quarta-feira, 3 de junho de 2015

NA TAVERNA DA VELHA HAQUB 2 ou AS DUAS CRIANÇAS


Edson Negromonte

Quem via a velha Haqub, como a chamava toda a gente, como toda a gente passou a chamá-la de um tempo em diante, desgrenhada, rabugenta, por trás do balcão daquele lugar imundo, que nos acostumamos a chamar de taverna, disputando com os fregueses o título de “a boca mais suja do inferno”, é incapaz de imaginar a beldade que era, quando jovem. O que sempre me atraiu nela, além da beleza e do sexo fácil (mediante uma contribuição em moeda sonante, é claro, todo mundo precisa, de uma maneira ou outra, sobreviver), era a sua independência. Sempre tive um fraco por mulheres fortes, mulheres com voz de comando, de queixo proeminente, olhos duros, e Haqub, durante um bom tempo, significou isso tudo para mim, isto é, o porto seguro para o jovem grumete. Portanto, é meu dever contar uma passagem da história de nossa aldeia, a meu ver uma das mais inspiradoras, em que a jovem Haqub teve papel importante, considerado por mim um dos acontecimentos mais significativos dos anais de Dw Revhs. E tal história merece ser contada, se não pelo que ela carrega de ensinamentos para a vida, para os libertários do porvir, mas para enaltecer e registrar a importância dessa mulher, responsável pelos melhores momentos da minha juventude, carnais e espirituais. E de outros jovens, e mesmo de homens casados, eu bem o sei. E contrariando as leis naturais (e quem conhece realmente os meandros dessas leis?), depois que meus contemporâneos se foram, eu ainda estou vivo, no único intuito de registrar as passagens do meu povo, como um legado, para as novas gerações; um povo que não conhece e cultiva a própria história, está fadado ao engodo, e consequentemente a morder o anzol dos erros de seus antepassados. Portanto, dou aqui continuidade à minha missão.

Quando as duas crianças surgiram na aldeia era uma daquelas manhãs geladas que há muito tempo não fazem mais, emolduradas pelas emanações miasmáticas dos pântanos ao redor. Não se tinha a mínima ideia de onde vinham os dois pequenos, abraçados, isto é, agarrados um ao outro, enrolados em um cobertor, se é que se pode chamar de coberta aquele trapo todo esburacado, incapaz de conter a ferocidade da umidade matinal da região. A gente da aldeia, num misto de piedade e superstição, não se aproximava deles, ficava olhando-os a distância, penalizada, como se fossem a encarnação de uma maldição tão antiga que já houvéssemos esquecido e que só agora, diante daquelas duas almas inocentes, entregues à própria sorte, ou azar, voltasse à nossa memória. Enquanto isso, as duas pequenas criaturas, uma loira, a outra morena, tentavam escapar da nossa curiosidade, essa loba feroz e esfaimada, capaz de arreganhar os dentes ao cordeiro indefeso, fechando com força os olhos remelentos.

Nenhum de nós dava um passo em direção às crianças, nem lhes dizia uma palavra. Resmungávamos, somente resmungávamos, muito mais temerosos que condoídos ante a infância ultrajada. Elas, as crianças, por sua vez, apertavam-se cada vez mais, naquele abraço estreito, que era a única arma que possuíam contra o desconhecido. Contra os desconhecidos. Até que Haqub, que ainda não era velha, portanto ainda não se tornara conhecida como a velha Haqub (e diga-se, a bem da verdade, à qual não posso faltar, ela era bem fornida de carnes e de uma beleza que lhe garantia o próprio sustento, e a seus pais também, é forçoso dizer), bem, até que a bela Haqub foi aproximando-se deles e lhes abriu o sorriso mais cândido, mais doce, mais maternal, até sensual, já visto em face humana. (Oh, qualquer homem seria passível de cometer uma loucura diante de um sorriso desses). Mas os pequenos não corresponderam, pelo contrário, abraçaram-se ainda mais forte, quase desaparecendo suas cabecinhas em meio aos corpos um do outro. Haqub, confiando em seus instintos femininos, passou primeiramente a mão na cabeça do menino loiro, o qual estremeceu, assustado. Depois, ela acariciou os cabelos negros do outro menino, que devolveu-lhe o gesto com um rosnado, olhando-a com olhos vermelhos, raivoso, em defesa do irmão e de si mesmo. Haqub (como era inteligente essa mulher!) estendeu-lhes, então, as costas da mão, para que as duas crianças a cheirassem e entendessem que ela não lhes faria mal, como se costumava fazer com os sofridos lobos, mas isso há muito tempo, quando os homens ainda não tinham empedernido totalmente seus corações.

Enquanto isso, permanecíamos todos ali parados, formando um semicírculo, como se assistíssemos a uma improvisada peça teatral, da qual éramos, ao mesmo tempo, público e personagens.

– O de cabelo preto parece o mais velho...
– É, sim, é o que defende o outro!
– São dois meninos, é? De onde será que vieram?
– Do céu é que não foi!
– Vai ver foram deixados aqui por esses zÍgans desalmados... Vejam, a louca da Haqub os está abraçando!

