quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A MENINA DA ILHA DE SÃO BRAVO - parte 1



por Edson Negromonte

Acordei pela manhã, lembrando-me do retrato dela, em branco e preto, colado na porta do meu quarto, ao lado de um pôster gigante de Che Guevara, onde lia-se no rodapé "criar dois, três, vários Vietnãs". Amargo até hoje a perda desse retrato, muito mais que o pôster do líder guerrilheiro. Andei perdendo muitas coisas pela vida afora, como revistas, livros, muitos, discos, muitíssimos, casas, que acabaram ficando para os verdadeiros donos, carretéis, pipas, bilboquês, cabelos, quase todos, o que durante algum tempo causou-me constrangimento, mas depois acabei me acostumando, como acostuma-se a tudo, até com a infalível partida dos entes queridos, acostuma-se até com a dolorosa e jamais preenchida lacuna que eles deixam, como nos acostumamos com uma nevralgia, com uma cicatriz que entreabre de vez em quando a pálpebra rósea. Mas com a falta da foto dela nunca me acostumei, como no samba "Praça Clóvis”. Tentei recompô-la; consegui, no máximo, a pose displicente, a mão na cintura, o riso. Ah, o riso! Não era o da Mona Lisa, de freira, e muito menos do gato de Cheshire; escancarado, era o sorriso maroto de alguém que acaba de entrar na adolescência. Carreguei a ausência dessa foto durante todos os dias de minha atribulada vida, mas nunca jamais acordara com tão horrível sensação: de perda. Esse sentimento vinha-me no transcorrer do dia, ao ouvir o fragmento de uma canção, vindo de uma estação de rádio perdida no dial da memória, ou uma brincadeira da velha Haqub, a destrambelhada, num outdoor na esquina mais movimentada da Paulista, ou os sentimentos despertados pela chuva miúda na areia da praia, entrevista pela vidraça. Às vezes, um filme que nunca víramos juntos trazia-me um gosto inexplicável de chocolates não compartilhados (armadilhas que a memória prega, de quando em quando, para que possamos enfrentar o dia a dia de maneira mais leve: as intermináveis filas de ônibus, a mulher que não mais amamos, o emprego que não queríamos, a cidade que detestamos, o ar empesteado de óleo diesel, a água fétida de cloro...). Outras vezes, a cena de um filhote de gato brincando despreocupado com uma réstia de sol levava-me ao calor daqueles dias quando não compartilhamos a delicada cena, somente para que eu beijasse a testa de cada filho, ajeitasse o nó da gravata e saísse à rua para enfrentar os clientes do banco onde trabalhava... Ou Jorge Luis Borges a recitar um curto e terrível poema nunca escrito ou o vocal barroco de Milton Nascimento numa missa imaginária, acompanhado de saltérios, ou, numa noite fria, quando os pingos da chuva, rolando do telhado, percutiam as latas na calçada, como em um noturno de Chopin. Todas essas coisas pequenas, aparentemente miseráveis, traziam-me à lembrança a imagem difusa daquela que foi, um dia, a minha primeira namorada.

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