quarta-feira, 2 de março de 2016

A MENINA DA ILHA DE SÃO BRAVO - parte 3


por Edson Negromonte

Ela tomou-me, então, com naturalidade pela mão e foi conduzindo-me à casa, pela estrada de terra, de cascas de ostra, de mariscos, de esqueletos de peixes ancestrais. Deixei-me levar pela menina dos meus sonhos, como se há muito tempo aguardasse esse momento de pura epifania. A cabeça girando, os galhos das árvores me recebiam de braços abertos; minha alma estava tranquila, como nunca antes estivera. Ela era tudo o que a vida inteira eu ideara. Nesse momento sublime, febril, opiáceo, quinceyano, lembro-me perfeitamente, eu tive certeza de que aquele era o ser que eu buscava, o ser que eu aflito buscara, de que não era mais a prosa da literatura, era tão somente a arte da poesia, em sua forma pura e ainda não grafada. Sei que tudo isso pode parecer estranho, por contar tão pouca idade, mas não há nada que possa contradizer um coração apaixonado a vida inteira pela metade perdida da sua catedral, sem a qual vaga-se pelas ruas com a via-sacra exposta, sangrando a cada passo, o corredor da nave sem tapete vermelho e a abóbada destelhada.

O chão da sala da casa era de pequenos seixos, com uma grande mesa central. Um tronco de embaúba vinha do teto, atravessava o tampo e terminava num pequeno fosso, mais baixo que o nível do chão. À guisa de banco, quatro troncos laterais com os lugares escavados. Meus olhos perscrutadores não perderam um único detalhe, apesar de inebriado com a doce fragrância que aquele ser exalava a cada leve movimento do corpo. Havia ainda, no térreo, dois quartos laterais e uma pequena cozinha, de onde vinha o cheiro do café recém-coado em fogão a lenha. Uma escada de degraus de costaneira levava ao andar de cima, onde ela sentou-se na cama, a qual fazia a vez de sofá, em posição de flor de lótus, dando um sorriso tão terno que dois sóis acendiam-se em seus olhos, comprovando as palavras do poeta, “são os olhos as janelas da alma”. Neste segundo pavimento, além da grande sala circular, havia quatro quartos; os da frente, as janelas abriam para o mar, os de trás, para a mata. Nas paredes, as estantes exibiam, com volúpia, livros em profusão, com todos os tipos de encadernação, de couro, industriais, brochuras.

Embevecido com a beleza da menina, eu a ouvia falar sobre leituras à luz de vela, durante as madrugadas, sobre as brincadeiras com os irmãos, as pescarias com o pai, o qual ia vê-los em alguns finais de semana, sobre o trabalho das aranhas, a tessitura das teias, pássaros azuis que vinham em sonho para resgatá-la, para levá-la a passear em suas asas enormes, sobre as longas conversas com os pescadores, o aprendizado com os guaiamuns, as casas de bambu que Arael construía, a cobertura de folhas de bananeira, as músicas que ela ouvia no rádio, as tempestades, o vento que soprava do mar para a terra, da terra para o mar, da falação noturna das almas nas pedras... Eu, muito mais ouvindo do que falando, a tudo assentia com a cabeça, com medo de que ela se calasse. Sua fala perfeitamente incompreensível levava-me de imediato aos mares do Sul, onde um nativo sopra, desde tempos imemoriais, conchas de vários tamanhos e formatos para entrar em contato com os deuses de seus avós, bisavós. Era, ao mesmo tempo, a algaravia do rouxinol do imperador, rios a correr livres nos leitos de pedra, cachoeiras despencando do alto das rochas, banhando o primeiro homem, astros em rotas determinadas desde a Criação e o descanso dos dias sétimos.

De lábios carnudos, pele alva de cetim, ela era feita da matéria das nuvens, onde os anjos do Senhor sentam-se e entoam canções que nós, humanos, traduzimos como orvalho, essas partículas da natureza tão caras aos alquimistas. Por favor, leitor, não estou delirando; se você assim pensa é porque nunca deparou com um ser enviado à terra para ser aquilo que o livro sagrado chama de maná, alimento espiritual que consola a alma, nunca saboreou o vinho das eras cantado e decantado por Omar Khayyam. Ouso dizer que deparar com alguém assim é sentir-se, num lampejo, o guerreiro Arjuna, cujo carro de guerra está suspenso entre os dois exércitos inimigos. Assim como Shelley, os poetas buscam esse ser iluminado a vida toda e, quando o encontram, querem tocá-lo, possuí-lo, insatisfeitos em somente admirá-lo.

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