quarta-feira, 8 de abril de 2015

TARZAN DEPOIS DA GRIPE


Edson Negromonte

O interesse pela cultura popular, de massa, tem me proporcionado encontros inusitados. Acho que ao se debruçar sobre um autor estrangeiro, aparentemente distante da nossa realidade, deve-se averiguar também a influência que os personagens por ele criados têm sobre a cultura de nosso país. Assim, por exemplo, no final de um longo texto sobre Edgar Allan Poe, pode-se demonstrar que a obra-prima “O Corvo” também abre, de tempos em tempos, as imensas asas negras sobre a cultura local, mormente na música brasileira, indo do compositor Belchior e a cantora Elis Regina à dupla caipira Conde e Drácula, entre tantos outros letristas que se apoderaram mesmo sem saber do bordão nunca mais. Como uma coisa puxa outra, também o famoso conde, imortalizado por Bram Stoker no romance “Drácula”, já deu muito sangue ao nosso banco cultural: literatura, quadrinhos, cinema, TV e, inclusive, à indústria alimentícia, a qual teve a ousadia de lançar nos anos 70 um picolé de casca preta de chocolate e recheio vermelho, de morango. Sem a pretensão de esgotar a influência vampírica, a criação stokeriana também já cravou os dentes pontiagudos em Rita Lee, paixão que ela poeticamente traduziu na canção “Doce Vampiro”, sem esquecer o nietzschiano Jorge Mautner, que nos brindou com “O Vampiro”, além do insólito “Vampiro Doidão”, na voz do humorista Jô Soares, entre tantos outros que seria cansativo enumerar. Em tempo, não poderia deixar de citar “Vampiros Modernos”, de Ivan Lins e Vitor Martins, “Vampiro Mordido”, de Rogério Skylab, e “Dracula, I Love You”, da compositora Tuca, mais o poema concreto “Viventes e Vampiros”, de Augusto de Campos, musicado por Cid Campos. Como uma coisa puxa outra: “Frankenstein, o Prometeu Moderno”, de Mary Shelley, deu a Noel Rosa, na clássica briga com Wilson Batista, o apelido de “frankstein da vila”, por causa de um defeito no queixo, decorrente do uso do fórceps na hora do parto. Mas este texto também não deve se demorar em criaturas feitas a partir de corpos alheios. Fica para outra ocasião. A influência do cinema, além de vasta, é muito antiga na cultura brazuca, fato que vem a ser comprovado pela cançoneta “Matuto no Cinema”, de autoria de Aristarco Dias Brandão, gravada provavelmente entre os anos remotos de 1913 a 1918. É do genial compositor Heitor dos Prazeres o samba “Depois do Cinema Falado”, lançado entre 1936 e 1937. Ao mesmo tempo, também Noel, falecido em 1937, faz a sua reclamação sobre o advento do cinema sonoro, o qual estaria modificando o linguajar do malandro, em “Não Tem Tradução”, gravado pela primeira vez por Araci de Almeida, em 1950.

Depois deste “esclarecedor” preâmbulo, vamos ao que realmente interessa: Noel, apaixonado pela sétima arte, compôs, com Vadico, “Tarzan, o Filho do Alfaiate”, samba originalmente gravado por Almirante, em 1936, e mais recentemente por Djavan, Pedro Mariano e Cida Moreira, no qual tira sarro da própria figura esquálida e feiosa, em comparação à do rei das selvas. O cinema brasileiro providenciaria um dos títulos mais curiosos da saga nacional do homem-macaco, a pornochanchada “Tarzann, o Bonitão Sexy”, em 1977, sob a direção de Nilo Machado, sem esquecer o clássico “Jecão... Um Fofoqueiro no Céu”, película na qual Mazzaropi encontra o herói no plano astral. No ano seguinte, os Originais do Samba lançariam o sucesso “Aniversário do Tarzan”. A música brasileira é mesmo pródiga em referências ao personagem, incluindo a new wave oitentista da Gang 90 & Absurdetes, “Perdidos na Selva”, citando a tão famosa e nunca dita me Tarzan you Jane. A Gang 90 ainda aprontaria mais uma, ao citar o rei dos macacos na irreverente letra da canção “Será que o King-Kong é Macaca?”, para a trilha do musical infantil “Plunct Plact Zum”. No teatro, há a peça vanguardista de José Agripino de Paula, “Tarzan Terceiro Mundo – O Mustang Hibernado”. Como se não bastasse, não poderia deixar passar em branco a capa do primeiro disco solo de Raul Seixas, cujo título é “Krig-ha, bandolo!”, o grito de guerra dos grandes macacos. A paixão pela soberba criação de Edgar Rice Burroughs levou-me então a um inusitado encontro.

