quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

EM QUE MUNDO VOCÊ VIVE?

Edson Negromonte

Gaetano Moricone chegara bem aos 70. Tinha saúde, embora o tabaco lhe cobrasse o preço: a voz enrouquecida, o pulmão esquerdo funcionando pela metade, perda do paladar, tosse. Menos a memória, esta continuava cumprindo seu papel: não deixá-lo só; era a fiel companheira. A chegada à idade avançada não era, para ele, motivo de comemoração. Os amigos, aqueles que lembravam ainda da data, quando o encontravam na rua, sequer lhe davam parabéns. Pouco importava; era melhor que o esquecessem. Estava bem assim, eximia-o de responsabilidade.

Gaetano não casara. Os parentes que lhe restavam (a irmã mais velha, dois sobrinhos), tinha-os banido, desde que tentaram se imiscuir em sua vida, importunando-o com conselhos baratos. Para que servem as pessoas? Para nos entediar com seus achaques, os mais velhos. E os mais novos, com a sua vivacidade, comprometem ainda mais o tempo que nos resta. Preferia assim, quisera o viver solitário. Tinha apreço pelos livros, pela poesia, independente de escolas, mas principalmente por Ovídio. Embora soubesse “Metamorfoses” de cor, a cada leitura descobria novas inflexões. Não se considerava um latinista. No início, para lê-lo no original, fez uso de dicionários, gramáticas, edições bilíngues. Leitor ávido desde a adolescência, agora fazia uso de uma lupa. O enfraquecimento da visão, o médico atribuía mais à constante fumaça do cigarro que à idade.

A monotonia da casa era quebrada somente pelo ronronar de Publius, pouco afeito a carícias. Gaetano jamais suportaria um gato se enrodilhando em suas pernas, carente. Entendiam-se bem assim e isso lhes bastava. Pela manhã, leite morno com pão picado; uma tigela para Gaetano, outra para o bichano. Publius surgira, vindo sabe-se lá de onde, de que becos, aparentemente sem dono. Como ninguém o reclamara, foi ficando. Gaetano tinha certeza de que Publius iria embora um dia, sem mais nem menos. Por quê? Pela simples razão de que tudo é transitório. Cortinas semicerradas, a sala da casa tinha uma mesa, atulhada de livros, duas cadeiras de palha, um pequeno sofá de dois lugares. E ironicamente, no canto, uma namoradeira, ocupada pelos 32 volumes da “História Universal”, de Césare Cantu. Nas paredes de madeira, verdes, descascadas, nem um único quadro, coisa que à primeira vista denota uma alma desprovida de encantos. No assoalho, um tapete descorado. As estantes exibiam um grande número de lombadas pardacentas. Gaetano gostava das coisas assim, cada qual no seu lugar, sem surpresas. De madrugada, mesmo com a luz da sala apagada, era capaz de encontrar o livro procurado: satisfação infantil de uma criança cega. Nessas horas insones, de leitura até altas horas, era grato à vida por lhe ter roubado a chance de uma família, uma esposa, filhos pequenos, essa minúscula oportunidade que entrevira certa ocasião: de ser um homem comum. Não, ele não legaria a ninguém a herança de suas mazelas quando atravessasse à outra margem do rio, obscura. Não teve nunca ninguém para incomodá-lo com a arrumação da casa, a poeira acumulada nos cantos, hora de dormir, de acordar, essa aporrinhação do dia-a-dia na qual o homem comum tanto se compraz. Mesmo assim, acordava todos os dias muito cedo. Escovava os dentes, aliás, a dentadura, lavava o rosto na água fria, bebia um copo de água fresca. Antes do banho matinal, religiosamente olhava para o céu e murmurava:

– Puta que pariu!

Por certo, não era blasfêmia. Aprendera com o agnosticismo caboclo do avô que, se um homem não tem nada a dizer, ao se levantar, que diga então qualquer coisa, para não deixar passar em brancas nuvens a ocasião de se mostrar vivo ao Criador. O avô lhe ensinara muitas coisas: encilhar cavalos, a longevidade do bebedor de mate, a carneação do porco, o ritmo dos trens, a linguagem dos apitos. Todas essas coisas, Gaetano fizera questão de esquecer, após a morte do velho. Para que cultivá-las, se não eram de serventia para o solitário que ele se tornara? Das lições avoengas, conservou somente a saudação ao dia.

Duas leves pancadinhas na porta. Quem seria? Gente boa, os vizinhos não tinham por hábito incomodá-lo, sabiam que ele não era afeito a visitas. Muito menos as inesperadas. Novas pancadinhas; agora três, breves, seguidas de outras duas, longas, como arte de telegrafista. Pensou em não atender, fazer de conta que não estava em casa. A pessoa do outro lado insistia.

– Quem é?

– Eu preciso falar com o senhor.

Abriu a porta, contrariado. A garota esboçou um risinho infantil.

– Posso entrar?

– O que você quer?

Ela continuou sorrindo.

– Eu vim saber se o senhor pode me dar aulas particulares.

– Aulas particulares?!

– É que eu vou prestar vestibular no ano que vem e... como o meu português não é dos melhores...

– Mas eu não sou professor de nada, me aposentei pela ferrovia.

– Eu sei, eu sei, mas não tem mais ninguém na cidade que possa me ajudar. Sabe como é, né?

– Não sei não, não sei mesmo.

Já tinham lhe dito do mau humor de Gaetano, mas ela estava disposta a tê-lo como mestre, ele era tido como o intelectual da cidade.

– Eu li o seu livro...

– Ah, é?

– Gostei muito, apesar de não entender grande coisa.

– E qual o título? – disse ele, em tom de desafio.

– “A Maldição da Poesia”.

– Não seria talvez “A Má Dicção da Poesia”?

– Posso entrar?

Sem esperar resposta, a garota embarafustou-se casa adentro; Gaetano teve tempo somente de dar um passo atrás. Ela sentou-se no sofá, indiferente à poeira, fez um breve cafuné no gato que languidamente virou a barriga para cima, à espera de mais afagos, os quais não se repetiram. Os olhos azuis da garota passearam pela sala, pelos móveis, os poucos objetos de adorno (Santa Clara, em gesso pintado; Leda e o cisne, de bronze; uma moldura pequena e antiga, com o retrato de um casal, talvez os pais dele), o prato sobre a mesa, fundo, a colher acomodada na beirada, a xícara de café, outra xícara, mais outra... A garota Imaginou uma marimba improvisada com o que restasse de café nas xícaras. Ela esboçou um lindo sorriso, ante o suposto disparate dos sons. Definitivamente, concluiu apressada, não havia há muito tempo, naquela casa, a presença feminina, nem mesmo de uma empregada. Deteve, então, o olhar na primeira estante.

– Quanto livro!

Gaetano não pode deixar de sentir orgulho. Então, as mulheres, enquanto meninas, são capazes de se interessar por livros? Os olhos sem descanso da garota percorreram as outras estantes.

– Mais livros? Para que tantos?

Por certo, são todas iguais, em qualquer idade. Gaetano não escondeu a irritação, num leve aperto dos lábios. Ora, para que tantos? A garota fez de conta que nem era com ela.

– Os livros...

– Não precisa explicar, eu também amo os livros. A meu modo, mas amo, assim como amei minhas bonecas um dia.

– Os livros são...

– Olha, eu vim aqui para saber se você... o senhor... pode me dar aulas particulares.

– Não sei.

– Como não sabe?

– Não sei, simples, não sei. Nunca dei aula particular. A minha vida foi sempre a ferrovia, detrás de uma mesa, carimbando, assinando papéis, documentos, a insensatez que é a vida de um...

– Mas o meu pai vai pagar.

Gaetano resmungou qualquer coisa sobre o valor do dinheiro, venalidade, a estupidez juvenil.

– Olha, eu ligo para o senhor amanhã, pra saber a resposta.

– Eu não tenho telefone.

– Em que mundo você vive?

– Humpf!

– Olha, amanhã eu bato aqui de novo.

Sem cerimônia, ela mesma abriu a porta e se foi, deixando na casa o cheiro nauseabundo da juventude. Gaetano permaneceu no meio da sala, estupefato. Que topete! Então, ela entrava assim em sua casa, sem ser convidada, e praticamente o obrigava a aceitá-la como aluna? Publius espreguiçou-se e voltou a dormir. Gaetano encheu uma xícara de café, acendeu um cigarro, com o pensamento longe. Mecanicamente pegou um livro qualquer de cima da mesa, capa vermelha, letras douradas. Não o abriu, era uma espécie de muleta, muito útil quando se via na iminência de tomar uma decisão, de atravessar a ponte pênsil que o conduziria a uma margem desconhecida. Deixou-se cair pesadamente no sofá, deu uma tragada profunda, observou os dedos da mão direita, nicotina, alcatrão.

– A impetuosidade da pouca idade.

Sentiu saudades de si mesmo, a primeira namorada, o primeiro beijo, o abandono, sentiu saudade da mãe. Divagando, deu com os olhos em “Cartas a Nora”, de James Joyce, a picante correspondência amorosa do grande escritor irlandês com a futura esposa. Ligou a TV: outro acidente com trens na Índia. Numa das estantes, deu com os olhos em “Lolita”. Por que os seus olhos o conduziam à sacanagem? Sentiu vergonha dos próprios pensamentos. Não, não a aceitaria como aluna. Ela não tinha mais de 17 anos. Dezesseis talvez. E ele? Um pé-na-cova. Era encrenca na certa. É sempre encrenca. Não era justo com a menina, e muito menos consigo mesmo. Abriu Ovídio, nada melhor que o amado poeta, companheiro das horas difíceis, de todas as horas, para distraí-lo do olhar insinuante da menina, dos seios adivinhados sob a camiseta branca, redondos, firmes, empinados, bicos apontando para ele. Gaetano sabia-se ainda charmoso, apesar da idade, da rabugice, que só o faziam mais misterioso e atraente às mulheres, principalmente às jovens. Um cigarro após outro; o gato dormindo, indiferente ao alvoroço interior de Gaetano. A mente divagando, nem Ovídio conseguia aquietar seu coração. Veio-lhe então a palavra “ninfeta”. Em seguida, sua consciência rosnou, entre dentes: – Velho sujo! Sentiu ódio. Preconceito? Ele nunca a vira antes, mas ela, com certeza, já andara se informando sobre ele. Até o seu livro ela lera. Bem, isso ela dissera. Teria lido mesmo? E, se fosse verdade, com que atenção? Passou a mão pela vasta cabeleira grisalha, outrora negra, quase azul. Não crê que uma menina seja capaz de se interessar por alguém de mais idade? A busca do amor? Uma aventura passageira para se gabar depois, isso sim. Ergueu-se. Era alto, ainda espigado. Os vincos da face davam-lhe uma aparência venerável, os olhos negros conservavam o brilho, a profundidade, nariz aquilino, lábios enérgicos. As mãos? Grandes, quase desproporcionais, angulosas, veias à mostra, apropriadas para pegar a vida pelos chifres, a qual ele sabia que não agarrara, falhara. As armadilhas do ego, o vampirismo dos mais velhos em busca do sangue dos jovens. Sentiu nojo de si mesmo. Teria ainda a aparência sedutora da meia-idade? Nas poucas vezes em que saía à rua, percebia envaidecido os olhares femininos. Amanhecera, e Gaetano ainda se debatia com os sentimentos. Afinal, conseguira tomar a decisão de não aceitar a menina como aluna. Sua vida estava muito bem assim, sem sobressaltos, sem novidades, sem ninfetas, nem paixões impossíveis, sem ervilhas abandonadas no campo de centeio. Mas Gaetano sentia-se, desde a visita da garota, mais vivo do que jamais estivera em toda a sua longa vida. Aguardou ansioso a manhã inteira que alguém batesse à porta, fumando um cigarro atrás do outro. Queria somente poder dizer não, como uma vingança, pelo desprezo. Cheirou as mãos e o fedor era para si mesmo insuportável, nicotina pura. Lavou-as com sabonete Lux. Por que Lux? Ora, porque nove entre dez estrelas do cinema usam Lux! Acendeu outro cigarro e se demorou olhando a chama intensa do fósforo, saboreou o fogo, o fogo da paixão... Virou o palito para cima, inclinou aos poucos a ponta enegrecida para baixo. Na pequena caixa sobre a mesa, lia-se Fiat Lux. Empilhou alguns livros, levou as xícaras para a cozinha, correu o dedo pela poeira dos móveis. Pensou em dar um jeito na casa, acabou deixando para lá. Engrolou “Fly me to the Moon”, e sentiu-se ridiculamente romântico. Meio-dia, e nada da menina. Arrastou-se a tarde, e ninguém. À noite, menos ainda. Cinzeiros, cheios. A sala, enfumaçada. Qual seria o nome dela? Vira-a somente uma única vez. Beatriz, a beata? Virgínia, do amor adolescente? Isolda, a lendária? Julieta, a dos espíritos? A proibida Júlia?

De manhã, insone, Gaetano olhou para o alto e, de punho erguido, gritou:

– Puta que O pariu!

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

O ESTRANHO

Edson Negromonte


À espera do trem que me levaria a Curitiba, folheava eu aleatoriamente as páginas de um volume ensebado de "A Cor que Veio do Céu", de H.P. Lovecraft, minha atenção foi repentinamente atraída por alguém que atravessava o portal da estação, dirigindo-se ao guichê de passagens. Trajava ele uma túnica de tecido simples, azulado, sandálias, e media aproximadamente dois metros de altura, de pele branca, olhos castanhos e cabelos negros, os quais trazia numa grossa trança que ia da nuca ao alto da cabeça e terminava em ponta na testa, quase à altura do nariz. Era de chamar a atenção em qualquer lugar do planeta.

Olhando melhor ao redor, só eu botava reparo na estranha figura. As outras pessoas passavam por ele como se fosse apenas um homem comum, um qualquer. Pior, como se ele não existisse, como se elas pudessem atravessar a estranha figura magnética, a qual fazia-me quase perder a respiração. Eu disse quase? Desculpe, mas meu coração ainda bate descompassado ante lembrança tão vívida, que o pensamento sai à frente das palavras, como um cavaleiro apavorado em frente à montaria. Há muito tempo eu abandonara os arroubos da juventude que me conduziriam às civilizações perdidas, às íntimas relações entre si, levando-me a defender uma inusitada tese, pela qual sofri o achincalhe de meus iguais, a de que os povos indígenas, sejam maias, astecas, toltecas, e mesmo os tupis e guaranis, são todos descendentes diretos dos atlantes. E que a grande civilização egípcia, muitas vezes supervalorizada, é somente a ponta mais visível das intensas navegações empreendidas por esse povo, o qual conseguira sobreviver à maior hecatombe nuclear de toda a história da humanidade, relatada de maneira irrefutável no Livro de Noé, o último dos dez patriarcas antediluvianos. Acontece que, empolgado, eu ia além e provava por A+B, pelo menos para mim, que os símbolos dessas civilizações ditas primitivas são os mesmos, com pequenas variações, alegando que a própria suástica é um signo anterior à civilização indiana. É mais que evidente que essas elucubrações foram rechaçadas pelo mundo acadêmico, razão pela qual abandonei-as; o que não me impede hoje, numa difícil e dolorosa autocrítica, de assumir que eu mesmo não acreditava plenamente em todas as minhas alegações, sendo mais fácil culpar os outros pelas minhas impossibilidades, por minhas desistências. Agora, eu não cria, estava diante de um dos mais dignos representantes da extinta raça lemuriana, contemporânea dos atlantes. Com o coração aos pulos, um frêmito sacudiu-me o corpo. Voltando rapidamente a mim, olhei em torno em busca daquele ser e avistei-o aguardando tranquilamente a chegada do trem, na plataforma. Além de mim, somente um garotinho, aparentemente com deficiência mental, observava-o curioso.

A primeira vez que ouvi sobre a Lemúria foi numa conversa rápida com o brilhante filósofo e místico Líbero Veloso. Era uma tarde agradável, num clube de cavalheiros, desses que hoje não existem mais, à rua Marquês do Herval, quando ele indicou-me o "Livro de Dzyan", de Madame Blavatsky. Segundo Veloso, eu estava naquele momento memorável recebendo um manuscrito, de próprio punho, cuja tradução ele mesmo realizara, a partir de um original russo, encontrado na biblioteca pública da capital, o qual nunca mais seria localizado, apesar das buscas incessantes, apesar da intercessão do próprio secretário estadual de Educação e Cultura. Senti-me o depositário de confiança do supremo hierofante do templo de Elêusis, na Grécia. Depois disso, eu e Veloso tornamo-nos quase inseparáveis, independente da diferença de idades. No entanto, hoje devo admitir minhas dúvidas quanto à veracidade desse texto, mas longe de mim imaginar que o nobre estudioso de ocultismo tenha mentido. Talvez ele mesmo estivesse equivocado em suas infatigáveis pesquisas, além da idade avançada, período que nos leva a confundir a realidade e criar mundos fantasiosos a fim de suprir as carências. Como disse anteriormente, as ideias vêm atabalhoadamente e sou obrigado a desdizer o que dissera, então, pensando melhor, não acredito em tal hipótese; Veloso era muito consciencioso, chegando às raias do ceticismo, e só dava a público aquilo que ele próprio já comprovara. Dele ouvi, em seu leito de morte, que outros autores, como Donnelly, Jacolliot e Lake Harris, serviram de inspiração à fundadora da respeitável Sociedade Teosófica, para a feitura do “Livro de Dzyan”. Mas esses três autores referiram-se somente de passagem, em seus escritos, à saga dos lemurianos. Em homenagem às agradáveis tertúlias com o meu mentor, dediquei-lhe o trabalho de minha vida, a repudiada tese sobre as civilizações desaparecidas, pois ele fora o orientador informal. Em seu leito de morte, quando o amado mistagogo abriu a boca em seu último alento, pareceu-me querer dizer que tudo fora uma farsa. Pensamento fortuito e passageiro, do qual temos a vida inteira para nos arrepender; só o estou expondo aqui, assim, tão abertamente, porque tenho certeza de que esta narrativa será lida somente após a minha possível passagem do Aquém para o Além.

Nesse seleto e, por que não, secreto clube de cavalheiros, reuniam-se aos sábados os estudiosos de filosofia e dos mistérios arcanos. Para mim, um jovem recém-saído da universidade, a convivência com essas mentes investigativas era extremamente enriquecedora. Tudo naqueles salões cheirava à cultura, desde os volumes encadernados a couro nas estantes de madeira escura às fotografias de personalidades ilustres da literatura universal, passando pelos objetos de adorno, onde incluo um romântico narguilé, que asseguravam alguns ter vindo diretamente de Paris e que nele pousara os lábios o poeta maldito Charles Baudelaire. Em meio a tudo isso, chamava-me sobremaneira a atenção a estampa de Bulwer-Lytton, de bigode e suíças, de vasta cabeleira, empertigado, sem olhar o retratista, e com uma pena à mão. Do consagrado autor de "Os Últimos Dias de Pompéia" e "Zanoni", constava de nossa biblioteca o raríssimo "A Raça Futura", sobre uma civilização subterrânea, também citada no romance espírita “A Lenda do Castelo de Montinhoso” e esmiuçada no imprescindível “A Terra Oca”. De posse de tal bagagem, e jogando ao sabor das leituras, minha atenção foi, um dia, atraída para o tomo "Lemúria – O Continente Perdido do Pacífico", de cujo autor não lembro mais o nome. Após repetidas leituras, dei asas à imaginação, quiçá ao delírio, e quase convenci os meus confrades a comigo embarcarem numa expedição ao monte Shasta, na Califórnia. A Providência quis por bem que a futura expedição não fosse além das nossas confortáveis poltronas, revestidas de veludo carmim, como tantas outras resoluções que tomamos com tal ímpeto que se desmoronam à primeira contrariedade. Agora, muito tempo depois, estou aqui nesta estação às voltas com as doces recordações daqueles anos, frente a frente com o que eu julgo ser um legítimo descendente de uma civilização dita extinta. Sei que isso vai contra toda a ciência, mas há neste mundo pessoas que fazem da especulação apenas o seu alimento preferido, como uma perversa geleia de língua de cotovias, apesar de ser considerada um requinte, pois o conhecimento não aplicado e o prazer mórbido da vaidade geram a pestilência.

Embarquei num dos vagões da classe popular, enquanto o alvo de minhas atenções dirigiu-se para o confortável vagão de primeira classe. Era uma composição mista, levando, além de passageiros, vários vagões carregados de sementes e grãos, principalmente soja. Estava envolto em minhas reflexões acerca da criatura, quando fui subitamente despertado pelo estridente apito da velha locomotiva a vapor, ainda em funcionamento e expelindo orgulhosa uma exuberante nuvem de fumaça. Estávamos em movimento, sacolejando para lá e para cá. Decidi então mudar de vagão para estar o mais próximo possível do estranho lemuriano. Sim, hoje ouso dizer com toda propriedade que era ele realmente um lemuriano. Ao chegar ao vagão de primeira classe, meus olhos deram diretamente com a sua elegante figura, contemplando a vigorosa paisagem que somente as serras de minha terra oferecem. Era ele realmente de chamar atenção, tamanha a beleza de seus traços, a placidez de seu semblante, além da inusitada trança, a qual descia até os olhos. Ninguém o olhava sequer de relance, como se ele fosse um homem comum. Ou seria uma atitude respeitosa com aquilo que desconheciam, atribuindo-lhe uma aura de divindade? Nós, humanos, fingimos não ver aquilo que não compreendemos. Penso que é uma atitude correta, pois assim evitamos pensar sobre coisas além da nossa compreensão, facilitando o cotidiano. Quão agradável deve ser a vida quando não queremos nada além das coisas comezinhas do dia a dia, mas devo acrescentar, com algum pesar, que isso é, na prática, impossível para aqueles que ousaram levantar o primeiro dos sete véus de Ísis.

Como o meu, somente um par de olhos permanecia fixo no estranho, o do garoto da estação, enquanto os outros pareciam trespassá-lo, admirando a paisagem lá fora através dele. Confesso que isso foi causando-me aos poucos certo desconforto, quando um leve movimento da trança descobriu uma pequena protuberância em sua testa. Assim como eu, inebriado, o garoto com problemas mentais continuava a olhá-lo. Num lampejo, veio-me à mente que aquela protuberância podia muito bem ser um sinal do que os antigos entendiam metaforicamente como o terceiro olho, a morada da alma, como bem o compreendera Descartes. Eu, num misto de curiosidade e medo, observava-o por cima dos óculos, fingindo ler o oportuno Lovecraft. Sobressaltei-me então com o fiscal, picotando os cartões e, para meu desespero maior, convenientemente ignorando o lemuriano. Por encontrar-me em outra classe, tive que pagar um valor a mais, o que fiz de bom grado, mesmo sabendo que não poderia mais me dar ao luxo de comer um pão com manteiga, acompanhado de uma média, após encerrar os afazeres na capital. Em momento algum, o estranho tirou os olhos da paisagem. Cheguei a imaginar que somente a sua carcaça estivesse ali, acomodada naquele banco de trem, tal e qual uma crisálida. O que estou pensando? Não posso deixar a fantasia tomar conta, sou um estudioso, um cético, só a concretude das coisas é digna do saber do homem.

As delicadas flores silvestres quase adentravam o vagão, obrigando os passageiros a se afastar das janelas, mas aquele estranho... Não, ele não movia-se um milímetro sequer, assustando-me mais e mais a sua serenidade.

– É um amongue...

Virei-me abruptamente para o banco de trás, de onde viera a voz. Meus olhos arregalados deram com um homenzinho franzino, de chapéu de feltro e paletó xadrez, de tweed. De bigode fino, óculos de fundo de garrafa e cavanhaque, tinha um quê de personagem de quadrinhos.

– Anda entre nós, mas poucos o percebem – disse o sujeitinho. – Meu nome é Astrogildo Bandeira, mas pode me chamar de Astro.

O quê? Astro?! – pensei eu. – Ora essa, chamar alguém que acabei de conhecer pelo apelido. Astro? Hahaha! Só se eu fosse lunático!

– Entendo que não tenha gostado da ideia – disse ele. – Não, não precisa se desculpar. Chame-me do que bem entender. O que é um nome? Não pude deixar de perceber o seu interesse no amongue e, como são poucos os que o veem, achei que podíamos então entabular uma palestra amigável, sabe, “uma conversação entre homens inteligentes”, como diria o poeta Ezra Pound.

Que pedantismo! – pensei com meus botões.

– Acha que só você leu Pound, e sobre lemurianos, atlantes, e tantas outras civilizações desaparecidas? Fique sabendo que, muito antes de você sair das fraldas, essa literatura já circulava entre os interessados. Veja bem, em momento algum eu direi “iniciados”. Se você pensa que Platão é o mais antigo a falar da Atlântida, é porque desconhece os autores árabes. Bem sei que não me dá crédito; é somente o ego a falar mais alto, você não consegue admitir que alguém externo ao seu distinto círculo de fumantes de cachimbo possa conhecer uma migalha sequer do que vocês desconhecem. Posso ler nos seus olhos a incredulidade. Poderíamos ser bons amigos, se não fosse a sua empáfia. Você é muito presunçoso! Da próxima vez que encontrar alguém de uma classe inferior ou que não fale tão brilhantemente quanto os seus amigos, segundo os seus parâmetros, por favor morda o lábio inferior em sinal de humildade. É o mínimo que um homem sensato pode fazer e, cá entre nós, como estamos carentes ultimamente de pessoas sensatas.

Dito isso, perscrutou-me. Antes que eu boquiaberto pudesse esboçar qualquer reação, ele recostou-se no banco, cruzou os braços sobre o abdômen, baixou a cabeça, como se estivesse há muito adormecido. Estávamos chegando à estação do Marumbi, o ponto mais alto da viagem, com o pico de mesmo nome erguendo-se altaneiro. Lembrei-me do ser iluminado e encontrei vazio o seu lugar. Descera na parada anterior? Impossível! O homenzinho não falara tanto assim. Ou falara? Antes de o trem parar totalmente, saí desabalado a procurá-lo pelos vagões. Nada, nenhum sinal. Busquei na plataforma, nos arredores, em todos os cantos, perguntando pelo estranho de trança, gesticulando, fazendo sinais com as mãos, como se estivesse num país estrangeiro, onde ninguém compreendesse a minha algaravia. Quando dei por mim, o trem já partira, deixando-me sozinho na gelada estação.

A literatura mística é useira e vezeira em confundir os caminhos quando o buscador não está preparado para continuar a ascensão; acontece que este não é um relato fantasioso, sendo tão somente as palavras sinceras de um devotado cientista, descrente de tudo e de todos. O que sei é que por culpa do tal homenzinho descuidei do ser fabuloso. Ou serei somente eu o culpado de minhas malfadadas ações? E o que vem a ser a culpa, essa gorda senhora sorridente que nos afasta da felicidade?