quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

O REMENDÃO E A MENINA


por Edson Negromonte

Quando ele chegou ao nosso hotel de beira de estrada, ao qual meu avô materno, o velho Nicolau, tinha batizado com o pomposo nome de Estalagem do Dragão Vermelho, todas as cabeças voltaram-se em direção à silhueta recortada na porta, à luz dos faróis dos caminhões que passavam na rodovia.Os poucos hóspedes ficaram hipnotizados, fascinados pela presença inquietante que ora dirigia-se ao balcão, sem muita bagagem, a não ser uma pequena mala de couro gasto, a qual contrastava com a imponência do dono, de altura descomunal, gigantesco.

Antes que ele chegasse ao balcão, ouvi uma voz feminina, talvez a de minha mãe, a sussurrar em meu ouvido: “É o remendão, dê a ele o melhor quarto, o da esquerda, que a janela dá para a velha mangueira”. Procurei por minha mãe ao meu lado, atrás de mim, encontrei-a no meio do salão, servindo a janta aos hóspedes. Hoje, pensando bem, vendo o acontecimento por uma nova perspectiva, através da visão retroativa que só a idade avançada e um caleidoscópio concedem, com certeza não era a voz de minha mãe. Quando esse tipo de coisa acontece, ou seja, ouvir vozes que a sabedoria popular nomeia como “vindas do além”, é de bom alvitre não ficar se perguntando de onde vêm ou de quem são, sob a pena de se perder a aptidão de ouvi-las, fato que remete ao poeta inglês William Blake, o qual felizmente convivia com os anjos, mesmo na idade adulta, apesar de ter levado uns bons croques da mãe quando ele, um dia, inocentemente contou a ela que os anjos tinham lhe confidenciado isso e aquilo. O que é, afinal, a realidade? A uma velha alma como eu, a quem o mundo das aparências já diz tão pouco, o que resta além das lembranças de um tempo aparentemente feliz e inocente, no qual ainda se está aberta às possibilidades?

Perguntei à minha mãe se ela sabia o nome do recém-chegado, enquanto ele se afastava, levando a chave do quarto 4B. Sem se virar, o remendão respondeu:

– Digamos que seja Jacob!

Devo acrescentar que, apesar de ele não ter voltado o rosto em minha direção, percebi um sorriso. E como se percebe o sorriso em alguém que não está olhando para você? Sei que é difícil explicar, o que sei é que isso ocorreu de verdade, e essa verdade me basta. Não quero confundir ninguém, talvez seja como perceber que alguém, do outro lado do telefone, está mentindo. Talvez você já tenha passado por experiência semelhante. O que sei é que a mentira, assim como o sorriso, tem o poder de se manifestar com muita clareza, desde que ninguém a veja. Experimente, antes de se deitar à noite, sentar-se à beira da cama e esboçar um sorriso franco para essa entidade vaga a que damos o nome de humanidade, mesmo que o seu dia tenha sido atribulado, mesmo tendo sofrido a perseguição dos contemporâneos.

Na manhã seguinte, muito cedo, antes que eu acordasse, Jacob, o remendão, já deixara o hotel. A sua figura enigmática acompanha-me até hoje, impregnada na memória perfeita das células de meu cérebro. Sem medo de parecer ridícula (o que poderia ainda ser ridículo a uma anciã que teve de arcar com as mais vis maledicências devido às suas ideias filosóficas?), devo esclarecer que creio com convicção que a memória reside nas células do corpo, esse vilipendiado santuário da alma.

Minha adolescência foi muito diferente da das mocinhas da minha idade (detrás do balcão da estalagem, aprendi a conhecer e classificar os mais variados tipos da humanidade em um relance de olhos, ao entrar em contato com a sua aura psíquica), assim, foi fácil perceber no sorriso encoberto do remendão Jacob, sorriso somente a mim destinado, ainda que de modo oblíquo, ou talvez por isso mesmo, a epifânica estrutura espiritual do mundo, além daquilo que a minha pequenez permitia. Perguntar-se-ão, então, os céticos como um sorriso sequer visto, quando muito intuído, pode conter ensinamentos tão importantes para a vida futura da “mocinha sonhadora” que eu era. Ora, um sorriso pode ser um mundo, de coisas boas e até ruins; basta lembrar o sorriso de escárnio, tão comum nos dias atuais, até em crianças já o percebi, sorriso terrível, capaz de desmoronar as certezas do mais tenro cordeiro. Outro dia, fui abordada em uma dessas imensas filas que se formam hoje, seja para pagar a conta d’água ou simplesmente para pedir uma informação, por um jovem de aparentemente vinte anos, recém-convertido à fé evangélica. Apresentou-se a mim como se me conhecesse de longa data, de algum evento ao qual eu não fora convidada, apertando-me a mão calorosamente. Em seguida, ele começou a discorrer com vivacidade sobre a sua conversão, o abandono das drogas... Louvei a sua atitude, é sempre agradável saber que alguém deixou o mundo das drogas, mas o rapaz logo fez questão de enaltecer a sua religião, em detrimento das outras, que só a dele era certa etc. Falei-lhe de Buda, Zoroastro, Krishna, Maomé, tentei mostrar a ele o quanto todas as religiões são importantes. Intransigente, o rapaz, balançando a cabeça, bateu delicadamente em meu ombro e disse, com ensaiada suavidade: “Jesus te ama”. Repliquei: Buda também te ama.

Pergunto-me, então, que direito tenho eu de questionar alguém sobre a sua fé. Deveria ter sido complacente com o meu semelhante, logo eu que acredito que todas as guerras são de fundo religioso, muito mais que econômico. Deveria tê-lo tratado com um sorriso maternal, o mesmo sorriso de Jacob, mesmo que eu não o tenha visto, mas apreendido, porque foi e ainda é um sorriso complacente, condescendente, com a minha ignorância diante da vida, apesar da idade avançada. Assim como o sorriso de Jacob permanece em mim, e levá-lo-ei comigo até o último dos meus dias, o meu sorriso poderia ter sido para aquele rapaz um pássaro azul recortado em céu azul, assim como o sorriso do remendão alemão do século XVII.

6 comentários:

  1. Estou meio sob influencia de Hilda Hilst, de quem estou lendo um livro agora, "A obscena senhora D", então me perdoe se eu vi um tom hilstiano: sarcastico, lugubre mas absolutamente honesto, nessa sua bela historia...

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  2. Nossa, Hilda Hilst?! Adoro essa mulher, tenho um retrato dela em meu escritório. Mais uma vez, só posso agradecer humildemente as suas palavras.

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  3. Um dia que voce vier a Campinas te levo lá na Casa do Sol, então...voce vai adorar...

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  4. E pensar que eu morei em Campinas lá por volta dos anos 80 e não fui conhecer Hilda Hilst, que morava em um sítio ao lado da propriedade de um amigo meu. Ele a descreveria como "uma senhora muito louca, sempre com um copo de uísque na mão e acompanhada por seus cachorros.

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