quarta-feira, 9 de março de 2016

A MENINA DA ILHA DE SÃO BRAVO - parte 4


por Edson Negromonte

No domingo, enquanto todos levantavam acampamento, eu só pensava em ficar vivendo naquela ilha, na ilha de São Bravo, no Arquipélago dos Atobás, com aquela família, para poder então ouvir todas as suas histórias, à beira do fogo, à beira da água, na areia noturna da praia enluarada. Roguei a Deus que os barcos naufragassem e que só eu sobrevivesse, que a maré me levasse de volta àquela praia, mas infelizmente a viagem de volta à realidade transcorreu com ventos favoráveis, velas infladas, a todo pano, enfunada a bujarrona. Sem o ser amado, eu não encontrei mais sentido, nem os livros conseguiam mais aplacar a minha ansiedade. Cheguei a imaginar que houvera sonhado, pois anjos não andam assim por aí, de cabelos ao vento e pés descalços. Mas a vida insiste em nos jogar de encontro aos rochedos da realidade. Confortou-me ler o poema de Goethe sobre o arco-íris branco, que o deixara quase cego. Assim, reconfortou-me saber que um anjo me dera a mão, conversara comigo e isso era uma das maneiras de Deus mostrar-me que a vida não é só aqui. Anjos não podem ser vistos quando bem entendemos; quando surgem à nossa frente, querem significar algo. E humanos não podem namorar anjos impunemente. Em seguida, alguém soprou-me ao ouvido sobre as visões angelicais de William Blake na infância, as quais sua mãe curou com uma boa sova. “É melhor que deixes os anjos em paz”. O medo do desconhecido afasta-nos da felicidade; há várias pontes a serem transpostas, mas a aparente precariedade faz que permaneçamos do lado que conhecemos e não cheguemos jamais ao outro lado do abismo.

Passaram-se os dias, as noites, semanas, o mês... mas a imagem diáfana não se despregava das paredes brancas do meu cérebro. Eu, pecador, quis aquele anjo para mim, para abraçá-lo, beijá-lo, mas tinha comigo a certeza dos malditos de que se voltasse a São Bravo não o reencontraria. A alegria foi voltando aos poucos, de quando em quando a imagem querubínica vinha-me à mente. Uma noite, sem esperar, deparei com ela sob uma frondosa mangueira que havia no fundo do quintal. O coração aos pulos estava pregando-me uma peça? Em dúvida, fui caminhando lentamente em sua direção e, num sorriso, seus braços abriram-se para me receber em seu seio. Beijei-a inicialmente na face, para em seguida colar meus lábios aos seus, sem a preocupação de que fosse uma entidade de mundos outros. Palavras quiseram vir à boca, mas nossos lábios uniram-se novamente. Contou-me, então, que a família estava se mudando para a cidade, a mãe decidira que os meninos voltariam a estudar.

Alguns dias depois, a família instalou-se numa casa próxima à minha, com um quintal em frente onde a menina cantava, a plenos pulmões, para as flores brancas da laranjeira, para os pardais, às formigas, para as lagartixas, canções como "Rita Jeep" e "Eleanor Rigby". De vez em quando erguia a cabeça para o céu e entregava a sua dança, ao tilintar de guizos, amarrados nos pulsos e tornozelos, às nuvens, ao azul, às sílfides, às fadas e duendes, a Deus, ao plano de onde ela emigrara. Era perceptível toda a banda do Sargento Pimenta, completa, acompanhando-a com guitarras, cornetas, bumbos e tambores. Um dia, até o flautista de Hamelin veio acompanhar a parada. De outra vez, o Chapeleiro Louco promoveu um chá das cinco especialmente para ela. Ou seria um chá das seis? (Era horário de verão!) Todos riram à larga quando o Ratão do Banhado saiu de dentro da chaleira. Éramos inseparáveis, passávamos juntos toda a possibilidade das horas. Ela levava-me pela mão para ver um pequeno cogumelo que crescera num tronco podre, após uma chuva torrencial. Com um sorriso maroto, mostrava a joaninha no dorso da mão, segredando-me que dela ouvira uma história, a qual só me contaria se lhe desse um beijo. Os dias passavam rápidos; do tempo, tínhamos noção somente quando o Coelho Branco atravessava o nosso caminho, esbaforido, a gritar:

– É tarde, é tarde!

2 comentários: