quarta-feira, 13 de maio de 2015

RESGATADORES DE CARROSSÉIS DOS SONHOS ALHEIOS


Edson Negromonte

“Minha função é resgatar carrosséis dos sonhos alheios”. Esta função não se escolhe, somos designados a ela desde o primeiro despertar espiritual. Não sei precisar, com certeza absoluta, se se faz por merecê-la, acredito que sim porque no Universo não existe acaso, todos os acontecimentos são parte da lei cósmica, logo inexorável, de causa e efeito, ação e reação, sabia e claramente enunciada pelo resgatador Isaac Newton. O fato é que esse aparentemente insólito ofício, sublime e reparador, existe: resgata-se o carrossel, ou mesmo os carrosséis, de outra pessoa – jamais o carrossel do seu próprio sonho. Ou de seus próprios sonhos. Resgata-se, afinal, carrosséis que iriam ser desmontados, carrosséis de parques de diversões, carrosséis que iriam virar sucata. Para se resgatar esses velhos carrosséis é necessário que se recupere primeiramente a lembrança infantil que os adultos conservariam dessas máquinas, o material de que são constituídos. Só quem teve a oportunidade de observar um carrossel novinho, recém-saído da fábrica e ainda sem uso, pode constatar quão sem vida, amorfo, estritamente mecânico, é ainda sem anima essa geringonça, a qual será posteriormente batizada de “carrossel”, cujo nome oriundo do fantástico remonta às primeiras Cruzadas.

O passo seguinte, depois de resgatado o carrossel de um determinado sonho, é alimentar os cavalinhos, e escovar-lhes o pelo, até que voltem a brilhar sedosos como antigamente, quando os seus proprietários eram crianças e ainda não tinham adquirido o sentimento de posse. Descobre-se, depois de certo tempo, como resgatador de carrosséis dos sonhos alheios, a existência de uma confraria de resgatadores. Não se sabe da existência dessa confraria até que se seja digno de conhecê-la. Essa descoberta ocorre justamente quando o resgatador sente-se solitário, à parte de tudo e de todos, questionando inclusive a sua capacidade, e o poder a ele outorgado, de resgatar carrosséis que iriam apodrecer nos ferros-velhos de beira de estrada. Quando a solidão chega ao ponto mais extremo, quando essa sensação dói como a visão da lágrima da baleia ao ver o filhote arpoado, sangrando no oceano que até então lhe fora o lar seguro, quando o leite da mãe se espalha incontrolável pela água salgada, tingindo de branco o azul profundo do oceano ao redor. Só, então, nesse momento de suprema dor, quando se é, ao mesmo tempo, a baleia, o filhote, o arpão e o arpoador, e o oceano, lhe é dado tomar conhecimento da existência de outros iguais a você: resgatadores de carrosséis dos sonhos alheios.

Não se resgata nada dos próprios sonhos, isso é vedado a qualquer resgatador. Por isso, o nome de “resgatador de coisas dos sonhos alheios”. Mesmo sem consciência, somos todos, uns mais, outros menos, resgatadores de coisas dos sonhos alheios. Em vigília, por uma questão de misericórdia, jamais lembramos que resgatamos algo dos sonhos de alguém ou que alguém resgatou algo de nossos sonhos. Sim, a misericórdia divina! Como conseguiríamos continuar vivendo nas horas de vigília se soubéssemos que, durante o sono, temos a suprema missão de resgatar carrosséis de sonhos alheios. Como poderíamos amarrar os sapatos sem uma expressão de revolta, ou no mínimo de tédio, diante dos atos comezinhos do cotidiano, quando em nossas horas de sono somos muito mais do que qualquer homem jamais sonhara. Ou sonhará. Como conviver pacificamente com a finitude se somos deuses?

Existem os mais variados tipos de resgatadores, como aqueles que resgatam coleções de tampinhas de cerveja. De maços de cigarros Saratoga. De garrafas de leite, deixadas nas portas das casas, de madrugada. Das bicicletas dos entregadores de pães. Ou os resgatadores de estampas do sabonete Eucalol. Estes resgatadores existem em grande quantidade, pois os colecionadores de tampinhas de cerveja e de estampas Eucalol eram comuns quando os lares ainda não eram assombrados pela televisão. Raros mesmo, raríssimos, são os resgatadores de coleções de fotos da atriz Patrícia Medina dos sonhos dos meninos de suspensórios. É preciso também que se diga que um resgatador de carrosséis dos sonhos alheios jamais se tornará um resgatador de coleções de fotos de Patrícia Medina, porque se nasce designado a uma determinada classe de resgate. Não há maior ou menor mérito em qualquer tipo de resgate, apenas se exerce a função para a qual se desperta durante o sono reparador das atribulações do dia-a-dia.

