, o princípio da minha queda no despenhadeiro da vida: a primeira vez que entrei em uma casa do pecado, no caso a taverna nojenta da velha Haqub, na qual novamente me encontro, em busca do lenitivo para aplacar meu desespero. Eu estava ainda em meio à idade do viço e meus ombros tornaram-se, então, arcados, de um momento para outro, ao peso dilacerante de um segredo que me vi obrigado a carregar por todos esses infindáveis anos, à custa da minha própria sanidade, até que surgisse alguém, de alma generosa, creio eu, disposto a acreditar na minha história, aceitando, desse modo, para si o meu fado. E esse alguém é você! Percebi isso, com toda a certeza de meu pobre coração, a única parte que se conservou nobre em minha carcaça terrena, e isso percebi assim que a sua sombra assomou àquela porta, antes mesmo de você abri-la, antes mesmo que a empurrasse para poder entrar. Mas, por não confiar em ninguém, nem em mim mesmo, é que tenho uma garrucha apontada para os seus testículos, por baixo da mesa, somente para me certificar de que me ouvirá até o final desse relato.

Foi na taverna da velha Haqub, sim, esta mesma, aqui em Dw Revhs, minha terra natal, portanto, não precisei me afastar nem uma légua sequer de onde tinha sido parido, que encontrei o monge Aled, nascido Alesh Baumdt, da ordem dos espagírios, reconhecidamente os mais competentes alquimistas dessas terras aquém dos montes Thel-el-Rhw. Esse abnegado monge, o qual dignifica a sua ordem pela humildade que demonstra no trato com os desvalidos, e que comigo (com o meu drama particular) não foi indiferente. E sem que eu tivesse pedido a sua intervenção, ele veio até mim e, sentindo-se pela compaixão tão desgraçado quanto eu mesmo, ofereceu-se para esclarecer a mim o meu fado, sobre fatos posteriores e anteriores do meu próprio destino, fatos esses que somente por mim mesmo eu não conseguiria compreender, devido à sua magnitude. Pois, foi ele, o bom monge Aled, que, para mim, deslindou a condenação (digo condenação em seu senso mais estrito, exato, de perversão, corrupção, devassidão) de presenciar a fecundação de uma virgem por essa criatura caprichosa, o unicórnio. Esclareceu-me o bendito monge, que Deus o tenha (mesmo que ainda não esteja morto, que Deus o tenha sempre!), sobre as implicações místico-filosóficas do unicórnio, o qual é citado nas mais antigas escrituras da humanidade, inclusive na própria Bíblia Sagrada, o proclamado Livro dos Livros, algumas vezes, na tradução autorizada do rei Meijer-ub, sendo a mais evidente em Números, no capítulo 23, versículo 22, nas profecias de Balaão: “Deus vos tirou do Egito; as suas forças são como as do unicórnio”. Você percebe, é capaz de perceber, o peso dessa pequena, dessa ínfima oração? Não, não é, ninguém nunca será, a não ser os malditos, aqueles que tiveram a desdita de erguer o véu e presenciar a fecundação de uma virgem, aliás, da Virgem, a Nossa Senhora dos cristãos. E, aqui, persigno-me três vezes! Sim, é isso mesmo, confirmo diante dos seus olhos embasbacados! Em muitas civilizações daquilo que hoje conhecemos por Oriente, a que os nossos antigos antepassados, principalmente os citas, esse povo habitante das estepes, se referiam como Ocidente, sim, já para esses povos da mais remota antiguidade, o unicórnio era a representação do arcanjo Gabriel dos cristãos primitivos. Os citas deixaram em seus túmulos, conhecidos por cúrgãs, inscrições sobre o unicórnio. Talvez possamos dizer, no plural, unicórnios, posto que em tempo tão longínquo houvesse mais, muito mais, unicórnios correndo sobre a terra, sobre uma terra que ainda manava, inocentemente, mel das suas entranhas... Ora, que digo eu, a quem estou querendo enganar? A mim mesmo?! Estaria eu blasfemando? De repente, vi-me como o descrente que tenta, para sua comodidade, minimizar a importância dos seres sobrenaturais pela própria incapacidade de realizá-los divinos. Não, não, o unicórnio é um só, um único ser que, de tempos em tempos, desce à terra para fecundar uma virgem, a Virgem sagrada de um determinado tempo, de uma determinada civilização, de um povo predestinado. Devo deixar claro que o que estou lhe contando a mim foi transmitido, em sigilo, pelo monge Aled, e que esse segredo somente pode ser compartilhado com outro eleito, o qual vem a ser então você. E que eu tudo esquecerei assim que você estiver de posse, em toda plenitude, do mistério do unicórnio. Eu, em verdade, não poderia saber de nada disso somente por mim mesmo, pois nunca me foi permitido ir além das imediações de Nusredmtap-sul. Abençoado monge Aled!

