quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

SESSÃO DE CINEMA


por Edson Negromonte

A movimentação dos atores em “O Gabinete do Dr. Caligari” é mais que uma coreografia, é um balé. Um balé de sombras cubistas. É aí, justamente aí que reside o medo, na perspectiva deformada à qual o homem tem que se adaptar se quiser sobreviver. Este filme expressionista é o retrato fiel e cabal do que se respirava na Alemanha no início do século 20, sob o signo da filosofia trágica de Friedrich Nietzsche: o medo do futuro. Quarenta anos depois, foi essa a conclusão a que o professor Ariovaldo chegou, após assisti-lo na vesperal de um sábado modorrento, no Cine Ópera, no outono de 1964. A partir daí, então, o rapaz dedicou sua vida a desgraçadamente colecionar sombras.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

SERENDIPIDADE ou A ARTE DE LIGAR AS DUAS MARGENS DE UM MESMO ABISMO


por Edson Negromonte

O ipê deita as flores amarelas na parte baixa do telhado da casa, visão digna da palheta de um pintor impressionista. Dando asas à imaginação, deleito-me a imaginar como Monet resolveria a problemática da leveza da cena que, no instante seguinte, pode muito bem ser dissolvida pelo vento sul que se anuncia. E o que faria Renoir, com a mão já trêmula e hesitante, o pincel amarrado aos dedos, uma extensão de si mesmo? Manet lembrar-se-ia, então, do brilho cegante do Rio de Janeiro, o sol integrando os objetos aparentemente separados entre si? Agosto vai a meio; e Debussy como resolveria tal questão em notas musicais? Apesar da beleza, tudo é transitório; sorte nossa que até as pirâmides do Egito se submetem às areias do tempo, corrosivas, lentamente corrosivas. O que restaria ao homem se tudo o que ele criou sobre a terra permanecesse?

E por que, em meio a esse enlevo, vem a Moura Torta à minha mente? Não, não a temo, somente gostaria de saber quando o homem começou a temê-la. Certamente, nos primórdios, ele a encarava com naturalidade, talvez nem mesmo chorasse os filhos que perdia. Talvez, no início do seu processo materialista, quando ele ousou pensar que Deus, ou a natureza, não proveria o dia seguinte, quando o homem ousou duvidar da bondade que impregna o Universo é que passou a temer a morte. Quando digo que não temo a morte, estou me referindo somente à minha própria morte, e não à passagem daqueles que amo. Apesar de acreditar na vida após a morte, ou melhor, não crer em vida nem em morte, lastimo até hoje a perda do cachalote, ele que era ao mesmo tempo meu pai e minha mãe. O vento soprará, como é do seu natural, e desfará a cena do telhado encardido salpicado de flores amarelas, mas a cena permanecerá em minha memória e talvez isso, somente isso, seja a eternidade: um momento de sublimação em que nos percebemos parte integrante da fugacidade da beleza, quando se passa do estado sólido para o gasoso.

E por que, em meio a essas divagações, enquanto caminhava, sou agraciado pela musa inspiradora com uma anedota certamente ficcional sobre um hipotético encontro, no início de 1961, entre Ernest Hemingway e J.D. Salinger, em que o autor de “O Apanhador no Campo de Centeio” saúda o maior escritor americano, com um gracejo que poucos compreenderiam: “Hemingway velho de Guerra”? A anedota só é possível porque, como os gregos antigos, eu acredito nas musas, principalmente Tália, como entidades possíveis de dialogar com os homens. As informações que adquirimos durante a vida, e que não são de uso cotidiano, são guardadas nos “arquivos mortos da mente” e, de uma hora para outra, quando necessárias, sabe-se lá por que razão, por que mecanismo mágico (traquinagem das musas?), são chamadas à cena para desempenhar um papel específico, dando-nos uma alegria fugaz, provocando-nos um sorriso irrevogável e, ao mesmo tempo, perecível, experiência que não conseguimos compartilhar com o outro, por ser uma anedota íntima, muito singular. Não que o outro não possa compreendê-la, mas porque só a nós diz respeito, somente em nós é capaz de provocar o sorriso inteligivelmente celeste, superiormente terrestre, proporcionado pelas musas. Quantas palavras tive de usar para explicar algo tão simples! E garanto que você sequer esboçou um sorriso complacente. Seria muito eu lhe contar que vi a cena: Salinger, com os braços abertos, a saudar Hemingway? Seria muito eu lhe dizer que foi proposital a grafia “Guerra”, com inicial maiúscula, em vez de simplesmente “guerra”, como seria correto? E, se é que você ainda tem paciência comigo, seria demais eu lhe contar que Salinger e Hemingway se encontraram durante a Segunda Guerra Mundial, em pleno campo de batalha? Ou em Paris, no Hotel Ritz? Esses lampejos são satoris, pequenas iluminações, que se ditas em palavras perdem todo o encanto. E não há nada de errado em usar a palavra satori, Salinger tinha interesse no zen-budismo. E Neil Gaiman, no livro “Os Filhos de Anansi”, associa a imagem do Buda a um limão. E se você estiver se perguntando o que isso tudo tem a ver com o ipê amarelo e o telhado da casa, eu responderia, sem cerimônia, sem medo de errar, tudo. E nada, num universo caótico em que tudo está interligado, mesmo que isso pareça só mais um clichê, entre tantos. Entretanto, não há como dizer de outra maneira. E você imediatamente pensa em física quântica, efeito borboleta e outras dimensões mais elásticas! Acertei? Quando o mundo ainda não era o mundo tal qual o conhecemos, se é que o conhecemos (“Não, ninguém conhece as coisas realmente, conhecemos somente as suas atualidades”.), quando o mundo não era nem mesmo o mundo dos tataravós dos nossos tataravós, um homem, um protótipo do homem, recém-saído das águas, sentou-se solitário em uma pedra em frente ao oceano e intuiu toda a sinfonia “La Mer”, que, muitos milênios depois, um compositor aquiliano, ao qual foi outorgado o nome secular de Claude-Achille Debussy, filho de uma nereida, no auge da solidão interior, a anotou nota por nota, a partir dos registros acásicos, aos quais ele teve acesso.

E esse protótipo do homem, sentado na pedra, diante da imensidão de água, que ele não classificou porque no alvorecer da humanidade tudo era um despropósito, esse homem que ainda tinha escamas, esse homem cuja respiração se fazia através de brânquias, ainda não tinha sequer concebido um dos seus mais primitivos arremedos de Deus. Nem de deuses. Esse homem era o seu próprio deus, até que o primeiro trovão ribombou no horizonte e um raio terrível rasgou o céu noturno em dois. E você acha que foi à toa que a uma enorme cratera do planeta Mercúrio foi concedido o nome de Debussy?

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

NA TAVERNA DA VELHA HAQUB 3 ou O FILHO DE MARY LYNN


por Edson Negromonte

Apesar de grandalhão, o velho não era nada truculento. Seu coração era ver um coração de moça, se enternecia à simples visão de um bebê sendo amamentado no seio materno. O nariz torto e vermelho dava a sua carantonha a falsa aparência de um pugilista sanguinário. Não que nunca houvesse trocado sopapos, mas isto era para ele o último recurso, do qual só fazia uso como recurso extremo. Fazia de tudo para não ter que ir às últimas consequências, ou seja, surrar alguém. Sim, surrar; com ele, as pessoas sabiam que se começasse só pararia quando o adversário não pudesse mais se erguer do chão, estrebuchando. Os habitantes do vilarejo lhe queriam bem, mas queriam muito mais a si mesmos, às suas caras livres de hematomas. Quem o desafiava eram os incautos que chegavam ao nosso pequeno povoado e não podiam admitir que aquele gigante dócil, de voz quase feminina, não fosse provocado, ridicularizado e desafiado para passar o tempo que se arrastava, como sempre se arrasta o tempo nos ermos do mundo: lesma desfazendo-se em campo de sal.

O velho era o ferreiro de Dw Revhs, fabricava as ferramentas mais duráveis de toda a região, mas não abria mão do acabamento; era preciosista. Suas enxadas, pás e machados eram, sem sombra de dúvida, obras de arte. A lenda em torno dele, muitos anos após a sua morte, contava que tentara por muito tempo forjar uma espada encantada, com a qual ele presentearia o seu amigo pessoal, o comandante Golber, a eminência parda e idealizador do golpe militar que tomou o poder em Nusredmtap, por duas décadas. Contavam ainda que ele, o velho, possuía as anotações pertencentes a Merlin, com as quais o mago pessoalmente temperara a Excalibur do rei Arthur, mas isso é somente mais outra lorota em torno do velho; após a sua morte, eu mesmo vasculhei cada palmo da choupana onde morávamos, em busca dos manuscritos do mago. A ele, ao velho, atribuíam um conhecimento profundo das coisas misteriosas do Universo, que verdadeiramente ele não possuía; no mundo medíocre em que vivíamos, bastava saber um pouco mais que os parvos ou ser um pouco mais lunático que a maioria (e quem, a bem da verdade, não é lunático nesse mundo doido?) para que fosse apontado como sábio. Ou bruxo. Sábio ou bruxo, não importa, mais cedo ou mais tarde todos dois vão para a fogueira. Seu coração, sua capacidade de amar era enorme e faz-se necessário que se conte, para avaliação dos pósteros, essa passagem: na parede da nossa cozinha ele pendurara a foto de uma mulher de calendário, desses que ainda hoje são comuns nas oficinas dos ferreiros. E dos borracheiros. Lia-se no canto esquerdo da foto, o nome impresso de Mary Lynn. Ao perguntar-lhe uma vez quem era Mary Lynn, respondeu-me prontamente:

– É a sua mãe, este é o nome da sua mãe!

Depois de muito tempo analisando o quanto de verdade ou mentira havia nessa afirmação, já adulto, cheguei à conclusão de que aquilo não passava de uma necessidade do velho de preencher o vazio da figura materna que havia em meu coração, um buraco que carregarei pela eternidade. Minha mãe me abandonou aos seus cuidados antes de eu completar dois anos de idade. Durante muito tempo, acreditei que a pin-up Mary Lynn fosse minha mãe; era-me conveniente. Durante a minha infância e parte da juventude, eu pude dizer que minha mãe era uma das mulheres mais lindas do mundo.

Depois de fechar a oficina, com a chegada da noite, o velho fazia-me acompanhá-lo à taverna da velha Haqub, local onde os homens se reuniam para beber e contar histórias, fazer chistes, cantar canções obscenas. “Não há lugar melhor para a educação de um jovem”, asseverava. “Aqui”, ele cochichava em meu ouvido, “você aprenderá sobre os homens, as mulheres, suas grandezas e misérias, o mundo”. Seu sonho era que eu me tornasse o bardo oficial de Dw Revhs, garantindo assim a minha subsistência, depois da sua morte. Ingenuamente, acreditava que os poetas continuariam sendo mantidos e respeitados pela comunidade. Obrigou-me, então, a tomar lições de gramática com o venerável ancião DeKampesh. Desculpem o veneno, mas acho que o chamavam de venerável devido às doenças venéreas que pegara durante a Guerra dos Cento e Setenta e Seis Dias que, na verdade, durou cento e setenta e cinco. Logo, eu sabia mais das artimanhas e armadilhas da língua que o venerável; com o tempo, fui tomando gosto pelo estudo e leria todos os livros que enfeitavam as estantes do improvisado mestre-escola, o qual mais dormia do que ensinava, deixando-me à vontade para vasculhar a sua biblioteca, cujos livros até então tinham servido somente para lhe dar um verniz de respeitabilidade perante os broncos habitantes do lugarejo. Somente a aritmética não teve jeito de entrar na minha cabeça dura, até hoje não sei multiplicar. Dividir me foi sempre mais fácil, desde que eu ficasse com a maior quantidade, o monte maior. A inabilidade para as artes matemáticas foi o entrave para os meus pendores pitagóricos, mas a minha poesia, os versos de que fui capaz, mesmo que de pé-quebrado, ajudou-me a conseguir uma sinecura e, assim, manter o meu sustento, além de me deixar muito tempo livre para percorrer os sebos em busca dos livros que tanto amo.

Na taverna da velha Haqub, o velho deliciava-se com a cerveja farta, produzida a partir da fermentação da cevada-das-lebres. Era capaz, depois da terceira caneca dessa bebida intragável, de deixar rolar livremente uma lágrima sobre a face enegrecida e sulcada ao ouvir a voz aveludada da cantora Eli-zeth X., a qual ele se referia carinhosamente como Enluarada. Eli-zeth tentara, várias vezes, levá-lo para a cama, aproveitando-se da sua bebedeira, mas ele sempre recusou cortesmente os convites, apesar da quantidade de álcool no sangue; dizia que alguma coisa dentro dele se quebraria, um osso, um espelho, a quilha. A ele, bastava ouvi-la cantar. Entendia que não poderia viver sem o encantamento de uma musa: nesses momentos, a alma de poeta, que ele tivera de recalcar, falava mais alto. Eli-zeth tinha o frescor e o imediatismo da juventude, não conseguia entender por que aquele homem a recusava. Logo ela, que todos os machos de Dw Revhs e arredores dariam um braço ou uma perna para manchar de sangue os seus lençóis brancos. O velho jamais dormiu com Eli-zeth e nem permitiu que outros dividissem com ela o seu leito; ele a queria inconspurcada. Ele a queria divina, sem o pus dos homens. Achava que ela perderia a condição de porta-voz da Lua se se deitasse com alguém. Enquanto o velho viveu, tenho certeza de que Eli-zeth manteve a condição virginal. Depois da morte do velho, a sua protegida foi embora e nada mais soubemos dela, nem nos preocupamos em saber, porque quem vai embora do nosso vilarinho é como se morresse para sempre. Mas, outro dia, em um antiquário da cidade-mor, de propriedade do meu amigo Licurgo, encontrei em perfeito estado de conservação dois cilindros musicais, gravados por ela, para a Casa Alba, com as canções “Vem para os braços meus” e “Braços vazios”. Tentei seguir-lhe a pista, mas foram embalde todas as tentativas. Ninguém soube dizer algo concreto sobre a cantora Eli-zeth X., nem mesmo o grande pesquisador musical Ravoq Albinus, o qual compilou a mais completa enciclopédia sobre os rouxinóis da terra.

Até hoje, não consegui me refazer da morte do velho. Morte estúpida! Logo ele que enfrentara destemidamente o terrível inverno que a todos flagelara há tempos atrás para salvar da morte certa as cabras que alimentariam, com o leite amarelo, gorduroso e forte, as crianças do vilarejo. Logo ele que disputara com Porco-sujo uma partida quase interminável de pedras adâmicas, da qual saiu vencedor, evitando assim que o demônio instalasse uma franquia de fast-food em Dw Revhs. Logo ele... morreria de complicações advindas de uma doença que qualquer criança consegue superar, mais inofensiva que caxumba. Seu organismo preparado para enfrentar as mais nefastas adversidades do tempo e da vida, não produzira anticorpos suficientes para debelar uma prosaica febre do pântano.