Sabedor do meu interesse pelo homem-macaco, um amigo, técnico em eletrônica, e igualmente curtidor das aventuras do Lorde Greystoke, trouxe-me, um dia, a agradável notícia de que na cidade onde morávamos, no interior paulista, vivia um pacato comerciante que atuara num filme aparentemente desconhecido, no qual interpretava o papel principal. Surpreso e ansioso, saí em busca da veracidade da informação. Primeiro, para minha decepção, consultei “Kings of the Jungle”, é claro, a bíblia do assunto, o qual se atém somente à produção norte-americana. Decidido, saí em busca do Tarzan tupiniquim. No endereço indicado, à Rua Dr. Torres Neves, encontrei um estabelecimento comercial, no qual entrei como um cliente qualquer em busca de uma mercadoria, averiguando, sondando o terreno onde estava pisando. À primeira vista, pensei se tratar de uma loja de discos de vinil. Enquanto ia puxando os discos, eu relanceava os olhos e aguçava os ouvidos para perceber fiapos de conversa que me dariam chance, num primeiro momento, de puxar conversa. Nessas ocasiões é de bom alvitre agir com cautela, cada movimento deve ser milimetricamente calculado, como diria o Chapolim Colorado. No balcão em frente à porta, vários fardos de papel higiênico. Ao lado, sacos de ração para cães e gatos, e instrumentos musicais. Não pense você, incauto leitor, que se tratava de um armazém, como os de antigamente, onde se encontrava de tudo, desde botões e alfinetes até mantas de charque e bacalhau penduradas à porta. Não, não era. Ali, havia somente discos usados, papel higiênico, ração, um pandeiro e um violão. Intrigado, dando asas à imaginação, caraminholava as mais estapafúrdias hipóteses de como o rei dos macacos viera parar numa casa comercial tão intrigante. Definitivamente, não era mesmo um armazém. Quando muito, um humilde ganha-pão. Enquanto eu examinava os discos, para verificar a profundidade de possíveis arranhões, sentia cravados em mim os olhos do balconista. Peguei três elepês e me dirigi ao balcão: Nancy Sinatra, Fleetwood Mac e a trilha sonora de “Sem Destino”, todos em perfeito estado. Detrás do balcão, refestelada numa confortável poltrona, uma gorda senhora, a suposta mãe do proprietário, tricotava alguma coisa, talvez um cachecol. Ao chegar ao balcão, fui recebido por um galalau de quase dois metros de altura, que lembrou-me imediatamente Lex Barker: alto, quarenta e poucos anos, loiro oxigenado, e um físico que um dia fora atlético. Entabulamos uma conversa sobre os graves do vinil, que a tecnologia do CD não conseguia recuperar, o manuseio dos bolachões, as capas como obra de arte etc. Quando o papo já se tornara amigável, inopinadamente perguntei-lhe o nome.

– Tahan, Jamil Omar Tahan.
– Por acaso, você é o Tarzan?...

Surpreso, empertigou-se.

– Tarzan? Como você sabe disso?

Contei-lhe então da importância do seu filme para as minhas pesquisas, o qual não constava nem em “Kings of the Jungle”.

– Qual o nome do diretor?
– Ih, sabe que não lembro mais? – disse ele, reticente. – Na verdade, é um tempo da minha vida que faço questão de esquecer.
– Por quê?
– Sofri muito com isso. É verdade. Acho que o diretor era paraguaio ou argentino. Acho que era paraguaio... Olha, o filme foi feito no Paraguai, fomos presos... Tempos difíceis, o país vivia a ditadura. A soldadesca, quando viu a gente, cheio de equipamento, num jipe, tudo cabeludo, achou que era terrorista. Foi todo mundo em cana... Veja só, os outros saíram no mesmo dia, eu amarguei uns dois meses na xadrez, sem ninguém procurar por mim, nem diretor, nem os atores. Logo eu, o astro principal. Não me pergunte por que, de uma hora para outra, fui posto em liberdade. Fui torturado... – disse, com uma careta, apontando disfarçadamente para os testículos. Ouviu-se uma tosse no recinto, coisa que fez Jamil se calar. Olhei de esguelha para a velha senhora refestelada na poltrona, visivelmente contrariada. Achei melhor deixar a conversa para ocasião mais propícia, quando a velha senhora não estivesse presente. No dia seguinte, para minha alegria, encontrei Tahan sozinho, por volta das onze horas da manhã. Talvez a sua vigilante mãe estivesse preparando o almoço nos fundos da casa, assim supus. Para ganhar a sua confiança, escolhi mais alguns discos e um saco de ração para gatos, embora nesse tempo Brenda ainda não tivesse me adotado.

– Sobre aquele assunto...
– Pois é, ontem tive que me calar, minha mãe ainda tem muito medo de tudo isso, sabe, até hoje não me recuperei completamente. Sabe como são as mães, né?

Assenti com a cabeça. Sem que eu pedisse, ele desandou a falar, apreensivo, olhando para os lados.

– Sabe, eu nunca vi esse filme, nem sei se foi exibido.
– Passou no SBT... – disse eu.
– Você viu?!
– Não, um amigo me contou.
– Pois é, não é a primeira pessoa que me fala isso. Esse filme é um mistério até para mim. Se ele existe, se você conseguir descobrir alguma coisa, conte somente para mim, quando minha mãe não estiver por perto, sabe, a gente se afastou de tudo isso, dos holofotes, da glória, agora somos evangélicos, crentes, como dizem, não assistimos mais televisão, nossa vida pertence agora ao Senhor...

Um leve ruído, vindo da cozinha, fez com que Tahan se calasse repentinamente. Calei-me também, num acordo tácito. Tarzan estendeu-me a gigantesca manopla, em despedida, a minha mão perdeu-se naquela barafunda de dedos que, um dia, tinham acariciado os cabelos de Jane ou os pelos da Chita, sei lá. Até hoje não consegui encontrar mais um rastro sequer do Tarzan paraguaio. Ou argentino? Saí dali confuso, com o corte brusco, como se a fita houvesse arrebentado no meio da sessão.

- Vá com Deus! – disse em alto e bom som o mais obscuro Tarzan de todos os tempos.

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