quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

NA TAVERNA DA VELHA HAQUB 3 ou O FILHO DE MARY LYNN


por Edson Negromonte

Apesar de grandalhão, o velho não era nada truculento. Seu coração era ver um coração de moça, se enternecia à simples visão de um bebê sendo amamentado no seio materno. O nariz torto e vermelho dava a sua carantonha a falsa aparência de um pugilista sanguinário. Não que nunca houvesse trocado sopapos, mas isto era para ele o último recurso, do qual só fazia uso como recurso extremo. Fazia de tudo para não ter que ir às últimas consequências, ou seja, surrar alguém. Sim, surrar; com ele, as pessoas sabiam que se começasse só pararia quando o adversário não pudesse mais se erguer do chão, estrebuchando. Os habitantes do vilarejo lhe queriam bem, mas queriam muito mais a si mesmos, às suas caras livres de hematomas. Quem o desafiava eram os incautos que chegavam ao nosso pequeno povoado e não podiam admitir que aquele gigante dócil, de voz quase feminina, não fosse provocado, ridicularizado e desafiado para passar o tempo que se arrastava, como sempre se arrasta o tempo nos ermos do mundo: lesma desfazendo-se em campo de sal.

O velho era o ferreiro de Dw Revhs, fabricava as ferramentas mais duráveis de toda a região, mas não abria mão do acabamento; era preciosista. Suas enxadas, pás e machados eram, sem sombra de dúvida, obras de arte. A lenda em torno dele, muitos anos após a sua morte, contava que tentara por muito tempo forjar uma espada encantada, com a qual ele presentearia o seu amigo pessoal, o comandante Golber, a eminência parda e idealizador do golpe militar que tomou o poder em Nusredmtap, por duas décadas. Contavam ainda que ele, o velho, possuía as anotações pertencentes a Merlin, com as quais o mago pessoalmente temperara a Excalibur do rei Arthur, mas isso é somente mais outra lorota em torno do velho; após a sua morte, eu mesmo vasculhei cada palmo da choupana onde morávamos, em busca dos manuscritos do mago. A ele, ao velho, atribuíam um conhecimento profundo das coisas misteriosas do Universo, que verdadeiramente ele não possuía; no mundo medíocre em que vivíamos, bastava saber um pouco mais que os parvos ou ser um pouco mais lunático que a maioria (e quem, a bem da verdade, não é lunático nesse mundo doido?) para que fosse apontado como sábio. Ou bruxo. Sábio ou bruxo, não importa, mais cedo ou mais tarde todos dois vão para a fogueira. Seu coração, sua capacidade de amar era enorme e faz-se necessário que se conte, para avaliação dos pósteros, essa passagem: na parede da nossa cozinha ele pendurara a foto de uma mulher de calendário, desses que ainda hoje são comuns nas oficinas dos ferreiros. E dos borracheiros. Lia-se no canto esquerdo da foto, o nome impresso de Mary Lynn. Ao perguntar-lhe uma vez quem era Mary Lynn, respondeu-me prontamente:

– É a sua mãe, este é o nome da sua mãe!

Depois de muito tempo analisando o quanto de verdade ou mentira havia nessa afirmação, já adulto, cheguei à conclusão de que aquilo não passava de uma necessidade do velho de preencher o vazio da figura materna que havia em meu coração, um buraco que carregarei pela eternidade. Minha mãe me abandonou aos seus cuidados antes de eu completar dois anos de idade. Durante muito tempo, acreditei que a pin-up Mary Lynn fosse minha mãe; era-me conveniente. Durante a minha infância e parte da juventude, eu pude dizer que minha mãe era uma das mulheres mais lindas do mundo.

Depois de fechar a oficina, com a chegada da noite, o velho fazia-me acompanhá-lo à taverna da velha Haqub, local onde os homens se reuniam para beber e contar histórias, fazer chistes, cantar canções obscenas. “Não há lugar melhor para a educação de um jovem”, asseverava. “Aqui”, ele cochichava em meu ouvido, “você aprenderá sobre os homens, as mulheres, suas grandezas e misérias, o mundo”. Seu sonho era que eu me tornasse o bardo oficial de Dw Revhs, garantindo assim a minha subsistência, depois da sua morte. Ingenuamente, acreditava que os poetas continuariam sendo mantidos e respeitados pela comunidade. Obrigou-me, então, a tomar lições de gramática com o venerável ancião DeKampesh. Desculpem o veneno, mas acho que o chamavam de venerável devido às doenças venéreas que pegara durante a Guerra dos Cento e Setenta e Seis Dias que, na verdade, durou cento e setenta e cinco. Logo, eu sabia mais das artimanhas e armadilhas da língua que o venerável; com o tempo, fui tomando gosto pelo estudo e leria todos os livros que enfeitavam as estantes do improvisado mestre-escola, o qual mais dormia do que ensinava, deixando-me à vontade para vasculhar a sua biblioteca, cujos livros até então tinham servido somente para lhe dar um verniz de respeitabilidade perante os broncos habitantes do lugarejo. Somente a aritmética não teve jeito de entrar na minha cabeça dura, até hoje não sei multiplicar. Dividir me foi sempre mais fácil, desde que eu ficasse com a maior quantidade, o monte maior. A inabilidade para as artes matemáticas foi o entrave para os meus pendores pitagóricos, mas a minha poesia, os versos de que fui capaz, mesmo que de pé-quebrado, ajudou-me a conseguir uma sinecura e, assim, manter o meu sustento, além de me deixar muito tempo livre para percorrer os sebos em busca dos livros que tanto amo.

Na taverna da velha Haqub, o velho deliciava-se com a cerveja farta, produzida a partir da fermentação da cevada-das-lebres. Era capaz, depois da terceira caneca dessa bebida intragável, de deixar rolar livremente uma lágrima sobre a face enegrecida e sulcada ao ouvir a voz aveludada da cantora Eli-zeth X., a qual ele se referia carinhosamente como Enluarada. Eli-zeth tentara, várias vezes, levá-lo para a cama, aproveitando-se da sua bebedeira, mas ele sempre recusou cortesmente os convites, apesar da quantidade de álcool no sangue; dizia que alguma coisa dentro dele se quebraria, um osso, um espelho, a quilha. A ele, bastava ouvi-la cantar. Entendia que não poderia viver sem o encantamento de uma musa: nesses momentos, a alma de poeta, que ele tivera de recalcar, falava mais alto. Eli-zeth tinha o frescor e o imediatismo da juventude, não conseguia entender por que aquele homem a recusava. Logo ela, que todos os machos de Dw Revhs e arredores dariam um braço ou uma perna para manchar de sangue os seus lençóis brancos. O velho jamais dormiu com Eli-zeth e nem permitiu que outros dividissem com ela o seu leito; ele a queria inconspurcada. Ele a queria divina, sem o pus dos homens. Achava que ela perderia a condição de porta-voz da Lua se se deitasse com alguém. Enquanto o velho viveu, tenho certeza de que Eli-zeth manteve a condição virginal. Depois da morte do velho, a sua protegida foi embora e nada mais soubemos dela, nem nos preocupamos em saber, porque quem vai embora do nosso vilarinho é como se morresse para sempre. Mas, outro dia, em um antiquário da cidade-mor, de propriedade do meu amigo Licurgo, encontrei em perfeito estado de conservação dois cilindros musicais, gravados por ela, para a Casa Alba, com as canções “Vem para os braços meus” e “Braços vazios”. Tentei seguir-lhe a pista, mas foram embalde todas as tentativas. Ninguém soube dizer algo concreto sobre a cantora Eli-zeth X., nem mesmo o grande pesquisador musical Ravoq Albinus, o qual compilou a mais completa enciclopédia sobre os rouxinóis da terra.

Até hoje, não consegui me refazer da morte do velho. Morte estúpida! Logo ele que enfrentara destemidamente o terrível inverno que a todos flagelara há tempos atrás para salvar da morte certa as cabras que alimentariam, com o leite amarelo, gorduroso e forte, as crianças do vilarejo. Logo ele que disputara com Porco-sujo uma partida quase interminável de pedras adâmicas, da qual saiu vencedor, evitando assim que o demônio instalasse uma franquia de fast-food em Dw Revhs. Logo ele... morreria de complicações advindas de uma doença que qualquer criança consegue superar, mais inofensiva que caxumba. Seu organismo preparado para enfrentar as mais nefastas adversidades do tempo e da vida, não produzira anticorpos suficientes para debelar uma prosaica febre do pântano.

2 comentários:

  1. Esses teus contos fantásticos, Edson!!
    Me evocam algumas figuras sombrias de um fundo de baía esquecido por ali...
    coincidência?
    Belo texto, parabéns!!

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  2. Não posso dizer que seja coincidência, e muito menos mera coincidência.

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