quarta-feira, 24 de junho de 2015

DR. WELLINGTON



Edson Negromonte

Essa é do tempo em que o trem era o principal meio de transporte da grande maioria dos habitantes do País. Para os pobres havia a classe econômica e, para os ricos, os vagões especiais da primeira classe, com grande luxo e conforto; enquanto os pobres viajavam em bancos de madeira, no toco-duro, como se dizia então. Mesmo na estação, a diferença de classes sociais era nítida, não só pelas vestimentas, mas principalmente pelo movimento daqueles que iam embarcar: enquanto os pobres se acotovelavam, falavam alto, puxavam as orelhas das crianças, os ricos mantinham-se à parte, falando baixo, rindo baixo e olhando por baixo de suas lentes, com desdém e reprovação, para os seus “irmãos” desfavorecidos pela sorte. Mas quanta vida naquele ajuntamento de gente pobre que nem bem o trem chegava, já ia se despedindo dos parentes, cheios de recomendações. No meio dessa gente simples, sem grandes aspirações, o cotidiano já era um fardo sobremaneira pesado, é que doutor Wellington sentia-se satisfeito, participando das conversas, mais escutando que falando, estar com o populacho lhe fazia feliz. Deliciava-se com essa gente pequena, de sonhos pequenos; gente miúda, capaz de gestos os mais nobres, mas também de pequenezas as mais sórdidas. Dr. Wellington nunca fizera questão de enriquecer com a medicina, e bem que poderia, como todos os seus colegas tinham feito. Não via torpeza nisso, mas não era essa a sua índole. Era, ali, em meio ao bodum dos homens e do talco Palmolive das mulheres que ele podia fumar tranquilamente o seu cigarrinho de palha, sem a recriminação dos olfatos sensíveis. Junto com o bom médico, em visita à capital, ia sua esposa Cinira: alma boa, benfeitora dos pobres, a companheira ideal daquele homem que levava o juramento de Hipócrates ao pé da letra. Junto à arraia-miúda é que sentiam-se em casa.

Dr. Wellington era pequeno, de baixa estatura, os cabelos brancos, revoltos, nariz aquilino, um tipo franzino, gostava de contar casos, que dizia verídicos, tendo como ponto final uma espécie de grasnado, à guisa de risada, arrematado por um curto acesso de tosse. Seu amor pela medicina, aliás, pelos doentes e a consequente cura, não o fizera rico, mas também não se podia dizer que vivesse mal, bastava-lhe o necessário a uma vida honesta e prazenteira. Quando o homem é capaz de ir abrindo mão, ao longo da vida, dos supérfluos que a sociedade de consumo inventa para lhe aprisionar cada vez mais, ele sabe que está no caminho certo para a felicidade. Não tinha nenhum apreço em subir a serra de automóvel (não que tivesse um, mas sempre havia quem lhe oferecesse carona), gostava mesmo era de ir de trem, onde desfrutava da companhia daquele a quem se dedicava de corpo e alma: o homem do povo, essa abstração para os intelectuais de gabinete, mas não para ele. Para ele, o homem do povo era tangível, palpável, uma realidade indiscutível. Dr. Wellington era clínico-geral, toda a população de Torres do Pilar o queria bem. À sua passagem, o saudavam: Doutor! Doutor! Dava com a mão, sorrindo, e seguia caminho, com a inseparável maleta preta.

A viagem transcorria dentro da normalidade, os solavancos habituais, os vagões jogando de lá e para cá, de cá para lá, alternada e harmonicamente, como em um jogo infantil, puxados pela maria-fumaça, que ia resfolegando serra acima, o apito soando estrepitoso a cada curva, ostentoso a cada estação... Foi, então, que, na estação de Pedro Torres, entrou uma senhora com os bofes virados, ralhando e levando pelo braço um piá de aproximadamente cinco anos. Mas o que realmente chamava atenção não era o mau humor da mulher, que gente azeda tem em todo lugar, a qualquer hora do dia ou da noite, era mesmo a cabeça do menino, toda envolta em gaze. Era gaze sobre gaze, camada sobre camada, sem uma brecha sequer, por menor que fosse, que deixasse adivinhar a cor do cabelo da criatura. As crianças têm, por natureza, a cabeça grande em relação ao corpo, mas a daquele menino era enorme, descomunal. E a gaze, branca, só fazia torná-lo quase uma aberração; a mãe, preocupada em não chamar atenção para o defeito da criança, acabara transformando o filho em uma atração circense, um projeto de múmia, uma espécie de homem-elefante. O que mais constrangia as pessoas era um calombo do lado direito da cabeça do menino, um único e protuberante calombo qual se projetava como um bulbo, o tubérculo de uma batata inglesa. Podia-se perceber dó e curiosidade, um misto de culpa cristã, nas faces dos passageiros comovidos. Apesar disso, de todo sofrimento, o menino era de uma vivacidade a toda prova: os olhos dele não tinham parada. Ao lado da mãe, seguro pelo braço, permanecia quieto, a contragosto, com o ombro erguido e parecia que, a qualquer momento, saltaria inopinadamente para o corredor, como um boneco de engonço. As sardas, os lábios com um inexplicável ar de zombaria, os irrequietos olhos azuis eram a comprovação de que as crianças, por mais doentes ou defeituosas que sejam, estão sempre dispostas à vida. Nelas, graças a Deus, a energia vital se manifesta em toda plenitude. As crianças doentes transbordam essa energia, sensibilizando os que estão à sua volta, arrancando sorrisos comovidos. Nem o mais sisudo dos homens é capaz de não se comover com essa manifestação da natureza, sorrindo-lhe com os olhos, por cima do jornal. Aos poucos, as pessoas foram se acostumando com a presença do cabeçudo, o pequeno monstrinho já não era mais novidade; uns aproveitavam para retomar a leitura de um livro, outros admiravam a paisagem, mas a grande maioria aproveitava para cochilar, embalada pelo balanço da composição.

Quando menos se esperava, num solavanco do trem, o menino, de um pulo, qual mico de circo, liberta-se das garras da mãe. A mulher, desatinada, berra:

– Volte já aqui, moleque do Capeta!

O menino corre de uma ponta a outra do vagão, equilibrando como um malabarista a tremenda cabeçorra.

– Volte aqui, inferno! – brada a mãe.

E o menino nem aí. Puxa as tranças de uma mocinha, com uniforme de normalista, rouba o cachimbo de um senhor e tira umas baforadas antes de arremessá-lo de volta no colo do dono, imita galo cantando, galinha cacarejando, cachorro ganindo, o que de imediato causa risos em todos, coisa que irrita ainda mais a sua mãe. A mulher, desesperada, sai no encalço do filho, que agora pula de banco em banco, macaqueando e fazendo fusquinha para ela, mostrando a língua, até que o bagunceiro, num passo em falso, escorrega e cai no meio de dois bancos, virados de frente um para o outro. Ela, aproveitando-se desse momento, agarra-o pelo bracinho. A primeira coisa que a desalmada faz é desferir, com toda a força de que é capaz, um croque certeiro na cabeça da criança, que cambaleia. O barulho choco faz estremecer os presentes. Não satisfeita com o primeiro golpe, possuída, desfere outro, e outro, e mais outro, sendo que este último acerta justamente a protuberância da cabeça da criança. Com cara de grande dor física, a mulher leva-o pelo braço, sob uma avalanche de croques e socos, todos indefectivelmente na cabeça, certeiros. O menino tonteia, cambaleia, oscila, balança, em evidente desequilíbrio, mas mesmo assim ri e faz caretas para a mãe. Botando a língua pra fora, ele imita sons de peido. A pobre criança parece sentir satisfação nisso, sorri a cada pancada.

– Ainda faz pernacchia, cachorro? – Toma. – Não saia mais daqui, senão eu te mato! – ameaça a mulher, arfante e chorosa, indiferente ao que pensassem dela.

Indignadas, as pessoas comentam entre si a tamanha violência a que tinham sido expostas, um teatro dos horrores.

– Na cabeça!
– Seja, na cabeça...
– Tadinho!

O menino ergue os olhos para a mãe, e sorri.

– Atentado, quer apanhar mais?

Então, Dr. Wellington, autoeleito o porta-voz da indignação dos passageiros, levanta-se.

– Minha senhora, como médico que sou, peço-lhe que não bata mais na cabeça dessa criança. Bata em qualquer outro lugar, na bunda... mas na cabeça, jamais. Nem em crianças sãs, deve-se bater na cabeça, aí estão os...
– Ah, o senhor está com pena dele, é? Deveria sentir pena é de mim! De mim, que aguento esse peste todos os dias!
– Minha senhora...

A mulher, botando fogo pelas ventas, começa a desenrolar a cabeça do filho.

– O que ela está fazendo?! – pergunta-se, curiosa, a plateia, perdão, os passageiros.
– Olhem, olhem bem, essa é a cabeça inchada, a cabeça deformada da pobre criança! Estão vendo, vejam bem, a cabeça dele está é entalada num penico. Ele tava pulando na cama e caiu de cabeça no penico. Ele não me dá um minuto de sossego. E eu é levando esse encapetado no hospital... Não fica quieto nem com um penico grudado na cabeça. O senhor acha que uma mãe merece isso? Peste! Peste, peste...

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