quarta-feira, 24 de novembro de 2010
CAIBRA
por Edson Negromonte
desenho de Federico Fellini
A primeira paisagem de Antonina, para quem chega por terra, é a zona de meretrício, no km 4. Antigamente, a zona era dividida em pobre e rica. A parte rica, conhecida como boate, era servida por mulheres jovens e bonitas, às vezes música ao vivo e uísque de origem duvidosa, paraguaio. A boate era frequentada pelos figurões locais, onde eles faziam questão de comemorar o aniversário, com o consentimento das esposas, mas depois da festinha em casa, junto à família. Isso nos anos 70, outros tempos. Voltando recentemente à cidade, percebi algo estranho: a boate não existe mais. Mas o que me deixou mais intrigado ainda foi o desaparecimento do morro no qual ela ficava instalada, como a guardiã moral dos cidadãos antoninenses. Como pode um morro sumir assim, sem mais nem menos? Perguntei aos amigos sobre o mistério da boate, do desaparecimento do morro e evasivas quase todas as respostas. A única plausível é a de que, depois que a boate foi extinta, devido à derrocada do movimento portuário, o morro foi tragado pela voracidade dos tratores das cidades vizinhas. Lembro-me, na década de 1980, enquanto comia um sonho na Lanchonete do Osvaldo, de receber das mãos de um cafetão um convidativo cartão: Pigalle, good girls, good drinks, good nights. Não pude deixar de sorrir diante da singeleza do inglês econômico, que eficiente dava o recado, tal e qual um velho blues. Dá até para imaginar John Lee Hooker, pedras entre os dentes podres, engrolando o refrão good gils, good drinks, good nights.
Talvez em decorrência da parte rica da zona se chamar Pigalle é que a parte pobre se chamasse Picão, assim apelidada por algum gozador. Até hoje o Picão está lá, encolhido, envergonhado, meia dúzia de casas de madeira, sem pintura recente, escuras, descascadas, entregue às moscas, porém resistente, as mulheres modorrentas sentadas à porta. Na adolescência, íamos, eu, Luiz Henrique, Geraldo, Maurício e Chico, ao Picão, em busca de diversão, bagunça, ar de malvados, tomar umas cervejas, dar risada à toa. Ninguém comia ninguém, estávamos quase sempre duros e a pouca grana que pintava era destinada às novidades do rock, Alice Cooper, David Bowie, Marc Bolan, Gary Glitter, o último do Pink Floyd.
A personalidade mais importante da zona era a Caibra, dona de uma das casas do Picão. Sempre atenta, olhos inquietos, um olho cuidava do gato enquanto o outro fritava bolinho, de vestidos vistosos, a boca rebocada de um vermelho incerto, gorda, excessivamente gorda, felliniana, Caibra era uma lenda para qualquer garoto. Além de lembrar as figuras dos filmes de Fellini, Caibra também remetia à "Balada da Gorda Margô", de François Villon, o poeta putanheiro. Corria, à boca pequena, que Caibra era mãe de uma moça belíssima, criada por uma família da cidade. Às vezes, ela ia visitar a filha, levar presentes, regalos, matar a saudade. Entre as famílias antoninenses era comum adotar os filhos das mulheres da vida, o que garantia um futuro melhor para as crianças.
Uma vez, já embriagado e, por isso mesmo, mais confiante, fui tirar uma onda com a Caibra que, outrora prestadora de bons serviços à população e à marinhagem, agora idosa, não transava com mais ninguém, somente administrando a casa e as suas meninas. Estava ela sentada a uma das mesas, com a mão gorda de dedos curtos pousada sobre o tampo, vigilante. Não sei por que cargas d'água, pareceu-me convidativa a velha senhora. Ora, para a minha cabeça tomada pelo álcool transar com a puta mais lendária de Antonina (até Maneco Diabo se referia a ela com respeito), seria um troféu. Romântico, como só um poeta maldito ousa ser, pousei delicadamente, como um namorado, minha mão sobre a mão da pachorrenta rameira, um convite para levá-la ao leito. Caibra revidou a carícia do cabeludo que eu era com um violento tapaço em minha mão boba. Refeito do susto, dei de cara com o olhar risonho de uma avó zombeteira.
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terça-feira, 16 de novembro de 2010
CARA DE CHUVA
por Edson Negromonte
Este era o apelido de Reinaldo: Cara de Chuva, e que só vinha tornar mais evidente a tristeza, a profunda tristeza da sua fisionomia. Embora o apelido lhe caísse bem, eu sempre o chamei pelo nome, conhecia o rapaz bem antes de os antoninenses o terem apelidado de maneira tão maldosa, porém nunca vi um apelido calhar tão bem a alguém. Chamá-lo de Cara de Chuva era, para mim, evidenciar ainda mais essa tristeza intrínseca que todos os homens, especialmente Reinaldo, carregam. Ele era funcionário do Banco do Brasil, levado por meu pai a assumir uma posição melhor, a chefia do câmbio, na agência da cidade de Antonina, no Paraná. Depois do expediente, Reinaldo enchia a cara, e isso não é força de expressão, ia peregrinando de boteco em boteco até acabar na zona de meretrício, onde ficava o único bar aberto toda a madrugada. Nunca se soube de uma única falta de Reinaldo ao serviço, era um funcionário exemplar, cordato, atencioso.
Numa dessas madrugadas em que não se consegue conciliar o sono, estava eu sentado no meio-fio, no cruzamento das ruas Dr. Carlos Gomes da Costa e Conselheiro Alves de Araújo, às voltas com os questionamentos da adolescência, quando vejo a distância a figura cambaleante vindo em minha direção. Não restava a menor dúvida, só podia ser ele: Reinaldo. Sentou-se ao meu lado, dizendo com voz engrolada:
- Eu bebo, você sabe que eu bebo, mas nunca bebi o juízo.
Olhei-o com um sorriso condescendente e, pela primeira vez, à luz difusa da iluminação da rua (ah, as noites de breu de Antonina), eu percebi, em sua face, a dor profunda de um homem. Toda a tristeza mostrava-se em suas sobrancelhas negras, espessas, caídas em demasia nas extremidades, líquidas.
- Eu bebo desde pequeno, de criancinha. Meu avô tinha alambique, lá em Ponte Nova, antiga Fazenda da Manteiga, eu era o experimentador oficial das cachaças do velho. Por isso, o meu fígado é resistente, eu tenho resistência ao álcool, não fico bêbado nunca...
Parou repentinamente de falar, perscrutando a noite.
- Edson, você já conhece o meu filho?
- Não, ainda não.
- Vamos lá em casa, pra você ver o bichinho.
- Deixa pra outro dia.
- Não, eu faço questão.
- Já é muito tarde, a Lúcia deve estar dormindo.
- Você não vai me fazer uma desfeita dessas.
- Reinaldo, a Lúcia ainda tá de quarentena...
Tanto ele insistiu que acabei indo conhecer o menino, entrando pé ante pé na casa quieta, adormecida. No berço, a sono solto, o herdeiro do meu orgulhoso amigo.
- Ainda não sei que nome dar a ele. Pensei em White Horse, nome forte, de índio, pra ser um vencedor; Johnny Walker também é bom. O que você acha? É, acho que vai ser Johnny Walker mesmo, mas, como eu sou nacionalista, o apelido vai ser Tatuzinho. Ou Pitu?
Este era o apelido de Reinaldo: Cara de Chuva, e que só vinha tornar mais evidente a tristeza, a profunda tristeza da sua fisionomia. Embora o apelido lhe caísse bem, eu sempre o chamei pelo nome, conhecia o rapaz bem antes de os antoninenses o terem apelidado de maneira tão maldosa, porém nunca vi um apelido calhar tão bem a alguém. Chamá-lo de Cara de Chuva era, para mim, evidenciar ainda mais essa tristeza intrínseca que todos os homens, especialmente Reinaldo, carregam. Ele era funcionário do Banco do Brasil, levado por meu pai a assumir uma posição melhor, a chefia do câmbio, na agência da cidade de Antonina, no Paraná. Depois do expediente, Reinaldo enchia a cara, e isso não é força de expressão, ia peregrinando de boteco em boteco até acabar na zona de meretrício, onde ficava o único bar aberto toda a madrugada. Nunca se soube de uma única falta de Reinaldo ao serviço, era um funcionário exemplar, cordato, atencioso.
Numa dessas madrugadas em que não se consegue conciliar o sono, estava eu sentado no meio-fio, no cruzamento das ruas Dr. Carlos Gomes da Costa e Conselheiro Alves de Araújo, às voltas com os questionamentos da adolescência, quando vejo a distância a figura cambaleante vindo em minha direção. Não restava a menor dúvida, só podia ser ele: Reinaldo. Sentou-se ao meu lado, dizendo com voz engrolada:
- Eu bebo, você sabe que eu bebo, mas nunca bebi o juízo.
Olhei-o com um sorriso condescendente e, pela primeira vez, à luz difusa da iluminação da rua (ah, as noites de breu de Antonina), eu percebi, em sua face, a dor profunda de um homem. Toda a tristeza mostrava-se em suas sobrancelhas negras, espessas, caídas em demasia nas extremidades, líquidas.
- Eu bebo desde pequeno, de criancinha. Meu avô tinha alambique, lá em Ponte Nova, antiga Fazenda da Manteiga, eu era o experimentador oficial das cachaças do velho. Por isso, o meu fígado é resistente, eu tenho resistência ao álcool, não fico bêbado nunca...
Parou repentinamente de falar, perscrutando a noite.
- Edson, você já conhece o meu filho?
- Não, ainda não.
- Vamos lá em casa, pra você ver o bichinho.
- Deixa pra outro dia.
- Não, eu faço questão.
- Já é muito tarde, a Lúcia deve estar dormindo.
- Você não vai me fazer uma desfeita dessas.
- Reinaldo, a Lúcia ainda tá de quarentena...
Tanto ele insistiu que acabei indo conhecer o menino, entrando pé ante pé na casa quieta, adormecida. No berço, a sono solto, o herdeiro do meu orgulhoso amigo.
- Ainda não sei que nome dar a ele. Pensei em White Horse, nome forte, de índio, pra ser um vencedor; Johnny Walker também é bom. O que você acha? É, acho que vai ser Johnny Walker mesmo, mas, como eu sou nacionalista, o apelido vai ser Tatuzinho. Ou Pitu?
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