quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O MAIOR MÁGICO DO MUNDO

Edson Negromonte


O avô de Maquiné tinha sido mágico. Aliás, um grande prestidigitador. Dizem que o homem era chegado até em taumaturgia. Viajara, quando jovem, por vários países. De um deles, da Índia, se não me engano, trouxera uma arca, à qual ninguém tinha acesso. Mesmo quando ele estava roncando, a sono solto, ninguém da família se atrevia a vasculhar os seus pertences. Corria na cidade uma piada sobre os seus sortilégios, engendrada nas muitas horas de ócio criativo que os moradores de Antonina dispõem. Contava-se que o avô de Maquiné abandonara a carreira devido a um grande desastre ocorrido em teatro da capital argentina, durante uma turnê com artistas locais: atores, cantores, músicos, poetas, declamadores.

Durante o espetáculo, era o Mágico Xandu dizer “pomba” e um destes pássaros saía batendo asas das suas mãos. Se ele dissesse “coelho”, do nada surgia um da cartola. Até um pônei apareceu, sabe-se lá de onde. Da casaca é que não pode ter sido. Serrou uma mulher da plateia ao meio. Muito aplaudido na primeira noite, bem mais que os outros, provocava entre os seus pares certo desconforto. Pode-se dizer ciúme? Dizia-se discípulo de Chung Ling Soo, o maravilhoso conjurador chinês. Na noite seguinte, o teatro lotado esperava ansioso a última atração, o Magnífico Xandu. Quando ia entrar no palco, todo senhor de si, aconteceu de o grande ilusionista tropeçar. Alguém pusera de propósito um tijolo em seu caminho. Dizem os cronistas de nossa cidade que esse ato vil foi ideia do invejoso Bairon, um dos nossos poetas locais que fizemos questão de esquecer, ajudado por Polidoro Bautista, um homúnculo coxo que já não existe mais. Polidoro foi um dos maiores declamadores de poesia de nossa terra, de voz tonitroante, apesar da baixa estatura: 31cm. Deixou inédito o livro “Vãs Piras”, o qual também tratamos de esquecer e as traças de roer.

A dor da topada fez Xandu gritar “merda”. A plateia, atenta, achou que o impropério fosse parte do show. Sem crer, viu a conhecida massa marrom descendo do palco, subindo pelas cadeiras, como coisa viva. E de péssimo odor. Alguns até chegaram a aplaudir, encantados. Quando perceberam que aquilo era mesmo o que Xandu tinha invocado, subindo pelos sapatos, pela barra das calças, pelas pernas, um desespero; atropelaram-se, escorregaram, foram ao chão. Poucos se salvaram, as portas laterais estavam fechadas. A inteligente e bem aparelhada polícia de Buenos Aires chegou à conclusão de que um mero prestidigitador não podia ser responsabilizado pela tragédia; fora o esgoto que transbordara. Xandu prometeu a si mesmo nunca mais abrir a boca. E, para sempre, mudo ele ficaria. Assim o conheci, em sua providencial ausência de impulso verbal. Os únicos sons que lembro de tê-lo ouvido emitir foram os grunhidos do ronco, quando íamos roubar Gardenal da sua mesinha de cabeceira.

Quando ele não estava de ovo virado, o seu comum, num movimento furtivo de olhos anunciava, silencioso, que estava prestes a fazer um truque. Sua arte refinada chegara ao ponto de não necessitar mais da conjuração das palavras. Com gestos cabalísticos, tocava o peito, batia três vezes no coração, ante os olhares apreensivos dos meninos, e da terra fazia brotar uma pequena labareda. Num gesto de mandraque, guardava o fogo no bolso do paletó e, como se nada demais tivesse feito, voltava para a cadeira de balanço em frente à TV, nheec, nheec, nheec. Boquiabertos, o rodeávamos. Ele, absorto com as imagens, distraía-se com o movimento coleante das chacretes. Posso dizer catatônico? Excitado, você diria. Certa vez, depois de tirar várias moedas de nossas orelhas, ele apontou para um quadro pendurado na cozinha e fez correr sangue do Sagrado Coração de Jesus. Sua mulher avisou-o de que aquilo era pecado. Sorriu malicioso. De outra, essa eu não vi, me contaram, transformou vinagre em vinho, e vinho em água. E, dentro da água, na tigela, a nadar vários lambaris. Seu neto dizia que o vira multiplicar pães, mas que ninguém comera, de medo. A convivência com o mágico não era fácil; quando esquecia de tomar o remédio, punha-se a quebrar pratos, que voavam pela casa toda. Depois, com a força da mente, tentava em vão colá-los. Cansado do esforço excessivo, voltava à cadeira de balanço, nheec, nheec. Com tal capacidade de sacar moedas das orelhas dos meninos, não compreendíamos como Maquiné estava sempre duro. Nheec. Perto dos 80 anos, Xandu se recolheu de vez ao quarto, não saiu mais da cama, olhar absorto no teto de madeira, pó de cupim caindo sobre ele, sobre o cobertor. Só o víamos quando íamos surrupiar alguns comprimidos de Gardenal para os embalos de sábado à noite, no Clube dos Operários.

Após muito tempo, de volta à cidade, lembrei-me dessa passagem de minha juventude, mas principalmente da arca misteriosa, a qual ninguém se atrevia a sequer olhá-la, o que dirá abri-la. Encorajado pela idade, fui à procura de Maquiné, que ainda mora no mesmo endereço. Pai de família, convidou-me para uma tomar uma no bar da esquina. Depois de uns copos, como quem não quer nada, perguntei-lhe sobre o avô. Falecera.

– E a arca?

– Desapareceu, nunca mais se soube dela.

– Como assim?

– Foi embora.

– Você está falando como se aquilo tivesse livre arbítrio, como se fosse coisa viva.

– E não era? – arrematou.

Ficamos em silêncio, cada um olhando para o seu copo de cerveja. Depois de olhar para os lados, Maquiné esticou o pescoço e segredou:

– Ele morreu de combustão espontânea.

– Quem?

– Levou junto com ele o segredo.

– ...

– Queimou tudo, as roupas, lençol, a gordura do corpo... menos as mãos. Até a arca, queimou. Cinzas, não sobrou nada. Só as mãos. De manhã, minha avó foi levar o café para ele e foi só o que viu: as mãos do grande mágico que ele sempre foi. E um cheiro adocicado.

– ...

– Pensa que ela gritou? Nem.

Admirando o copo, Maquiné passou o dedo no vidro suarento.

– Recolheu tudo com a pazinha do lixo, botou numa urna que ninguém, mesmo os de casa, sabia da existência. Botou as mãos, intactas, numa sacolinha. Nem chorar, ela chorou. O médico veio e atestou o efeito pavio, de dentro pra fora, uma vela às avessas. Ela mandou depositar a urna no jazigo da família, no Saivá. Não teve guardamento, nem mesmo enterro. Pensa que alguém na cidade estranhou? Nem, nem. Falar disso em casa, virou tabu. Eu, de minha parte, nunca fui visitá-lo. Tá lá, descansando... as cinzas. E as mãos? Intactas

– Garçom, mais uma! Bem gelada, estupidamente.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O EMPREGADO

Edson Negromonte

Ele trabalhava na loja de meu pai, não sei por que cargas-d'água. Afinal de contas, não sabia atender as pessoas, não sabia fazer contas, tinha preguiça de varrer o chão, às vezes era até respondão. Gordinho e de pele morena, quase negra, gostava mesmo de ficar sentado nos sofás em exposição e só pulava dali, satisfeito, quando alguém das imediações pedia com urgência um bujão de gás, o qual ele, hercúleo, erguia acima da cabeça e saía quase correndo, sorridente, para fazer a entrega. Alguns maldosos diziam que assim o estávamos treinando para ser lutador de boxe. Mentira deslavada. À primeira vista, o rapaz (por certo não tinha mais de quatorze anos) podia parecer uma espécie de agregado, algo assim como um protegido do patrão, mas não, ele nunca fez nenhuma refeição em nossa casa. Quando admoestado pelos outros funcionários, costumava dizer:

– Eu como na sua casa? Eu bebo na sua casa? Então, me deixa em paz!

Após o expediente, voltava para o aconchego do lar, onde a mãe o esperava com um prato de sopa quente, preparada com carinho para o filho único. Não vivia mais dos favores de ninguém, tinha carteira assinada e as regalias que isso pode proporcionar, assistência médica, décimo terceiro e principalmente férias, coisa que a mim mesmo, como filho do dono, não competia. De certo, sem escamotear a verdade, o que não é a intenção da narrativa, é que o rapaz tinha problemas mentais. Mas, problemas mentais, quem não os têm? Em maior ou menor grau, somos todos avariados mentalmente.

Desculpe, mas até hoje não sei o seu nome. João? José? Melquíades? Nabucodonosor? Sempre chamei-o pelo apelido. Em Antonina, todos indistintamente têm apelido, uma tradição que pode vir dos avós, ou mesmo bisavós, estendendo-se a toda a família, homens, mulheres e crianças, e que os descendentes continuam carregando pela vida afora. E os descendentes dos seus descendentes. Bom, estava ele, num dia de verão, encostado no muro da estação ferroviária, em frente à Praça Carlos Cavalcanti, observando o chafariz desativado, quando um movimento qualquer no alto do campanário da Igreja do Bom Jesus do Saivá chamou-lhe a atenção. Firmou a vista para perceber melhor o que era aquela pequena nuvem negra que ia e vinha, em movimentos crescentes e decrescentes, de dentro para fora, de fora para dentro da pequena torre da casa do Senhor, onde está sepultado o capitão-mor Manoel José Alves. Então, o menino aguçou os ouvidos para ter certeza. E o que era um som indefinido, mostrou-se um zumbido. Sim, agora ele tinha certeza: eram abelhas. Um enxame! E formado dentro do velho sino de cobre, que há muitos anos não soava, desde que a prefeitura interditara a igreja para uma sempre procrastinada reforma. Num inocente ato de molecagem, ele apanhou uma pedra no chão e, com a convicção do braço direito, arremessou-a certeira, direto no sino, interrompendo o constante vai e vem dos insetos. Após tanto tempo mudo, o sino novamente ressoou, não chamando os fiéis para a missa, nem despertando os vivos através de toques fúnebres, ou quiçá um incêndio inesperado. Um único som, agudo, que reverberou nos ouvidos da população. As abelhas, agora enfurecidas, saíram à cata do culpado. Quem ousara interromper o sono da rainha? Gente corria em todas as direções, sem direção, socorrendo-se, em desespero, batendo com os chapéus na cabeça, nos braços, no corpo, a gritaria das mulheres, espaventando os cabelos, abrigando-se na estação, nos terrenos baldios, nas casas dos outros como se casas suas fossem. Somente um senhor, bem idoso, não interrompeu o banho diário de sol. Permaneceu sentado num dos bancos da praça, sem poder correr dali; o avançado da idade lhe enfraquecera as pernas. As negras abelhas africanas tomaram-lhe o corpo todo, a cabeça, com venenosas ferroadas, entraram pelos ouvidos, narinas, pela boca, interrompendo o grito de socorro e ocasionando a morte quase imediata por envenenamento. Descoberto o culpado, a maldade intrínseca ao ser humano apelidou o menino de Abelheira. E, para sempre, Abelheira ficou.

O que sei é que, independente de qualquer coisa, eu gostava de conversar fiado com Abelheira, quando os afazeres da loja permitiam. Era uma casa de comércio, de esquina, em frente ao Cine Ópera, nos moldes dos antigos armazéns, onde as pessoas podiam encontrar de tudo, desde alfinetes, linha, agulha, brinquedos, relógios, de pulso, de parede, discos, de todos os gêneros, da música caipira ao rock, passando pelas valsas vienenses, sucessos e Billy Vaughn, móveis populares, da cama patente à laqueada, do colchão de palha ao de espuma, do guarda-roupa de duas portas, de pinho, aos de quatro portas, de imbuia, sofás, poltronas, cadeiras e mesas, de fórmica, fogões, fogareiros, geladeiras, barbante, corda, âncoras, a motores de barco, bicicletas, Calói e Monark, mais a Garelli, a novidade das motonetas. Em meio à movimentação que tal variedade de opções fornecia, Abelheira era sempre visto refestelado em um dos sofás, ora olhando para o nada lá fora, ora retribuindo o sorriso zombeteiro de um cliente, mas sempre a postos para o chamado urgente de uma dona de casa desesperada com a súbita falta de gás, justamente quando estava cozinhando o feijão ou assando um bolo.

Num final de expediente, extenuado, larguei o corpo no sofá. Sentado ao lado, Abelheira aguardava que meu tio, o gerente, o mandasse para casa. Então, Abelheira veio se aproximando, chegou mais perto, olhou-me bem sério, mostrando o punho direito fechado, como se ali escondesse alguma coisa. Sacudiu a mão para, logo em seguida, encostá-la delicadamente na orelha, como se estivesse ouvindo algo muito sutil, deleitando-se com uma suposta música das esferas. Ao mesmo tempo que tenho medo, devo admitir que sinto uma grande atração, desde a mais tenra idade, pelos loucos. Assim, curioso, embarquei na brincadeira e perguntei o que ele escondia na mão fechada.

– O voo de uma abelha – respondeu.

Surpreso, retruquei:

– Não o voo, mas a abelha por certo.

Ora, não se aprisiona voos, mas insetos, pássaros, sonhos, enfim, coisas concretas.

– Não, o que eu tenho aqui é o voo da abelha – disse, indignado. – Quer ele pra você?

– O quê? O voo da abelha?

– Sim, isso mesmo.

– Não, cara, voos não podem ser aprisionados...

– Você não entende nada! Você nunca vai entender nada! – gritou.

Abrindo a mão espalmada, jogou violentamente o imaginário voo ao chão. Então, levantou-se e foi embora para casa, sem se despedir.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

O MUSEU DE CERA


Edson Negromonte


Quando minha família chegou em Antonina, no início de 1969, no mês de fevereiro, uma das primeiras coisas que fiz foi andar pelas ruas estreitas, de irregulares e centenários paralelepípedos, ainda solitário, sem amigos, sem saber de ninguém. Perambulava, a esmo, quando fui atraído por um murmúrio deveras afetuoso ao meu coração, o marulho do mar. Cheguei assim lentamente ao trapiche em frente ao Mercado Municipal, abri os braços e disse, para mim mesmo, sem que percebesse no momento a verdade por trás desta constatação:

– Eu nasci aqui, esta é a minha terra...

De que recônditos da mente surgira tal ideia? Talvez do, até então inesperado, sentimento cigano de expatriação, de desterro em minha própria terra. Catarinense, nascido em Canoinhas, perto da divisa com o Paraná, mudei-me ainda criança para Blumenau, depois São Francisco do Sul (cidade litorânea onde fiz o primeiro ano primário), para mudar-me para Niterói, às margens da baía da Guanabara, de algumas boas lembranças e pouquíssimos amigos, os quais foram definitivamente deixados para trás. Em nossas mudanças, levávamos somente a bagagem de mão. Agora, aos quinze anos, encontrava-me de novo na encruzilhada de uma cidade aparentemente estranha, mas de posse da terrível clarividência de que a terra antoninense era a minha pátria, a terra natal, o berço que eu tanto buscara, o acalanto que se ouve à noite sem saber de que doce boca materna vem. Postado no trapiche, braços abertos em cruz, eu não podia em sã consciência assegurar que as águas lamacentas da pequena baía eram mais azuis que as de São Francisco; as águas da baía de Antonina eram lodosas, escuras, paradas, mas somente a mim pertenciam, com o cheiro fétido de seres marinhos em decomposição, baixios à mostra na vazante, as pobres canoas dos pescadores das ilhas próximas, o falar característico das sílabas escandidas. Era a repentina volta a mim mesmo, ao mais íntimo do meu ser, ao odor pútrido dos lodaçais do coração. Lembro-me nitidamente de, nos primeiros meses, andar sozinho pelas ruas, apesar de já conhecer várias pessoas, desembocando invariavelmente no trapiche, entretendo-me com o fluxo e refluxo das marés, com a movimentação dos astros. Sorvia primeiro, em pequenos e tímidos haustos, a liberdade nunca antes permitida, porque desconhecida. Em seguida, com volúpia, inalava em espirais o ar, sentindo o próprio corpo impregnado da sensação pegajosa e sensual do salitre, do almejado voo da alma até a Ilha do Corisco, o humilde local onde teve origem a doce Antonina.

Passavam-se, assim, os dias, os meses, mornos, chuvosos, úmidos, untuosos, escorregadios, quando chegou agosto, o mês em que os habitantes começam os preparativos para as comemorações do dia 15, a tradicional Festa de Nossa Senhora do Pilar, a padroeira da cidade. Inúmeras barracas ofereciam doces, cocadas, pés de moleque, paçoca caseira, churros recheados com creme de leite, comidas típicas da região, como o barreado e o caldo de siri, miudezas, e muitas quinquilharias, desde brinquedos de corda, como sapos que saltavam e passarinhos que batiam as asas, de corda, feitos de lata, até nojentos cocôs de papel machê (um desses enfeitou, durante muito tempo, o tampo da minha escrivaninha). Acontecia, ainda, um grande foguetório, principalmente na igreja matriz, o qual em nada ficava devendo em poesia e esplendor à composição "Feux d'artifice", de Debussy. E nem mesmo aos canhonaços da "Abertura 1812", de Tchaikóvski. As barracas rodeavam a praça principal, mas cada desvão de rua podia esconder uma tenda improvisada, cheia de novidades, com um estrangeiro ávido pelo nosso pouco dinheiro, disposto a fazer descontos que chegavam às raias do desconfiável. Ou assim pensávamos, pois o confiável vendedor jurava até mesmo por Alá. Ou assim nos fazia crer, em sua fala arrevesada. Portas, antes fechadas, sequer percebidas, abrigavam agora universos, nas quais eu, em meus devaneios, eu lia a advertência "Só para Loucos", “Só para Raros”, motivado pelas leituras de "O Lobo da Estepe", de Hermann Hesse. Noutras, havia um grande X, pintado com a cal medieval. Os caprichos da mente adolescente são o fermento mais eficiente para a possível escritura do adulto de amanhã. Então, tomado do espírito exploratório típico da idade, adentrei uma porta, ao lado do Hotel Cristina, no final da Ladeira Ildefonso. Pintada em caracteres fantasiosos, em vermelho e amarelo, quase circenses, uma plaqueta anunciava Extraordinário Museu de Cera. Ao me acostumar com a penumbra reinante, divisei o vulto de um homem, velho, meio arqueado pelo peso da idade, que andava para lá e para cá, agitado, numa azáfama incessante, dando os últimos retoques no seu ganha-pão, com o qual ele mercadejava pelas cidades do interior do país. Ao ver-me, apesar da correria, foi cortês, dizendo-me que ficasse à vontade e, como o museu ainda não estava funcionando, eu não precisaria pagar a entrada. Mas com uma condição, a de que eu, agora um improvisado arauto, transmitisse a boa-nova à população.

Para a minha imaginação fantasiosa, nem mesmo o museu de Madame Tussauds era capaz de superar em grandeza as figuras ali expostas. Até mesmo os Beatles estavam ali, inclusive o sempre preterido Ringo, sentado à bateria, baquetas em punho, rufando tambores, batendo nos pratos. Olhavam-me, de alto a baixo, o presidente Vargas, de pijama listrado, uma mancha de sangue e pólvora no peito; Lampião e Maria Bonita (nossa, ela era bonita mesmo!), vestidos a caráter, de roupas cáqui de cangaceiro, cinturões carregados de balas de fuzil, acompanhados de Corisco, o Diabo Loiro. E Dadá Maria, cadê? Mais o presidente Kennedy, de cara de louça, tendo ao lado a atriz Marilyn Monroe, preocupada em baixar o vestido branco, pregueado, cuja calcinha, aliás, calçola, um ventilador inconveniente fazia questão de expor. Tinha ainda o topetudo Elvis Presley, de violão em punho; engrolando "Blue Suede Shoes", Roberto Carlos e Wanderléa, também o Zorro, a raposa da Califórnia, de roupa negra de cetim, capa e espada, botas de couro; um recém-modelado presidente Costa e Silva, o qual desaparecera num voo aéreo, talvez abduzido por forças alienígenas; Frankenstein, com a cara de Boris Karloff; o imponente chefe índio Touro Sentado, até o maldito Adolf Hitler, de mão estendida, gritando uma ordem qualquer em alemão, entre tantas outras personalidades. No entanto, o que mais me chamou a atenção foi uma porta de ferro, aparentemente proibida, encimada por um pequeno gradil, também de ferro, sobre a qual piscava uma lâmpada vermelha. Sem que o velho percebesse, puxei um caixote. Subi e, estarrecido, dentro de um cubículo, vi um homem sendo eletrocutado, amarrado a uma cadeira elétrica.

– Sabe quem é?

– Não...

– Caryl Chessman, o Bandido da Luz Vermelha! – disse o dono do museu, com um sorriso de incontida satisfação. – Não está perfeito?

Frente ao meu ignorante silêncio, ele retirou-se contrariado, retomando os preparativos. Como poderia eu dar algum parecer? Era a primeira vez que ouvia sobre o tal bandido. Naquele tempo, bandido para mim era somente Billy the Kid. E olhe lá. Nem mesmo Cara de Cavalo eu via com tanta nitidez. Lembro-me de quando eu e meu primo subimos o Morro do Cavalão, em Niterói, em busca de Cara de Cavalo, depois que uma prima mais velha contou-nos que ele lá se encontrava escondido. Muitos anos mais tarde fui compreender porque Cara de Cavalo era uma espécie de herói para a classe média, quando deparei nas páginas de um livro sobre arte brasileira com a obra de Hélio Oiticica: "Seja Marginal, Seja Herói", cujo estandarte mostrava o bandido caído, baleado. Em tempos estrangulados, como os que vivíamos, sob uma sangrenta ditadura militar, que transformava verdadeiros defensores da pátria, como os guerrilheiros do Araguaia, em bandidos com cabeça a prêmio, os artistas vingavam-se transformando bandidos populares em heróis.

Ao voltar para casa, entusiasmado com o que vira no museu, deixei minha irmã radiante. Aos doze anos, apaixonada por Paul McCartney, essa era a chance única de vê-lo em carne e osso. Sim, em carne e osso, tal era a perfeição das figuras expostas. Inflamado pela imaginação, cheguei a segredar-lhe que poderíamos vê-lo sangrar, se ela quisesse. Bastava levarmos um canivete escondido. Repeliu horrorizada a ideia. E tanto insistiu a betlemaníaca que tive de levá-la imediatamente ao local; ela precisava conhecer pessoalmente o ídolo.

Ao entrarmos, o dono do museu arregalou os olhos miúdos e não os despregou mais de minha irmã. A qualquer ponto que nos dirigíamos, lá estavam os dois olhinhos nos observando, como se fôssemos capazes de roubar a estátua de Paul McCartney. Inocentemente, minha pequena irmã só tinha olhos para o beatle, voltando a ele de vez em quando, tocando-lhe o terno, a mão, sorrindo para mim, sorrindo consigo mesma, sorrindo para ele. Era tocante vê-la assim, como um anjinho que estendesse a mão ao Anjo da Guarda. Íamos e voltávamos, de uma figura à outra, encantados, como se, de um momento para outro, todos fossem adquirir vida. E sairiam, então, andando em nossa direção, cumprimentando-nos. Daí, então, ouviríamos "Ticket to Ride", "Help" e "Splish Splash", costuradas por um discurso do Führer, entre os raios e trovões de um antigo filme de terror, em preto e branco, que nos daria vida. Quando fizemos menção de sair, o dono do museu correu pressuroso em nossa direção:

– Peça permissão ao seu pai que deixe sua irmãzinha posar para mim. Ela será modelo para a mulher do Zorro. Eu estive buscando essas feições em
minhas andanças.

Meu pai concordou, desde que eu a acompanhasse e não desgrudasse os olhos dela, em momento algum. Ao seu lado permaneci durante uma manhã inteira, enquanto o homem modelava, em cera, o rosto de minha irmã. Avisou-nos que, no dia seguinte, poderíamos entrar de graça, para admirar a obra. Conforme combinado, depois do almoço, lá estávamos os dois, com nossos pais, curiosos. Magnífica a semelhança! Era como se víssemos a nossa pequena ali: cabelos castanhos escuros, olhos de jabuticaba e pele cor de jambo. Mas, para mim, alguma coisa não estava de acordo, algo me incomodava, havia naquela sinfonia uma nota dissonante. É que, apesar do frescor do semblante, em tudo igual ao original, a minha irmãzinha, de doze anos, adquirira, de um dia para o outro, corpo de mulher, pernas longas, e insuspeitados peitos... De cera, é claro!

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

PAIS NÃO MENTEM JAMAIS

Edson Negromonte


Minha filha Cárita veio visitar-nos. Ela chegou depois dos irmãos, por ocasião das festas de fim de ano. E, como sempre acontece nessas reuniões familiares, ficamos a lembrar das nossas peripécias, bagunças e aventuras. As lembranças são quase sempre as mesmas, repetem-se, mas não nos cansamos de contar e recontá-las. E sempre rimos muito, como se fosse a primeira vez. Uma das minhas passagens favoritas, que sempre faço questão de contar, prima pela singeleza: as três crianças (o caçula Augusto viria alguns anos depois) já estavam aboletadas dentro do Fusca, prontas para passear, quando, olhando pela janela do carro, Gabriel, o menor de todos, ainda atrapalhado com as palavras, mas já um romântico inveterado, disse:

– Pai, precisamos fazer, um dia, um niquepique.

– Hahaha, é piquininique, Biel! – exclamou Tárik, do alto dos seus sete anos, o catedrático já estava na primeira série escolar!

– Ai, como vocês são burros! É nipinipique – corrigiu-os Cárita. – Não é, pai?! – perguntou-me imediatamente, em busca de confirmação.

A única menina em meio a três meninos (não, eu não sou o terceiro menino. Agora, Augusto já tinha nascido), é claro que ela não poderia jamais tomar gosto por bonecas. As suas brincadeiras eram de revólver de espoleta em punho, trepando em árvores e jogando goiabas verdes nos desavisados que passavam pela rua. De vez em quando, movida por um inesperado sentimento materno, tirava as bonecas, poucas, de baixo da cama, onde dormiam um sono quase eterno, e, em vez de embalá-las para dormir, pintava-lhes os olhos com caneta esferográfica azul, deixando-as parecidas com palhaços de um circo mambembe, algo assim como a pintura facial de Alice Cooper. Logo em seguida, as suas pobres filhas choravam, pedindo para voltar ao agradável limbo de onde tinham sido repentinamente arrancadas. E Cárita (o seu nome foi-me inspirado pela canção "O Caritas", de Cat Stevens, além de ser um anagrama de Tárik) podia assim retornar às brincadeiras com os meninos, às molecagens, às cetras, bolas de gude e aeroplanos improvisados em caixas de papelão e madeira.

Ao mudar para uma chácara, em Mato Dentro, tomamos gosto pela pescaria. Havia, num sítio mais adiante, seguindo três quilômetros adentro por uma convidativa estradinha de terra, um tanque cheio de carás e tilápias, com paturis brincando na margem oposta. Ao voltarmos para casa, depois de limpos, os peixinhos eram saboreados, fritos, acompanhados de arroz branco, farinha de mandioca e limonada bem doce. Íamos todas as vezes por essa estradinha, como os personagens de "O Mágico de Oz", cantarolando bem alto, a plenos pulmões (nossa canção favorita era "Volare", ocasião em que botávamos a boca no mundo, num italiano deveras macarrônico. Sem sabermos a letra, inventávamos mais um dialeto). E voltávamos já no final da tarde; de quando em quando nos calávamos para dar vez aos passarinhos, que piavam incomodados com a nossa cantoria ou, talvez, quem sabe, dela compartilhando, fazendo backing vocals. No pasto ao lado da estrada, Cárita ia, a certa distância, colhendo morangos silvestres, como uma Chapeuzinho Vermelho que comia os doces em vez de levá-los à vovozinha. Enquanto isso, sem que ela percebesse, nós, os homens, os valentões, apertávamos aos poucos o passo. De repente, olhávamos para trás e, de olhos arregalados, gritávamos:

– Ai, meu Deus!

Saíamos correndo, fingindo ver algum abominável ser das trevas ao longe, na curva da estrada. Ela, correndo atrás de nós, sem olhar para trás, horrorizada, chorosa, ameaçava, pedras zunindo passavam rentes às nossas cabeças:

– Eu vou contar pra mãe, quando chegar em casa! Ela vai bater em vocês!

Rimos muito disso tudo naquele tempo e continuamos rindo até hoje, como se tivesse acontecido ontem. Basta nos encontrarmos para contarmos as mesmas velhas e originais histórias. O interessante é que não nos cansamos, as nossas histórias conservam um frescor que algumas pessoas não entendem. Algumas chegam ao desplante de dizer que já as conhecem. Como pode isso, se nós, os protagonistas, ainda não as sabemos? Que saudade das caçadas de rã, com lanternas, sem intenção de comê-las, mas somente observá-las e dar risada dos seus olhinhos esbugalhados, ou do nosso escorregador improvisado, deslizando sobre papelão na grama de um barranco que ia dar na exígua calçada da movimentada e perigosa Avenida Nove de Julho (quanta adrenalina!) ou das lições sobre o medo, quando, à noite, eu pedia para eles irem buscar algum objeto no segundo andar do sobrado onde então morávamos, totalmente às escuras. Desciam os degraus aos trambolhões, aterrorizados pelo grito fantasmagórico ao pé da escada.

– Viram como não existe fantasma? Não existe alma do outro mundo! Foi o pai que gritou! – eu esclarecia e repetia, então, o grito, conseguindo provocar-lhes ainda alguns calafrios. O medo é inerente ao ser humano. É tolo tentar escondê-lo de si mesmo, pois o medo deve ser encarado de frente. O verdadeiro guerreiro é aquele que sabe que tem medo, mas é capaz de enfrentá-lo.

Muitos nos achavam parecidos com a Família Addams, da TV; isso era para nós uma lisonja. Pena que jamais conseguimos ter uma mãozinha tão prestativa. Ou um mordomo que nos perguntasse, com voz cavernosa: – Chamou? O livro para leitura na hora de dormir, a nossa nursery rhyme, era, na grande maioria das vezes, um que dizia mais ou menos assim:

Lá vem vindo o curioso,
Que será que vai achar?
Um tesouro precioso
Ou coisas de arrepiar!

Pena eu não lembrar mais o nome do autor ou autora. À frase final, seguiam-se os gritos dos meninos, podendo aí incluir o pai das crianças, que era nesse momento o mais gritalhão. Essa quadrinha era lida, relida e treslida, lida às avessas, várias vezes, antes de o sono chegar. Que sono repousante o das minhas crianças! Nosso esporte diário era pular no velho colchão de molas da cama de casal, ao som de músicas, como "Artigo 26", de Ednardo, "Pula, Caminha", de Gilberto Gil, e "Rock da Barata", de Jorge Mautner. Pulávamos, saltávamos, dávamos cabeçadas, uns nos outros, na parede, caíamos da cama, chorávamos, ríamos... Nosso presépio tinha as figuras tradicionais da festa cristã, acompanhadas de um monstruoso Godzilla, o qual trazia respeitosamente nas garras o menino Jesus, enquanto os três reis magos, em busca da estrela-guia, eram seguidos por bonequinhos de Batman, Robin, Super-homem, Mulher-Maravilha, Hulk, Snoopy e Chapolim Colorado. As pessoas da família e as visitas ficavam estarrecidas, assegurando-nos que isso era pecado, blasfêmia, que seríamos punidos até a quarta geração. Eu ria muito disso tudo, secundado pelos pirralhos. Sempre fiz questão de ensiná-los que o pecado só existe na cabeça das pessoas. Em que os santos são superiores ao King Kong ou ao monstro da Lagoa Negra, também capazes de se expor à intransigência humana por causa de um amor incompreendido? Assim levávamos a vida, na galhofa. Um dia, inventávamos de criar piranhas no aquário. Noutro, faríamos criação de plantas carnívoras. Isto, depois de assistir a "A Pequena Loja dos Horrores", no nosso videocassete, onde nos deliciávamos também com dráculas, frankensteins, pinóquios, faroestes, seres do espaço exterior e pernalongas, ursinhos puff, fadas azuis e estranhos anõezinhos que dançavam para trás e falavam ao contrário. Grande deus dos cachorros pulguentos, como éramos felizes!

Adoráveis anos de estripulias, peripécias, aventuras e fantasia, quando pude ser mais criança que todos eles juntos, como um irmão mais velho, na encruzilhada entre o folguedo e a educação, ou como um adulto perdido, mas algumas vezes consciente da responsabilidade de orientador das pequeninas almas sob as minhas asas, pai que jogou na lata de lixo todos os manuais, emílios, heloísas, summerhills, sem saber se o que estava fazendo era certo ou errado, bom ou ruim, positivo ou negativo, movido tão somente pela necessidade de acertar onde as gerações anteriores tinham falhado, disposto a inaugurar uma nova e temerária concepção de educação infantil. Então, deixando de divagações, na última noite deste ano, minha filha, já adulta, perguntou-me à queima-roupa, com seus inquiridores olhos verdes, capazes de perscrutar o mais recôndito da minha alma:

– Pai, me responde uma coisa. É mesmo verdade aquela história de Antonina, do homem que no Portinho criava sacis dentro de garrafa?