Com a sua chegada, eu me libertarei de tudo isso e de mim mesmo, pois você passará a ser, então, o depositário do mistério e tudo o que ele implica, ou seja, deixa-me lhe contar tudo que sei logo de uma vez, pois não vejo a hora de me libertar de tudo isso: que o unicórnio é cego, usando o chifre para se orientar e que é também através do chifre que ele fecunda a Virgem. Descobrirá também que, apesar de todas as representações pictóricas que o homem já realizou do unicórnio, ele não tem rabo de cavalo, mas de leão, sendo todo o restante da sua figura tal e qual a de um equino, de pelagem mais branca que o mais puro branco dos brancos, a qual se tinge de acordo com as várias cores cambiantes da lua, as várias tonalidades que a lua toma durante o trajeto da noite. Assim como você, eu sonhava ser um cavaleiro, como todos os jovens sonham, mas do Destino ninguém foge. Bem que tentei manter-me puro, mas a cada tentativa eu afundava mais e mais no vício, na vida desregrada. Estou lhe contando tudo isso para que você não incorra nos mesmos erros, para que você tenha sempre em mente que o homem não cria nada que já não esteja criado. Sim, eu sei quanto isto é terrível, é mais pesado até que a própria carga que se carrega por ter sido um escolhido. Sim, somos escolhidos e a rebeldia só lhe trará o sentimento de falência espiritual durante toda essa existência e, talvez, além. Sim, reconheço, fui fraco, sou um fraco, nem mesmo sei por que fui um dos escolhidos se me sabiam fraco.

Não se assuste com o obscurecimento da taverna, nem se volte para trás agora, a tradicional dança dos esqueletos teve início. São as ossadas daqueles que, era após era, se acovardaram diante da missão, é por causa deles, e de mim mesmo, mas muito mais do próprio homem, que a evolução da humanidade, como um todo, se arrasta. Devido a esse acovardamento, desde o início dos tempos ditos quiméricos, teve origem a guerra, sim, porque é uma única guerra desde a origem do homem, toda a pretensa paz é somente a baixa-mar que antecede a preamar. Os esqueletos estão batendo os ossos, mas não olhe, não se volte para olhar! Para o bem da humanidade, não olhe, vença os seus impulsos. Você é a esperança, a última esperança, mais uma vez os deuses concederam a chance de a humanidade se libertar da sua teimosia e, justamente por isso, nós, os servos do unicórnio, estamos de volta à terra. Eu logo retornarei ao seio das estrelas, assim como os nossos irmãos ora esqueletos que dançam a dança do desespero, e você, em absoluta solidão, dará início a mais uma tentativa. Não pense que a culpa de um possível fracasso será sua, ou somente sua, os homens têm mormente a grande parcela de culpa, a qual não será dissipada enquanto eles insistirem em erguer os olhos para o céu em busca da divindade, sendo que a divindade que tão atabalhoadamente buscam habita em seus insensíveis corações. E talvez não se possa mais dizer “seus corações”, mas, sim, um único coração, pulsando por todo o universo conhecido e desconhecido por todo o tempo dos tempos. Quando o homem compreenderá que aquilo que ele percebe como separado, dissociado, isolado, é verdadeiramente uno? E que há um só coração? Aquilo que ofende um homem, ofende a todos, indiscriminadamente.

Eu deveria ter sido o último rebento do unicórnio, mas falhei também, sim, como aqueles que me antecederam eu também fraquejei, e quis o Universo longânime que o homem tivesse mais uma chance, a derradeira. E você é a encarnação desta chance. Assim como eu, e todos os que o antecederam, você presenciará à sua própria fecundação, e isso é soerguer o véu da criação primeva, de quando o mundo em ebulição ainda gemia na ilusão do caos original. Digo isso na intenção de auxiliá-lo no seu percurso, pois a mim foi concedido o privilégio dessa revelação tão íntima a todos que nos antecederam, posto que você, assim eu deduzo, é a âncora das virtudes teologais. Então, devo lhe revelar que quando eu tinha a idade do bezerro da estepe, conforme o calendário primitivo do nosso povo, estava perambulando pela pouco frequentada estrada de Nzrudth, covil de degenerados, ladrões e prostitutas, que leva ao extremo sul de Nusredmtap, quando, em meio ao caminho, deparei com uma floresta espessa, cuja exígua entrada era inteiramente ornada de lírios-do-brejo, de uma luminosidade, para mim, inédita. De um branco que ofuscava, ainda que à luz do fraco e tímido sol de inverno.

Com a imprudência típica da pouca idade, essa qualidade que, nos verdes anos, nos arrasta ao abismo das percepções invulgares, do qual não se volta sem marcas, sem as marcas profundas da experiência indesejada, adentrei aquele inusitado portal de cardamomos e segui, confiante, por uma estrada estreita que logo adiante dava em uma bifurcação, tendo que escolher entre dois caminhos: à esquerda ou à direita. Minha natureza fez-me optar pelo menos trilhado, o da esquerda tomado por espinheiros, os espinhos negros que rasgam, além da roupa, a carne, envenenando o sangue para sempre. Esfarrapado e ensanguentado, dei, de repente, em uma clareira circular, que se assemelhava a um jardim. No centro, flores desconhecidas, de perfumes inebriantes, as quais eu não saberia, mesmo hoje, dizer-lhes os nomes. Um regato de água cristalina murmurejava em consonância com uma música que a tudo permeava. Nesse momento, tudo estava em harmonia, aliás, era a própria inteligência do universo-ilha em paz consigo mesma. Sob uma frondosa e retorcida figueira, cujos frutos pendiam, como brincos verdes, grávidos de si mesmos, das orelhas vegetais da árvore sagrada, encontrava-se sentada sobre um coxim de rico veludo escarlate, cravejado de brilhantes, uma formosa donzela, como jamais eu vira, de beleza tão divinal, tão casta, de olhos que sorriam, traduzindo o que os lábios não ousavam expressar. Sua virgindade... chegava a ser pecado contemplá-la por tanto tempo, muito embora não tivesse forças para dela desviar o olhar. Eu tinha consciência de que era o único espectador do drama que ali se desenrolaria, para o qual eu não poderia jamais ser convidado. Não precisei esperar muito, embora não fizesse questão de presenciar outra cena além da beleza majestática daquele ser diáfano, luz de incandescência para o meu coração ávido de experiências inusitadas, como são os corações dos jovens criados em aldeias perdidas nos ermos da terra, aleitados pelo temor atrativo do macabro desde o berço. Então, eu ouvi as trombetas azuis dos anjos do Senhor anunciando a entrada em cena do ator principal, um ser superior a todos os outros seres dos bosques. Um toque curto, logo seguido por três outros toques que se prolongaram indefinidamente, de uma suavidade que nenhum instrumento terrestre será capaz de reproduzir. Eis que surge, então, galhardamente, o garboso unicórnio. Sim, o unicórnio das esferas, esse ser sonhado e jamais sequer entrevisto pelo homem comum, e mesmo pelos poetas que tão maviosamente o cantam sem jamais tê-lo visto. Todos os relatos já feitos sobre unicórnios, sejam em prosa, ou nos versos dos mais reputados trovadores itinerantes, mesmo os da Provença, não dão a mais pálida conta da beleza dessa formidável criatura. Eu ali, embora aterrado, admirava a cena. Como se a minha presença fosse para eles invisível, presenciei o que jamais deveria ter presenciado: a fecundação da donzela pelo enviado dos Céus, o unicórnio das lendas camponesas ancestrais. Oh, quão angustiante, a minha própria concepção! Asseguro-lhe que por mais que eu tentasse descrevê-la, as palavras que o erudito dispõe não seriam suficientes para dar uma pálida amostra dessa experiência. Talvez isso fosse possível para o poeta que, tendo já enlouquecido, que tendo perdido totalmente a razão, fizesse uso irresponsável das palavras, sem preocupação com o sentido mundano que elas possam ter.

Saí dali muito tempo depois, quando a tarde ia já avançada, andando às tontas,atordoado, inebriado por um licor natural que brotasse dos mamilos das folhas e que delas eu o tivesse sorvido, sofregamente, como o recém-nascido suga o leite do seio materno, irresponsavelmente. Tropecei nas pedras, em pedras mínimas que normalmente seriam por mim calcadas sob as solas de minhas botinas. Assemelhavam-se agora as pedras a montanhas que obstruíssem meu caminho de retorno. Pouco me importava para onde estava indo, pouco me preocupava voltar para o convívio dos homens, eu já me sabia epifânico, alguém que presenciara algo muito além daquilo que os homens poderão, um dia, compreender. Os homens sabem que não lhes é lícito desvendar os desígnios de Deus, mas insistem, tanto pedem, tanto suplicam por essa experiência que o Altíssimo, finalmente, em sua infinita misericórdia, lhes concede um vislumbre dos reinos superiores, dos reinos que os homens julgam os mais superiores, muito embora existam outros planos mais, que vão além, muito além de toda a compreensão que se tem ou terá daquilo que ora entendemos como o coração palpitante do Universo, seja lá o que isso queira dizer. Mas por que eu, meu Deus, grande Deus de Balaão? Logo eu, que sou fraco, o mais fraco entre os fracos...

Assim, segui, trôpego, indiferente a tudo, indiferente à vida, à morte, sorte ou azar, até que lentamente fui desmaiando, esmaecendo-me diante de mim mesmo. A audição, o último sentido que adormece, trazia a mim, a distância, os sinos argentinos do templo da aldeia, embora o templo ainda não tivesse sido construído. Despertei dias depois, ardendo em febre, trêmulo, lábios rachados, na choupana de meus avós. Desesperados, eles não sabiam mais o que fazer para trazer-me de volta ao convívio dos vivos. Davam-me já como morto, vítima de um terrível sortilégio. As vozes distantes dos dois velhos em oração, o valhacouto de que tanto necessitava, e ao qual me agarrei com as forças que me restavam, miseravelmente o náufrago de mim mesmo, trouxe-me de volta a um mundo pelo qual eu não morria de amores, mas que era o único que me dava conforto, talvez por ser o único que eu realmente compreendia: o mundo desprezível das paixões humanas. Quando abri os olhos, os dois velhos não puderam conter a lamuriosa exclamação de espanto, usada somente para os que ressuscitam de entre os mortos, não deixando de perceber a senilidade precoce em meus olhos, a nuvem mortiça que agora já os recobria. Este era o sinal: eu atravessara a tênue fronteira. Calaram-se, de nada adiantariam mais as suas orações. Ninguém mais ousaria me resgatar do abismo da noite eterna que, aos poucos, imperceptivelmente, foi tomando conta de todas as minhas mais ínfimas ações. Eu, agora, deveria errar dentro de mim mesmo, não ouviria mais o doce sussurro da voz interior, até a aparição do monge Aled. Foi este, então, o princípio da noite de trevas, a qual foi se instalando lenta, muito lentamente, dentro de mim. Como o homem se acostuma a tudo, até às piores dores, fui também a ela me acostumando, o que não impedia que tentasse dela me livrar afogando-me cada vez mais no lenitivo da embriaguez, na tentativa de extingui-la matando a mim mesmo. Ilusão, como o homem se apega às ilusões...

Por volta dos 30 anos, tudo se tornara escuridão em minha vida, pouco importava se o sol brilhava refulgente no firmamento ou se a Estrela do Pastor afastava a presença luciferiana da vida dos mortais, meus irmãos. Convivia eu com o sentimento inextinguível de que falhara em minha missão. Convivia eu com o sentimento da queda, o sentimento do “paraíso perdido” de Milton, algo por mim compreendido e que me acompanharia por toda a vida: um enorme corvo que jazesse pousado em meus ombros, a crocitar em meus ouvidos a ave endemoniada. Somente eu a percebia; meus amigos de copo, não sabiam dizer porquê, mas era evidente que sentiam-se amedrontados à minha aproximação. Apesar de tudo, permaneciam a meu lado, atraídos pela enorme desgraça que sobre mim se abatera e que, gradualmente, se avolumava – é sempre agradável e reconfortante aos corações submissos encontrar uma infelicidade maior que a sua. E isso os atraía para junto de mim, eu bem o sabia, mas eram as únicas almas que de mim se aproximavam, e eu lhes era grato. Não preciso dizer que, nessas ocasiões, em que os derrotados se agarravam em meus braços, às abas do meu casaco, o álcool era servido sem parcimônia, à larga, como jorrasse aos borbotões de uma fonte inesgotável. E eu me locupletava, embebedando-me do pior vinho, o mais acre, como se fosse champanhe, para tudo esquecer, para não lembrar o que de mais sublime me fora confiado. Qual o quê, quanto mais eu bebia, mais o pássaro agourento se agigantava e fincava as garras sequiosas em meu coração exangue; era o corvo o senhor do que ainda pudesse restar de nobreza em meu coração. Eu era, já então, precocemente, um velho desgraçado à espera de que você chegasse para que pudesse, assim, me libertar, outorgando-lhe a missão divina de libertar a humanidade dos liames que ela própria criou para si. Ah, e como você demorou a chegar! Preciso me libertar dessa névoa pesada que me cerca, a qual você ainda não está apto a perceber. Preciso que você me livre desse sentimento de falência. Só você pode me libertar, aceitando carregar esse fardo que a mim já não pode pertencer, pois encontro-me fraco demais para carregá-lo. Sim, fui fraco, reconheço-me fraco, já nasci fraco. Ouve a minha súplica, desconhecido há tanto tempo esperado, livra-me do peso dessas asas negras que insistem em adejar à minha volta, ao meu redor, o tempo todo, na noite sempiterna, intermitentes essas asas de um demônio que não vejo, mas pressinto, sinto-lhe o bafejar em minha nuca. Devo alertá-lo de que você pode recusar essa missão assaz espinhosa, pois que somos escolhidos e não enviados. Você é forte, tenho certeza, não sucumbirá como todos os outros!

Como aquele que imediatamente o antecede, tenho a obrigação de lhe esclarecer, sendo você a última esperança da humanidade imersa em trevas e libertinagem, de que, quando for a ocasião de sua entrada na floresta dos confins de Nusredmtap ,não se deixe encantar pela beleza desnuda da Virgem e quando as trombetas soarem, feche os olhos e tampe seus ouvidos com a cera de abelha que levará consigo, tenha-a sempre à mão de agora em diante. Deve estar, desde já, preparado. Lembre-se sempre dessa advertência, pois não se sabe em que momento a ocasião se apresentará, pode ser agora mesmo ou daqui a seis mil anos. Sim, seis mil anos ou mais, o tempo é uma invenção do homem. Para os sobrenaturais, essa aberração temporal não significa nada, absolutamente nada. Quando o homem se tornou definitivamente materialista, ele quis medir o tempo, a partir de conceitos arbitrários. Assim, julgou-se maior que o Criador. Nossa sociedade atual se pauta pelo tempo, pensando que o domina, que domina o negror da noite e o claridão do dia, utilizando-se de artifícios como horas, minutos, segundos. Mundo de irrealidades! Insisto, jamais abra os olhos durante a fecundação da Virgem, pois estará presenciando o exato momento em que você foi ou será concebido. E esta é a grande maldição! Nenhum de nós, os escolhidos, deve presenciar o momento da nossa concepção. Jamais! A nenhum dos escolhidos foi isso antes revelado mas, como você é o último dessa linhagem, eu tive permissão de lhe adiantar este arcano da autodestruição. Agora, estou liberto! Espero que você não falhe...

– O que há, Rualmstaff, já bebeste o juízo, homem? Falaste pelos cotovelos, como uma mulher desesperada, desde que aqui entrei! Que negócio é esse de unicórnio e de escolhidos? Hahahaha! Haqub, uma caneca de vinho quente. E bem quente! Duas! Uma aqui para o meu camarada Rualmstaff! Hahahaha, o que te falta é um pouco mais do vinho do discernimento, meu velho.

–Vai, conta mais uma das tuas histórias extravagantes, Rualmstaff! São boas para passar o tempo... – disse alguém da mesa ao lado, enquanto, lá fora, a chuva caía torrencialmente.

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