Além dos resgatadores de coleções de fotos de atriz Patricia Medina, outra classe muito curiosa é a dos resgatadores das pequenas peças de víspora perdidas nos desvãos das escadas de madeira que dão acesso aos sótãos. Geralmente, estes resgatadores têm a voz pequena e suave para não se sentirem tentados a cantar o número das pedras e, assim, acordar aquele que dorme e de quem se está resgatando as pequenas peças de víspora. É preciso ser muito sutil quando se penetra nos sonhos de alguém, é preciso entrar pé ante pé para que o pretenso proprietário da coisa que se vai resgatar não acorde durante a ação de resgate e, assim, agarrar-se àquilo que, um dia, lhe deu prazer e que, no momento atual, é um empecilho para o bom andamento da vida prática, condição a que grande parte da humanidade aspira. Só aos poetas é permitida a posse das ninharias da infância, ninharias essas que são o combustível para a confecção de um mundo próprio, o qual contém carrosséis, peças de víspora e fotos de Patricia Medina etc. A isso, costuma-se dar o nome de “inspiração” na falta de uma palavra mais adequada. Talvez “iluminação” seja mais apropriada. Uma classe assaz interessante é a dos resgatadores das caixas de música de porcelana, nas quais um rouxinol também de porcelana, canta o seu cobiçado canto; os resgatadores desta classe são geralmente desprendidos da grande maioria dos interesses materiais. Chama também atenção a leveza dos resgatadores dos tocos dos lápis de colorir que, quando não podem mais ser segurados pelos dedinhos das meninas, não são jogados fora, mas guardados nos estojos e ali permanecem indefinidamente como soldadinhos de chumbo de um exército que jamais irá à guerra até serem resgatados dos sonhos dos adultos que não tiveram coragem de se desfazer dos seus tocos dos lápis de cor.

Há resgatadores dos mais abrangentes aos mais específicos, muito embora nunca saibam da existência uns dos outros, a não ser quando são admitidos nas assembleias. Ao homem desperto, os resgatadores muito pouco se dão a conhecer, a não ser que haja necessidade de que se manifestem no mundo material. Mesmo quando o resgatador se manifesta neste mundo, o ceticismo humano, na grande maioria das vezes, o repele, relegando-o ao mundo das quimeras. Nestas ocasiões, o homem desesperado diante daquilo que já não pode compreender, nega com veemência esse mundo tênue e impalpável dos resgatadores dos sonhos alheios, esse mundo silfídico. Então, o homem atemorizado, diante do insofismável, empreende suas campanhas belicosas, extremamente perigosas para o equilíbrio das águas pluviais. Essa pobre criatura, dita humana, é treinada, desde o berço, para a guerra entre os da própria espécie, seja na escola, no lar ou em sociedade, mas principalmente em seu trabalho e nas relações de afetividade. Há resgatadores tão peculiares que chegam a ser nomeados “sublimes”. Pertencem eles à classe dos Resgatadores das Crônicas sobre os Resgatadores, crônicas essas que poderão ser lidas somente pelo Resgatador-mor, o qual sabe de tudo e de todos, desde as mais ínfimas às mais grandiosas ações, embora não haja nenhuma graduação entre as ações, mas se assim não escrevesse como me daria a entender? Então, isso significa que essas crônicas sobre os resgatadores jamais serão lidas pelo Resgatador-mor; ele já sabe tudo sobre nós.

O mundo dos resgatadores não é feito só da poeticidade fugaz que habita no mundo dos homens enquanto crianças. Essa poeticidade precisa ser resgatada quando Lea, a eterna infante de todos nós, começa a interferir em seus afazeres cotidianos e passa a atrapalhar as ações cotidianas, é quando o adulto acha por bem descartar, transformar em sucata das sombras, aquilo que foi o ponto de equilíbrio durante toda a sua vida. Então, os resgatadores dos sonhos alheios entram em ação. Há também resgates dolorosos, os mais dolorosos, porém necessários, como o das bonecas de corpo de pano e cabeça de porcelana, incineradas nos campos de concentração de Auschwitz ou Treblinka ou Sobibór ou ... Esse resgate provoca dores horríveis nos resgatadores durante as suas horas de vigília, como se as dores dessas crianças fossem as suas próprias dores, dores essas que jamais serão atenuadas, dores para as quais ainda não há lenimento conhecido. Estes resgatadores geralmente morrem cedo, têm a vida abreviada, como recompensa. Devo ainda dizer que nenhum de nós conhece efetivamente o Resgatador-mor; temos dele uma percepção, ou melhor, concepção que acontece individualmente a cada 144 anos. Então, nessa ocasião, nos dedicamos a resgatar a nossa própria coleção de concepções sobre o Resgatador-mor, concepções essas que lhe dão plena vivência.

Um dos mais eminentes resgatadores com quem tive o privilégio de travar conhecimento, em uma das nossas assembleias, atendia pelo nome terreno de Willy Wake, ou coisa que o valha, o cunhador da máxima terrível “What can be created, can be destroyed”, que resgatou com pujança a existência do Resgatador-mor, num tempo em que alguns resgatadores sublevaram-se na intenção de ocupar o Trono de Cristal. Esse axioma de Wake é, como todo axioma, indemonstrável e, por isso mesmo, porque ocorre em um sonho, é muito mais terrível, quase exorbitante, chegando a exercer a capacidade de profanação.

Ainda sobre o resgate dos carrosséis dos sonhos alheios, deve-se esclarecer que resgata-se não os grandes carrosséis, como o do Tivoli, na Dinamarca, mas os pequenos dos pequenos parques de diversões das cidades do interior, que surgidos do nada, se instalam nos terrenos baldios, nas festas da padroeira, e que, como surgiram, vão embora, desaparecem num passe de mágica, deixando marcas indeléveis na memória das crianças que neles brincaram, mas mormente na memória da criança que ficou olhando de longe, com medo dos cavalinhos, ou da criança que, por não ter dinheiro para neles gozar, alimentava a sua alma com o brilho dos olhos das crianças outras que no carrossel gozavam. Embora, este carrossel volte no ano seguinte, já não será o mesmo porque a criança já não é a mesma; um ano é uma eternidade na vida das pequenas almas, tudo acontece muito rápido, em alta velocidade, e quando se percebe a inocência está irremediavelmente perdida, os interesses já são outros, as roupas estão curtas, as tranças já foram substituídas por outros penteados... e o tié-sangue já não pousa mais no galho da goiabeira no fundo do quintal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário