quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

A MENINA DA ILHA DE SÃO BRAVO - parte 2



por Edson Negromonte


Para melhor compreensão, devo contar esta história do início, quando aportei à ilha de São Bravo, no Arquipélago dos Atobás, a bordo do veleiro Antares, após duas horas de mar, trazendo na bagagem as leituras recentes de “Robinson Crusoé” e “As Viagens de Gulliver”, mas principalmente de “Dois Anos de Férias”, de Júlio Verne. Sentia-me o grande navegador de mares nunca dantes. Vínhamos numa comitiva que, além do veleiro branco, contava com um pequeno barco de cabine e a negra baleeira, de propriedade de Sven Andersen, de longa barba grisalha e pele curtida de sol, parecendo mais que um homem: um pergaminho. Era um velho marinheiro que, após a aposentadoria compulsória, devido a uma queda na casa de máquinas, passara a escrever relatos fantásticos sobre as suas perambulações marítimas pelo mundo. Por insistência dele, deixei de passar o final de semana envolto nas páginas brumosas de mais um romance juvenil e fora viver, sem o saber, a minha própria aventura. Devo acrescentar neste parágrafo que estava até contrariado com a viagem, pois não havia nada mais interessante para mim, naquela época, que o apaixonante mundo livresco, onde eu era capaz de descortinar novos horizontes e gente muito mais interessante e vívida que as pessoas do mundo real, ao meu redor, de vidas comezinhas e sem graça. Gente como o pirata Long John Silver ou o corcunda Quasímodo ou o Dr. Moreau... Quantas vezes deixamos de viver a nossa verdadeira saga para nos refugiarmos nas páginas seguras de um volume, o qual podemos egoisticamente fechar quando os olhos cansam e retomá-lo quando bem nos apraz. “A vida não é assim, a vida não é bem assim, ela vai nos empurrando, queiramos ou não, e muitas vezes não temos nem o direito de fechar os olhos para descansar um segundo. A vida nos mostrará, independente da nossa vontade, os personagens reais no grande palco giratório, com as máscaras prontas a cair a qualquer momento”. Para me convencer, Sven disse que na ilha moravam dois irmãos, com idades próximas à minha, mas deixara de propósito, creio, de contar que eles tinham uma irmã.

Ao adentrar a pequena enseada, pulei na água que hoje percebo cristalina, apesar de ser na realidade de fundo lodoso, como toda aquela região litorânea. Ou, quem sabe, eu já a tivesse como cristalina. Era janeiro e o sol, esse pai amantíssimo de todas as criaturas da Terra, vegetais e animais, mostrava-se em toda plenitude. Ancoradas as embarcações, aproveitando a maré, descarregamos as tralhas, pois passaríamos ali o sábado e o domingo. Via-se a casa no alto de um promontório. Logo, os moradores vieram nos receber: a mãe Concepción, nascida no Chile, em Antofagasta, e os dois filhos Arael e Camael, de negros cabelos encaracolados, que em tudo lembravam uma gravura, anjos de Botticelli. Foi quando vi, então, descendo a estreita e sinuosa estrada que conduzia à praia arenosa, de shorts, camiseta, pés descalços e longos cabelos castanhos ao vento, aquela que há tanto tempo habitara as minhas noites insones, aquela que eu tentara em vão desenhar, seja rabiscando cavalos em movimento ou seres os mais diáfanos, os quais, por incompetência, eu rabiscava, rabiscava até transformá-los repentinamente em monstros abissais, gigantes terríveis das profundezas oceânicas. Meus olhos não conseguiam se despregar da imagem, não havia para mim mais nada nem ninguém ao redor, nem barcos, árvores ou cachorros, âmbulas voadoras ou pássaros santos. Era a primeira vez, em minha existência, uma longa vivência de apenas 17 anos, que meu coração batia descompassado por alguém. Como asseguram os poetas românticos, era o amor que se avizinhava, batendo com as forças de um mendigo esfaimado às portas da minha alma sequiosa.

Tinha ela, então, 13 anos.

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