quarta-feira, 20 de maio de 2015

FAZER O QUÊ?

Edson Negromonte

Cada vez, o país tem menos livrarias. Uma pesquisa estatística dos meus tempos de menino, isso lá pelos anos 1970, já dizia que o Brasil todo tinha menos livrarias que Buenos Aires, a capital da Argentina. Sim, é necessário esclarecer que a Buenos Aires a que me refiro é esta porque há também uma Buenos Aires nordestina, antigamente conhecida pelo nome de Jacu, cidade natal do meu avô pernambucano. Mais recentemente, vi um documentário sobre o apreço dos jovens argentinos pela leitura, mostrando que os seus pontos de encontro são as livrarias. Um amigo que para lá viajou, voltou encantado com os sebos da capital, os quais vendem, além de livros, revistas e discos, também jornais antigos, o que nenhum sebo brasileiro sequer cogita comercializar, devido à dificuldade de conservação. Pode soar anacrônica essa minha preocupação com livrarias físicas em tempos de informação virtual. A celeridade da internet é algo que desorienta qualquer um nascido no século passado. E quando digo “século passado”, como isso soa distante, apesar de estarmos vivendo há somente 15 anos neste novo século. Nunca o homem sentiu tão rápida a passagem do tempo como nos dias atuais; a nossa consciência dos acontecimentos ao redor (e tenho a impressão de que, ultimamente, tudo acontece a um palmo do meu nariz ou dos meus olhos). Se o mundo já parecia pequeno no século anterior, tornou-se agora, com o incrível avanço da tecnologia, diminuto. Podemos nos solidarizar com a dor do povo da pequena Tuvalu, no distante Pacífico, prestes a desaparecer tragada pelo mar, do que com a perda de um ente querido do nosso vizinho do apartamento em frente, muito embora o cumprimentemos todos os dias pela manhã, perguntando com um sorriso amigável, plástico, se ele está bem. Acontece que ele, invariavelmente, responderá que sim, que tudo está bem, embora não esteja. Estará preocupado com a guerra no Oriente Médio, com a sua pequenez para resolver os conflitos internacionais.

“Mas não foi sempre assim?” – pergunta-me a pequena Laura, entrando na pré-adolescência e já se interrogando sobre o mundo das aparências, usando apropriadamente as minhas próprias palavras. Como são precoces as crianças de hoje em dia. Questionado, com a caneta na mão (e como isso soa anacrônico também. E quem, dessa nova geração, sabe realmente utilizar uma esferográfica? Saberão eles, um dia, do supremo prazer de coçar o ouvido com a tampinha de uma Bic? Tenho minhas dúvidas. Mas espero que desfrutem de prazeres outros a mim já inalcançáveis), lembro-me, então, de me preocupar genuinamente, em minha juventude, muito mais com a sorte de Smierdiakóv, de “Os Irmãos Karamazóv”, o clássico de Dostoiévski, do que com a saúde de seu Antoninho, o franzino sapateiro que acostumei-me a ver trabalhando em sua oficina por anos e anos a fio, o qual veio a morrer de uma doença que até hoje não sei qual era. Refletindo, a partir do questionamento da pequena Laura, o mundo, pelo menos o meu, já era virtual há muitos anos atrás, bem antes de os computadores se tornarem um eletrodoméstico comum a todos os lares . Eu tinha a capacidade, não sei se boa ou ruim (ainda hoje a tenho), de me condoer dos personagens fictícios dos romances que eu lia. Assim, Pater Sanctus e Pater Angelus, de “A Abadia dos Beneditinos”, eram para mim tão ou mais reais que os meus colegas de classe, com os quais eu convivia e aprontava as traquinagens típicas da idade, como botar bombas para rebentar o relógio de luz do colégio ou tocar fogo nas cortinas do teatro. Não sou daqueles que louvam os tempos antigos em detrimento dos atuais (sou capaz de reconhecer os avanços e as benfeitorias que a tecnologia traz, como o barateamento do alimento para a população mundial ou a democratização da informação), mas que as opções eram mais fáceis, lá isso eram, não tínhamos tantas alternativas de escolha. Nem sei, atualmente, dizer se isso, as poucas alternativas, é bom ou ruim, só sei que era mais fácil. Sei que os adolescentes de hoje dirão amanhã as mesmas, ou quase as mesmas, palavras.. É natural pensar que o tempo da nossa meninice foi melhor por já estar catalogado, rotulado, sem perigo aparente de nos passar uma rasteira quando menos esperamos, corroborando o dito popular de que águas passadas não movem moinhos. Tenho cá comigo que, muitas vezes, essas águas são capazes de ficar à espreita, anos a fio, à espera de um descuido qualquer. São mágicas as águas do passado.

Não sou nenhum fanático pelas novas tecnologias. Uso-as, se tiver que usá-las. Devo admitir, para melhor compreensão, que, apesar de ser um defensor dos computadores e da internet, também das redes sociais, não tenho telefone celular, e nunca tive. E faço questão de não tê-lo. Que problema o telefone celular representa para mim? Não é bem o celular, mas o uso que fazem dele. O pior dos problemas, a meu ver é quando se atende uma chamada e a primeira coisa que, do outro lado, alguém diz é: Onde você está? Ora, onde eu estou?! Isso não é da conta de ninguém! As pessoas não têm mais o direito de estar onde bem entender. E se eu não quiser que saibam onde estou? Ora, nesse mundo totalitário, dou-me o direito de perambular por onde bem me aprouver. É o último resquício de liberdade individual: não quero ser encontrado, mesmo porque não estou perdido. E, mesmo que estivesse, não gritei por socorro. Então, deixem-me entregue à minha danação. Saboreio de antemão a cara de basbaques que farão quando pedem o meu número e respondo, convicto, que não tenho celular. O mais interessante é que isso soe como ameaça, desmantelando o mundinho das coisas estanques da grande maioria dos habitantes do planeta.

Reconheço, o mundo virtual é perigoso. Muitas doenças em decorrência do seu uso excessivo estão surgindo, mas a maior parte desses males é provocada pelos games. Há atividade mais danosa que o jogo? Sim, eu percebo o quanto essa assertiva pode soar preconceituosa às novas gerações. Fazer o quê? Não estou aqui para agradar ninguém. Não tenho veleidades políticas, logo posso dizer o que penso, o que bem entendo. O baralho sempre me causou, e causa, ojeriza. Nunca tive parentes viciados nas cartas, no pano verde, mas como eu sofri com o vício de Dostoiévski, solidarizando-me com ele, apesar de mais de um século a nos separar. O mundo virtual é, para mim, mais real que a própria vida. Consciente disso, sou, na maioria das vezes, capaz de me relacionar com as pessoas que me cercam, muito embora prefira a companhia de John Fante, aliás, a companhia de Arturo Bandini. A bela Camila Lopez faz parte da minha família, desde a primeira vez que nos encontramos, nas páginas de “Pergunte ao Pó”. Acredito que o livro impresso é bem mais capaz de alienar alguém; nele, somos obrigados a comungar com os personagens, se quisermos usufruir plenamente da obra. A pequena Laura continua ao meu lado, interessadíssima nas minhas digressões. Só ela mesma, com a doce ingenuidade diante do mundo adulto, para acreditar em tudo que digo e escrevo. Revelo-lhe agora, olhando bem dentro dos seus olhinhos de passarinho, um segredo que deve permanecer entre nós dois: quando li “O Judeu Errante”, apesar de envolvido com a gama de personagens, senti-me, ao final dos quatro volumes, traído, ao perceber que o judeu do título, o qual aparece pouquíssimas vezes e sem nenhuma relevância, é somente um chamariz do qual o autor, Eugène Sue, se vale para atrair os leitores do jornal no qual publicava os capítulos do seu folhetim; o judeu errante era moda na França do século XIX...

- O que é um “judeu errante”, vovô? Assim como eu, é também uma realidade virtual?

Um comentário:

  1. KKK...seus finais são atrozes...voce mata a gente de susto ou de riso...muito bom texto!!

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