quinta-feira, 28 de maio de 2015

NHENHENHÉM

Edson Negromonte

Umas das figuras inesquecíveis que vem à tona da memória nas agradáveis conversas sob a sombra do Jequiti Bar, uma construção em frente à entrada principal da Praça Coronel Macedo, erigida na gestão do prefeito Cecyn Jorge Cecyn, com dois quiosques, onde hoje servem-se café e bolinho de banana, mas na década de 70 podia-se, num deles, saborear deliciosos dolés de maracujá, é Nhenhenhém. Este antigo funcionário do Instituto Nacional de Previdência Social era querido por todos, mas principalmente pelos adolescentes que, ao vê-lo passar, à noite, pelas ruas sonolentas de Antonina, ao volante de um Corcel, acenavam com a mão, saudando-o:

- Nhenhenhém!

Ao que ele prontamente respondia, de voz pastosa:

- Nhenhenhém... nhenhenhém....

De pele escura, quase marrom, Nhenhenhém confundia-se com o carro da mesma cor, de vidro fumê. Após o expediente, depois de jantar com a esposa, o bom servidor público acendia um cigarrinho de maconha, saboreando-o até a última ponta, botava os óculos escuros e saía dirigindo pelas silenciosas ruas de paralelepípedos. Todos sabiam do vício, mas como ele não incomodava ninguém faziam vista grossa.

- Nhenhenhém! – provocava alguém.
- Nhenhenhém... nhenhenhém... – respondia ele, beatífico.

O apelido remonta, talvez, à impossibilidade de ele pronunciar algo além de resmungos, de nhenhenhéns, a língua pastosa por causa da maconha, hábito que adquirira com os índios. Segundo o dicionário, o vocábulo “nhenhenhém” tem origem no tupi “nheeng-nheeng-nheeng”, que significa “falar, falar, falar”. A popularidade de Nhenhenhém tornou-se ainda maior, durante o julgamento de Sete Facadas.

Aconteceu de surgir, um dia, na cidade, vindo não se sabe de onde, um estranho que não dizia o nome a ninguém, não procurava travar relações, como se estivesse por ali com o único intuito de cumprir uma missão. Fizesse sol, chuva ou frio, ele trajava sempre uma comprida capa cinza de lã e chapéu de feltro, da mesma cor. Perambulava pelas noites de breu, encarando as pessoas diretamente nos olhos, olhos brilhantes e acinzentados. Ou melhor, de um brilho metálico, como o aço de um punhal que nos atravessasse lentamente a carne, o coração, o espírito, chegando aos recônditos da alma. Todos indistintamente, prefeito, padre, meninos, professor, bacharel, baixavam os olhos à sua passagem. Como já foi dito, não se sabia o seu nome, nem mesmo onde ele dormia ou fazia as refeições. Nem se era de parte do Bem ou do Mal, apesar de que alguns enviados de Deus, muitas vezes usarem a aparente maldade para a purgação das feridas que não querem curar. Assim, o estranho andou pela cidade, dia e noite, dias e noites, como se estivesse à procura de algo ou, pior, de alguém. Com o passar do tempo, das idas e vindas das marés, os velhos, as mulheres, as crianças, foram se acostumando com a sinistra figura, que deixava um estranho rastro de enxofre. Os homens, esses, continuavam baixando os olhos ante a sua onipresença, fosse prefeito ou padre, professor ou fiscal da aduana.

Na manhã do dia sete de setembro de 1974, o mais antigo açougueiro da cidade apareceu morto, no chão do estabelecimento comercial, com várias facadas espalhadas pelo tórax; uma delas, a fatídica, bem no meio do coração. Um detalhe: faltava-lhe a orelha direita. A população, entre curiosa e estarrecida, aglomerava-se à porta do açougue, enquanto os soldados contavam um por um os golpes pontiagudos, desferidos violentamente no corpo enrugado do pobre homem de mais de 60 anos. Chegaram, finalmente, ao cabalístico número sete.

Imediatamente, deram início às investigações, mas o magarefe não tinha inimigos, segundo a esposa, os filhos, os netos, os amigos, a Rosinha... Seu único senão era encontrar grande diversão em esconder fios elétricos desencapados em apetitoso nacos de carne, à espera de que algum esfaimado cachorro de rua viesse abocanhá-lo. Ao ver o cão estremecer com a súbita descarga elétrica, ria e batia palmas, como uma criança feliz. Era uma visão adorável aquele senhor pulando de alegria com brincadeira tão inocente. Quem, naquela pacata cidade banhada pelas águas lodosas e fétidas da baía, seria capaz de cometer tal barbaridade? Sabia-se da vida de cada habitante, das grandezas e pequenezas de cada um; ninguém ali era capaz de matar um gato sarnento sequer, embora os gatos estejam associados desde os primórdios da civilização à magia negra, às bruxas. Então, foi dada voz de prisão ao homem de capa cinza que, apesar de tanto tempo entre nós, ainda fazia parte dos nossos medos. Assim, o estranho sem nome foi batizado de Sete Facadas. Entre os seus poucos pertences, foi encontrada uma faca enferrujada. Segundo o delegado, com manchas de sangue fresco. Era prova suficiente; todos nós, em nossas conversas sob a sombra do Jequiti Bar, estávamos convictos, mesmo sem provas concretas, inclusive as velhas faladeiras, de que, além de assassino, Sete Facadas era também dado à terrível prática do canibalismo. O bandido comera a orelha do açougueiro!

Após um ano já tínhamos esquecido disso tudo, até que um dia de sol causticante botou a população em polvorosa: aconteceria no fórum da cidade o julgamento de Sete Facadas, encarcerado pacatamente esse tempo todo na pequena delegacia. Pela tarde, uma verdadeira multidão lotava o prédio do fórum atrás da igreja, gente sentada em cadeiras, nos corredores, de pé, amontoadas, num vozerio que mais parecia um bando de abelhas, um grande enxame de gente, e aqueles que não conseguiram entrar apinhavam-se nas janelas e no pátio em frente. Parecia que toda a população estava ali reunida, homens, mulheres, crianças, velhos, gente de respeito, bêbados, prostitutas, intelectuais, analfabetos, curiosos e muitos que diziam ser indiferentes àquilo tudo, até gente que estava só de passagem. Comentava-se que Sete Facadas estava lá dentro desde cedo, para evitar a revolta dos populares, como se nós fôssemos incivilizados, capazes de agredir alguém ou, pior ainda, xingar a mãe de um cidadão acusado de assassinato.

O julgamento transcorria sem novidades, aquela coisa chata de sempre, que estávamos acostumados a ver no cinema. Fazia silêncio tão absoluto no ambiente que sou capaz de jurar pela sua mãe morta que ouvi várias moscas voando, e não eram varejeiras, mas moscas comuns, das que convivem pacificamente com os homens, compartilhando os seus lares e pondo ovos nos móveis e na geladeira branca, quando do nada, do meio do público, ergueu-se uma voz conhecida:

- Todo mundo aqui é muito honesto, mas roubaram o meu capote.

Era Nhenhenhém soltando uma das suas pérolas. Entre os risos dos presentes, disfarçados, devido à seriedade do momento, os policiais responsáveis pela segurança mandaram que o engraçadinho ficasse quieto, melhor dizendo, que calasse a boca, mesmo porque os homens da lei não pedem, ordenam, e obedece quem tem juízo. Assim sendo, o silêncio voltou ao recinto. Todo o público compenetrou-se e a ordem foi imediatamente restabelecida. Dessa vez, até as moscas se intimidaram e pararam de zumbir. A sessão transcorria em paz, até que o juiz, antes de dar o veredicto, alongou-se numa falação empolada sobre o Bem e o Mal, invocando gregos e latinos, passando de raspão por um poeta persa, sobre o qual ele evidentemente não sabia nada, mas ficava bonito citá-lo, dando aparência respeitável ao discurso, quando ouviu-se novamente a mesma voz pastosa, típica de quem está sob o efeito da cannabis:

- Esse juiz só fica de nhenhenhém, nhenhenhém, não julga nem absolve ninguém.

Risada geral. Aplausos. Mas, desta vez, o pequeno e franzino Nhenhenhém foi levado pelos homens da lei para fora do recinto, os quais quase lhe pediram desculpas por terem de agir assim. Afinal, nós, os antoninenses, éramos praticamente uma grande família, com suas mazelas, nossa moral duvidosa, e aquele juiz viera de fora, e definitivamente não era um dos nossos. Em família, com o tempo, perdoa-se tudo. E Nhenhenhém não queria incomodar ninguém, só queria que a sentença fosse rápida para saber onde fora parar o seu capote, apesar de, naquele dia, fazer um calor insuportável.

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