Durante a nossa confabulação, Haqub os trouxera de encontro aos seus seios fartos e róseos, e sempre acolhedores, como devem ser os seios da Grande Mãe: fartos e róseos e acolhedores. Além do mais, os de Haqub eram perfumados, os únicos seios perfumados de toda a aldeia. Eu bem o sei, guardo ainda hoje comigo, em minhas narinas, na memória de minhas células, o cheiro adocicado dos seios da Haqub, a minha Haqub. Ficaram tempo, um longo tempo nesse abraço, o abraço estreito, terrenal, que, com certeza, a natureza acolhe os seus filhos degredados. A multidão, se é que o ajuntamento dos habitantes da nossa aldeia podia ser chamado assim, de multidão, parecia embevecida com cena tão comovente; “a galinha e seus pintinhos”, sussurrou maldosamente um de nós. Estávamos realmente tocados (eu mais que todos), com tudo isso acontecendo já assim pelo início da manhã, quando nos preparávamos para mais um dia ordinário de trabalho na lavoura ou nas forjas. Em nossa aldeia era assim: quem não trabalhava no campo, fabricava ferramentas para a agricultura. (Muito tempo depois, é que descobrimos como forjar as melhores espadas e isso foi o início da nossa ruína). Portanto, quando algo nos tirava da rotina, era sempre bem-vindo.

– Eu bem ouvi essa madrugada o rodar de carroças pela estrada próxima do pântano de Tzarevhs.
– Ora, e como é que eu que moro mais próximo do pântano, não ouvi nada?
– E como querias ouvir algo além dos teus próprios roncos, se eu os escuto de minha casa?

Foi, então, que Haqub ergueu-se do degrau da fonte central (Para que dizer “fonte central” se era a única que havia na aldeia?), onde estivera ajoelhada, abraçada às duas crianças. Uma delas, estava envolta em seu xale, e a outra enrolada em seu casaco de lã. Já não tremiam tanto os dois pequerruchos (eu sempre quis, perdão, como cronista oficial das terras de Dw Revhs usar esta palavra e não poderia perder a ocasião). E nem mesmo a Haqub tremia, embora estivesse com os ombros desnudos (Ah, essa Haqub levava os meus versos e as minhas economias!).

– Essas duas crianças foram abandonadas em nossa aldeia, em nossas portas, e precisam de um lar! – exclamou a Haqub.

Entreolhamo-nos, balançando as cabeças. Negativamente, é óbvio. Se a vida já estava difícil com o pouco que tínhamos, imagine sustentar mais duas bocas? E todo mundo sabe o quanto uma criança come, imagine duas. Essas crianças cresceriam e se tornariam ainda mais famintas, todos sabem, e se não sabem, deveriam saber, que criança em fase de crescimento, come muito mais que dois adultos. E se nos compadecêssemos, logo, nessa batida, os zígans estariam desovando todas as suas crias às nossas portas, sem mais nem por quê. Após um tempo de falação inócua, que a nada de concreto levou, a indignada Haqub declarou que ela, então, cuidaria dos meninos.

– Tu, logo tu!...
– Por que logo eu?
– Ah, não te faças de tonta! Não tens moral nem para criar a ti mesma! O que seria desses meninos com uma mãe que vende o corpo?
– O quê?!
– É isso mesmo, todos aqui concordam comigo: a serem criados por uma perdida, é melhor que apodreçam no pântano!

A discussão entre Haqub e as mulheres da aldeia prolongou-se por um bom tempo, até que foi, finalmente, para alívio de todos, principalmente meu (a minha terna Haqub tinha sido insultada pelas palavras mais vis que podem ser proferidas a um ser humano), convocado o Conselho dos Anciãos, formado pelos doze homens mais velhos da aldeia, não os mais sábios, evidentemente. Eu disse os doze mais velhos, o que nem sempre significa “sabedoria”. Há tanto tempo o Conselho não se reunia que somente sete dos doze participantes foram encontrados; quatro haviam morrido, o quinto desaparecera. Eu bem disse que não acontecia nada em nossa aldeia que nos tirasse da modorra, e esse desfalque do Conselho, sem que ninguém desse por isso, é um bom exemplo do nosso cotidiano. Então, os sete anciões restantes resolveram julgar a questão mesmo em número inferior ao tradicional, antes que morresse ou desaparecesse mais um deles. Apesar de tudo, de toda a insensibilidade atribuída aos anciões do Conselho, eles se mostraram genuinamente preocupados com a sorte dos dois pequenos filhotes de zíngans. Não que não houvesse aldeões interessados em fazer parte do Conselho, mas é que as exigências para tal eram tantas que o candidato bem poderia morrer durante as provas. E, daí, teria que ser feita nova convocação, e não mais para cinco, mas agora para seis anciões. E, de mais a mais, me desculpem, esse Conselho mais parecia um blefe, pois não entendíamos nada do que os anciões tartamudeavam. E, éramos então obrigados a interpretar seu palavreado ininteligível, trêmulo, balbuciante.

Pelo bem geral (nesse tempo, antes da invasão dos iardaranos, ainda pensávamos no bem de todos os habitantes da aldeia), achamos melhor, seguindo a orientação do Conselho, decidir logo o destino dos dois meninos abandonados. Sim, já era ponto pacífico, assim tinha decidido o tão perigoso senso comum, com a aquiescência dos anciões, que os dois tinham sido abandonados. Sim, entregues aos nossos cuidados pelos zíngans. Logo, dois passos tinham sido dados: um bom exemplo do que a boa vontade dos cidadãos é capaz. O Conselho dos Anciãos, corroborando a opinião das mulheres, decidiu primeiramente que “os dois não podiam ficar”, sob hipótese nenhuma, “aos cuidados da Haqub”. Restava decidir, então, quem iria adotar os dois irmãos ou a quais famílias seriam eles destinados, mesmo que a simples ideia de separação daquelas duas criaturas nos compungisse o coração. (Desculpe, mas “compungir” é outra palavra que eu não posso perder a oportunidade de usar). No final da tarde, os velhos do Conselho, sonolentos, mais pra lá que pra cá, sem solução aparente para tão difícil caso, resolveram subitamente que as crianças seriam entregues aos cuidados da Mãe Terra, e que o pântano de Tzarevhs seria a sua morada, ou o pântano que bem lhes aprouvesse, já que “todos os pântanos pertencem à Mãe Terra, a provedora de todos os homens de bem”, segundo as palavras do mais velho de todos os anciões do Conselho, o encarquilhado Lemamel, e que se lhes fosse facultada a vida, apesar da sua origem, eles certamente sobreviveriam a todas as intempéries e necessidades, já que estariam sob a proteção da mãe comum a todos os homens de bem. E dando por encerrada tão legítima questão, afastaram-se todos para as suas casas, com a consciência tranquila de quem dera o mais piedoso dos vereditos.

A noite fria, com seu manto negro, salpicado de estrelas, havia descido sobre a aldeia. Na fonte, que jorrava incessantemente dia e noite, indiferente às querelas dos homens, provendo tanto os bons quanto os maus, permaneciam somente as duas crianças e a robusta Haqub. E, quando já não havia mais ninguém para recriminá-la, para tolher os seus passos, a esperta Haqub deu a mão aos dois meninos e silenciosamente os conduziu não ao pântano, mas à sua casa, a mais humilde das casas da aldeia, a bem dizer uma choupana, mas muito mais bela que a casa destinada ao mais velho ancião do Conselho dos Anciãos. Serviu-lhes, então, uma sopa de raízes, fumegante. E “somente as sopas fumegantes são capazes de aquecer a alma”. (Na verdade, este axioma é de minha lavra, mas botei-o entre aspas para lhe dar alguma credibilidade). Colocou-os, depois, para dormir na cama de casal que herdara dos pais, enrolados nas cobertas, nas suas roupas de frio e, sem cerimônia, beijou-os, como sua mãe fazia.

Enquanto os pequenos dormiam a sono solto, na quietude da noite, uma Haqub insone bordava diligentemente um pano. Foi assim que, pela manhã, surgiu um estandarte, fincado no centro da aldeia, em frente à fonte, como os seguintes dizeres:

PALAVRAS DA GRANDE MÃE - Estes meninos são meus protegidos, são eles HUND e ZÓS, são para os homens a NOITE e o DIA, se algo de ruim lhes acontecer, acontecerá também a mim, a MÃE TERRA. Cuidem deles como se cuidassem de mim, a MÃE QUE TUDO PROVÊ. À Haqub, e somente a ela, será dado o nome de MÃE DE HUND E ZÓS, a Mãe da Noite e do Dia, ou do Dia e da Noite.

Assim, sob a proteção da Grande Mãe, os dois meninos cresceram fortes, como os frutos mais belos e saudáveis da Natureza, e não se separavam jamais, pois o dia sempre traz dentro de si a escuridão, e a noite, consequentemente, traz em seu bojo o alvorecer. E esta deveria ter sido a nossa lição... Quando completaram quatorze anos de existência em nossa aldeia, à instância de Haqub, obediente aos infalíveis instintos femininos, que lhe alertavam da grande desgraça que se abateria sobre a nossa gente, eles foram levados, transportados pela magia de uma caravana, formada de artistas e magos e músicos, que atravessava a aldeia. Nas laterais dos carroções, lia-se TRUPE DAS SOMBRAS LONGAS. Haqub compreendia muito bem a necessidade que os homens têm de bodes expiatórios. Alguns anos depois, Haqub segredou-me que entendeu premonitoriamente a desgraça que se abateria sobre a população, a qual seria creditada a Hund e Zós, quando, ao esfregar as suas costas, no banho, percebeu neles o surgimento de escamas douradas.

E assim o inverno mais tenebroso teve início em Dw Revhs. E, com ele, o início da nossa lenta ruína. Foi nesse tempo também que aprendemos a usar o aço para fabricar espadas, e não mais ferramentas agrícolas.

2 comentários: