quarta-feira, 14 de janeiro de 2015
O MUSEU DE CERA
Edson Negromonte
Quando minha família chegou em Antonina, no início de 1969, no mês de fevereiro, uma das primeiras coisas que fiz foi andar pelas ruas estreitas, de irregulares e centenários paralelepípedos, ainda solitário, sem amigos, sem saber de ninguém. Perambulava, a esmo, quando fui atraído por um murmúrio deveras afetuoso ao meu coração, o marulho do mar. Cheguei assim lentamente ao trapiche em frente ao Mercado Municipal, abri os braços e disse, para mim mesmo, sem que percebesse no momento a verdade por trás desta constatação:
– Eu nasci aqui, esta é a minha terra...
De que recônditos da mente surgira tal ideia? Talvez do, até então inesperado, sentimento cigano de expatriação, de desterro em minha própria terra. Catarinense, nascido em Canoinhas, perto da divisa com o Paraná, mudei-me ainda criança para Blumenau, depois São Francisco do Sul (cidade litorânea onde fiz o primeiro ano primário), para mudar-me para Niterói, às margens da baía da Guanabara, de algumas boas lembranças e pouquíssimos amigos, os quais foram definitivamente deixados para trás. Em nossas mudanças, levávamos somente a bagagem de mão. Agora, aos quinze anos, encontrava-me de novo na encruzilhada de uma cidade aparentemente estranha, mas de posse da terrível clarividência de que a terra antoninense era a minha pátria, a terra natal, o berço que eu tanto buscara, o acalanto que se ouve à noite sem saber de que doce boca materna vem. Postado no trapiche, braços abertos em cruz, eu não podia em sã consciência assegurar que as águas lamacentas da pequena baía eram mais azuis que as de São Francisco; as águas da baía de Antonina eram lodosas, escuras, paradas, mas somente a mim pertenciam, com o cheiro fétido de seres marinhos em decomposição, baixios à mostra na vazante, as pobres canoas dos pescadores das ilhas próximas, o falar característico das sílabas escandidas. Era a repentina volta a mim mesmo, ao mais íntimo do meu ser, ao odor pútrido dos lodaçais do coração. Lembro-me nitidamente de, nos primeiros meses, andar sozinho pelas ruas, apesar de já conhecer várias pessoas, desembocando invariavelmente no trapiche, entretendo-me com o fluxo e refluxo das marés, com a movimentação dos astros. Sorvia primeiro, em pequenos e tímidos haustos, a liberdade nunca antes permitida, porque desconhecida. Em seguida, com volúpia, inalava em espirais o ar, sentindo o próprio corpo impregnado da sensação pegajosa e sensual do salitre, do almejado voo da alma até a Ilha do Corisco, o humilde local onde teve origem a doce Antonina.
Passavam-se, assim, os dias, os meses, mornos, chuvosos, úmidos, untuosos, escorregadios, quando chegou agosto, o mês em que os habitantes começam os preparativos para as comemorações do dia 15, a tradicional Festa de Nossa Senhora do Pilar, a padroeira da cidade. Inúmeras barracas ofereciam doces, cocadas, pés de moleque, paçoca caseira, churros recheados com creme de leite, comidas típicas da região, como o barreado e o caldo de siri, miudezas, e muitas quinquilharias, desde brinquedos de corda, como sapos que saltavam e passarinhos que batiam as asas, de corda, feitos de lata, até nojentos cocôs de papel machê (um desses enfeitou, durante muito tempo, o tampo da minha escrivaninha). Acontecia, ainda, um grande foguetório, principalmente na igreja matriz, o qual em nada ficava devendo em poesia e esplendor à composição "Feux d'artifice", de Debussy. E nem mesmo aos canhonaços da "Abertura 1812", de Tchaikóvski. As barracas rodeavam a praça principal, mas cada desvão de rua podia esconder uma tenda improvisada, cheia de novidades, com um estrangeiro ávido pelo nosso pouco dinheiro, disposto a fazer descontos que chegavam às raias do desconfiável. Ou assim pensávamos, pois o confiável vendedor jurava até mesmo por Alá. Ou assim nos fazia crer, em sua fala arrevesada. Portas, antes fechadas, sequer percebidas, abrigavam agora universos, nas quais eu, em meus devaneios, eu lia a advertência "Só para Loucos", “Só para Raros”, motivado pelas leituras de "O Lobo da Estepe", de Hermann Hesse. Noutras, havia um grande X, pintado com a cal medieval. Os caprichos da mente adolescente são o fermento mais eficiente para a possível escritura do adulto de amanhã. Então, tomado do espírito exploratório típico da idade, adentrei uma porta, ao lado do Hotel Cristina, no final da Ladeira Ildefonso. Pintada em caracteres fantasiosos, em vermelho e amarelo, quase circenses, uma plaqueta anunciava Extraordinário Museu de Cera. Ao me acostumar com a penumbra reinante, divisei o vulto de um homem, velho, meio arqueado pelo peso da idade, que andava para lá e para cá, agitado, numa azáfama incessante, dando os últimos retoques no seu ganha-pão, com o qual ele mercadejava pelas cidades do interior do país. Ao ver-me, apesar da correria, foi cortês, dizendo-me que ficasse à vontade e, como o museu ainda não estava funcionando, eu não precisaria pagar a entrada. Mas com uma condição, a de que eu, agora um improvisado arauto, transmitisse a boa-nova à população.
Para a minha imaginação fantasiosa, nem mesmo o museu de Madame Tussauds era capaz de superar em grandeza as figuras ali expostas. Até mesmo os Beatles estavam ali, inclusive o sempre preterido Ringo, sentado à bateria, baquetas em punho, rufando tambores, batendo nos pratos. Olhavam-me, de alto a baixo, o presidente Vargas, de pijama listrado, uma mancha de sangue e pólvora no peito; Lampião e Maria Bonita (nossa, ela era bonita mesmo!), vestidos a caráter, de roupas cáqui de cangaceiro, cinturões carregados de balas de fuzil, acompanhados de Corisco, o Diabo Loiro. E Dadá Maria, cadê? Mais o presidente Kennedy, de cara de louça, tendo ao lado a atriz Marilyn Monroe, preocupada em baixar o vestido branco, pregueado, cuja calcinha, aliás, calçola, um ventilador inconveniente fazia questão de expor. Tinha ainda o topetudo Elvis Presley, de violão em punho; engrolando "Blue Suede Shoes", Roberto Carlos e Wanderléa, também o Zorro, a raposa da Califórnia, de roupa negra de cetim, capa e espada, botas de couro; um recém-modelado presidente Costa e Silva, o qual desaparecera num voo aéreo, talvez abduzido por forças alienígenas; Frankenstein, com a cara de Boris Karloff; o imponente chefe índio Touro Sentado, até o maldito Adolf Hitler, de mão estendida, gritando uma ordem qualquer em alemão, entre tantas outras personalidades. No entanto, o que mais me chamou a atenção foi uma porta de ferro, aparentemente proibida, encimada por um pequeno gradil, também de ferro, sobre a qual piscava uma lâmpada vermelha. Sem que o velho percebesse, puxei um caixote. Subi e, estarrecido, dentro de um cubículo, vi um homem sendo eletrocutado, amarrado a uma cadeira elétrica.
– Sabe quem é?
– Não...
– Caryl Chessman, o Bandido da Luz Vermelha! – disse o dono do museu, com um sorriso de incontida satisfação. – Não está perfeito?
Frente ao meu ignorante silêncio, ele retirou-se contrariado, retomando os preparativos. Como poderia eu dar algum parecer? Era a primeira vez que ouvia sobre o tal bandido. Naquele tempo, bandido para mim era somente Billy the Kid. E olhe lá. Nem mesmo Cara de Cavalo eu via com tanta nitidez. Lembro-me de quando eu e meu primo subimos o Morro do Cavalão, em Niterói, em busca de Cara de Cavalo, depois que uma prima mais velha contou-nos que ele lá se encontrava escondido. Muitos anos mais tarde fui compreender porque Cara de Cavalo era uma espécie de herói para a classe média, quando deparei nas páginas de um livro sobre arte brasileira com a obra de Hélio Oiticica: "Seja Marginal, Seja Herói", cujo estandarte mostrava o bandido caído, baleado. Em tempos estrangulados, como os que vivíamos, sob uma sangrenta ditadura militar, que transformava verdadeiros defensores da pátria, como os guerrilheiros do Araguaia, em bandidos com cabeça a prêmio, os artistas vingavam-se transformando bandidos populares em heróis.
Ao voltar para casa, entusiasmado com o que vira no museu, deixei minha irmã radiante. Aos doze anos, apaixonada por Paul McCartney, essa era a chance única de vê-lo em carne e osso. Sim, em carne e osso, tal era a perfeição das figuras expostas. Inflamado pela imaginação, cheguei a segredar-lhe que poderíamos vê-lo sangrar, se ela quisesse. Bastava levarmos um canivete escondido. Repeliu horrorizada a ideia. E tanto insistiu a betlemaníaca que tive de levá-la imediatamente ao local; ela precisava conhecer pessoalmente o ídolo.
Ao entrarmos, o dono do museu arregalou os olhos miúdos e não os despregou mais de minha irmã. A qualquer ponto que nos dirigíamos, lá estavam os dois olhinhos nos observando, como se fôssemos capazes de roubar a estátua de Paul McCartney. Inocentemente, minha pequena irmã só tinha olhos para o beatle, voltando a ele de vez em quando, tocando-lhe o terno, a mão, sorrindo para mim, sorrindo consigo mesma, sorrindo para ele. Era tocante vê-la assim, como um anjinho que estendesse a mão ao Anjo da Guarda. Íamos e voltávamos, de uma figura à outra, encantados, como se, de um momento para outro, todos fossem adquirir vida. E sairiam, então, andando em nossa direção, cumprimentando-nos. Daí, então, ouviríamos "Ticket to Ride", "Help" e "Splish Splash", costuradas por um discurso do Führer, entre os raios e trovões de um antigo filme de terror, em preto e branco, que nos daria vida. Quando fizemos menção de sair, o dono do museu correu pressuroso em nossa direção:
– Peça permissão ao seu pai que deixe sua irmãzinha posar para mim. Ela será modelo para a mulher do Zorro. Eu estive buscando essas feições em
minhas andanças.
Meu pai concordou, desde que eu a acompanhasse e não desgrudasse os olhos dela, em momento algum. Ao seu lado permaneci durante uma manhã inteira, enquanto o homem modelava, em cera, o rosto de minha irmã. Avisou-nos que, no dia seguinte, poderíamos entrar de graça, para admirar a obra. Conforme combinado, depois do almoço, lá estávamos os dois, com nossos pais, curiosos. Magnífica a semelhança! Era como se víssemos a nossa pequena ali: cabelos castanhos escuros, olhos de jabuticaba e pele cor de jambo. Mas, para mim, alguma coisa não estava de acordo, algo me incomodava, havia naquela sinfonia uma nota dissonante. É que, apesar do frescor do semblante, em tudo igual ao original, a minha irmãzinha, de doze anos, adquirira, de um dia para o outro, corpo de mulher, pernas longas, e insuspeitados peitos... De cera, é claro!
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