quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

O ESTRANHO

Edson Negromonte


À espera do trem que me levaria a Curitiba, folheava eu aleatoriamente as páginas de um volume ensebado de "A Cor que Veio do Céu", de H.P. Lovecraft, minha atenção foi repentinamente atraída por alguém que atravessava o portal da estação, dirigindo-se ao guichê de passagens. Trajava ele uma túnica de tecido simples, azulado, sandálias, e media aproximadamente dois metros de altura, de pele branca, olhos castanhos e cabelos negros, os quais trazia numa grossa trança que ia da nuca ao alto da cabeça e terminava em ponta na testa, quase à altura do nariz. Era de chamar a atenção em qualquer lugar do planeta.

Olhando melhor ao redor, só eu botava reparo na estranha figura. As outras pessoas passavam por ele como se fosse apenas um homem comum, um qualquer. Pior, como se ele não existisse, como se elas pudessem atravessar a estranha figura magnética, a qual fazia-me quase perder a respiração. Eu disse quase? Desculpe, mas meu coração ainda bate descompassado ante lembrança tão vívida, que o pensamento sai à frente das palavras, como um cavaleiro apavorado em frente à montaria. Há muito tempo eu abandonara os arroubos da juventude que me conduziriam às civilizações perdidas, às íntimas relações entre si, levando-me a defender uma inusitada tese, pela qual sofri o achincalhe de meus iguais, a de que os povos indígenas, sejam maias, astecas, toltecas, e mesmo os tupis e guaranis, são todos descendentes diretos dos atlantes. E que a grande civilização egípcia, muitas vezes supervalorizada, é somente a ponta mais visível das intensas navegações empreendidas por esse povo, o qual conseguira sobreviver à maior hecatombe nuclear de toda a história da humanidade, relatada de maneira irrefutável no Livro de Noé, o último dos dez patriarcas antediluvianos. Acontece que, empolgado, eu ia além e provava por A+B, pelo menos para mim, que os símbolos dessas civilizações ditas primitivas são os mesmos, com pequenas variações, alegando que a própria suástica é um signo anterior à civilização indiana. É mais que evidente que essas elucubrações foram rechaçadas pelo mundo acadêmico, razão pela qual abandonei-as; o que não me impede hoje, numa difícil e dolorosa autocrítica, de assumir que eu mesmo não acreditava plenamente em todas as minhas alegações, sendo mais fácil culpar os outros pelas minhas impossibilidades, por minhas desistências. Agora, eu não cria, estava diante de um dos mais dignos representantes da extinta raça lemuriana, contemporânea dos atlantes. Com o coração aos pulos, um frêmito sacudiu-me o corpo. Voltando rapidamente a mim, olhei em torno em busca daquele ser e avistei-o aguardando tranquilamente a chegada do trem, na plataforma. Além de mim, somente um garotinho, aparentemente com deficiência mental, observava-o curioso.

A primeira vez que ouvi sobre a Lemúria foi numa conversa rápida com o brilhante filósofo e místico Líbero Veloso. Era uma tarde agradável, num clube de cavalheiros, desses que hoje não existem mais, à rua Marquês do Herval, quando ele indicou-me o "Livro de Dzyan", de Madame Blavatsky. Segundo Veloso, eu estava naquele momento memorável recebendo um manuscrito, de próprio punho, cuja tradução ele mesmo realizara, a partir de um original russo, encontrado na biblioteca pública da capital, o qual nunca mais seria localizado, apesar das buscas incessantes, apesar da intercessão do próprio secretário estadual de Educação e Cultura. Senti-me o depositário de confiança do supremo hierofante do templo de Elêusis, na Grécia. Depois disso, eu e Veloso tornamo-nos quase inseparáveis, independente da diferença de idades. No entanto, hoje devo admitir minhas dúvidas quanto à veracidade desse texto, mas longe de mim imaginar que o nobre estudioso de ocultismo tenha mentido. Talvez ele mesmo estivesse equivocado em suas infatigáveis pesquisas, além da idade avançada, período que nos leva a confundir a realidade e criar mundos fantasiosos a fim de suprir as carências. Como disse anteriormente, as ideias vêm atabalhoadamente e sou obrigado a desdizer o que dissera, então, pensando melhor, não acredito em tal hipótese; Veloso era muito consciencioso, chegando às raias do ceticismo, e só dava a público aquilo que ele próprio já comprovara. Dele ouvi, em seu leito de morte, que outros autores, como Donnelly, Jacolliot e Lake Harris, serviram de inspiração à fundadora da respeitável Sociedade Teosófica, para a feitura do “Livro de Dzyan”. Mas esses três autores referiram-se somente de passagem, em seus escritos, à saga dos lemurianos. Em homenagem às agradáveis tertúlias com o meu mentor, dediquei-lhe o trabalho de minha vida, a repudiada tese sobre as civilizações desaparecidas, pois ele fora o orientador informal. Em seu leito de morte, quando o amado mistagogo abriu a boca em seu último alento, pareceu-me querer dizer que tudo fora uma farsa. Pensamento fortuito e passageiro, do qual temos a vida inteira para nos arrepender; só o estou expondo aqui, assim, tão abertamente, porque tenho certeza de que esta narrativa será lida somente após a minha possível passagem do Aquém para o Além.

Nesse seleto e, por que não, secreto clube de cavalheiros, reuniam-se aos sábados os estudiosos de filosofia e dos mistérios arcanos. Para mim, um jovem recém-saído da universidade, a convivência com essas mentes investigativas era extremamente enriquecedora. Tudo naqueles salões cheirava à cultura, desde os volumes encadernados a couro nas estantes de madeira escura às fotografias de personalidades ilustres da literatura universal, passando pelos objetos de adorno, onde incluo um romântico narguilé, que asseguravam alguns ter vindo diretamente de Paris e que nele pousara os lábios o poeta maldito Charles Baudelaire. Em meio a tudo isso, chamava-me sobremaneira a atenção a estampa de Bulwer-Lytton, de bigode e suíças, de vasta cabeleira, empertigado, sem olhar o retratista, e com uma pena à mão. Do consagrado autor de "Os Últimos Dias de Pompéia" e "Zanoni", constava de nossa biblioteca o raríssimo "A Raça Futura", sobre uma civilização subterrânea, também citada no romance espírita “A Lenda do Castelo de Montinhoso” e esmiuçada no imprescindível “A Terra Oca”. De posse de tal bagagem, e jogando ao sabor das leituras, minha atenção foi, um dia, atraída para o tomo "Lemúria – O Continente Perdido do Pacífico", de cujo autor não lembro mais o nome. Após repetidas leituras, dei asas à imaginação, quiçá ao delírio, e quase convenci os meus confrades a comigo embarcarem numa expedição ao monte Shasta, na Califórnia. A Providência quis por bem que a futura expedição não fosse além das nossas confortáveis poltronas, revestidas de veludo carmim, como tantas outras resoluções que tomamos com tal ímpeto que se desmoronam à primeira contrariedade. Agora, muito tempo depois, estou aqui nesta estação às voltas com as doces recordações daqueles anos, frente a frente com o que eu julgo ser um legítimo descendente de uma civilização dita extinta. Sei que isso vai contra toda a ciência, mas há neste mundo pessoas que fazem da especulação apenas o seu alimento preferido, como uma perversa geleia de língua de cotovias, apesar de ser considerada um requinte, pois o conhecimento não aplicado e o prazer mórbido da vaidade geram a pestilência.

Embarquei num dos vagões da classe popular, enquanto o alvo de minhas atenções dirigiu-se para o confortável vagão de primeira classe. Era uma composição mista, levando, além de passageiros, vários vagões carregados de sementes e grãos, principalmente soja. Estava envolto em minhas reflexões acerca da criatura, quando fui subitamente despertado pelo estridente apito da velha locomotiva a vapor, ainda em funcionamento e expelindo orgulhosa uma exuberante nuvem de fumaça. Estávamos em movimento, sacolejando para lá e para cá. Decidi então mudar de vagão para estar o mais próximo possível do estranho lemuriano. Sim, hoje ouso dizer com toda propriedade que era ele realmente um lemuriano. Ao chegar ao vagão de primeira classe, meus olhos deram diretamente com a sua elegante figura, contemplando a vigorosa paisagem que somente as serras de minha terra oferecem. Era ele realmente de chamar atenção, tamanha a beleza de seus traços, a placidez de seu semblante, além da inusitada trança, a qual descia até os olhos. Ninguém o olhava sequer de relance, como se ele fosse um homem comum. Ou seria uma atitude respeitosa com aquilo que desconheciam, atribuindo-lhe uma aura de divindade? Nós, humanos, fingimos não ver aquilo que não compreendemos. Penso que é uma atitude correta, pois assim evitamos pensar sobre coisas além da nossa compreensão, facilitando o cotidiano. Quão agradável deve ser a vida quando não queremos nada além das coisas comezinhas do dia a dia, mas devo acrescentar, com algum pesar, que isso é, na prática, impossível para aqueles que ousaram levantar o primeiro dos sete véus de Ísis.

Como o meu, somente um par de olhos permanecia fixo no estranho, o do garoto da estação, enquanto os outros pareciam trespassá-lo, admirando a paisagem lá fora através dele. Confesso que isso foi causando-me aos poucos certo desconforto, quando um leve movimento da trança descobriu uma pequena protuberância em sua testa. Assim como eu, inebriado, o garoto com problemas mentais continuava a olhá-lo. Num lampejo, veio-me à mente que aquela protuberância podia muito bem ser um sinal do que os antigos entendiam metaforicamente como o terceiro olho, a morada da alma, como bem o compreendera Descartes. Eu, num misto de curiosidade e medo, observava-o por cima dos óculos, fingindo ler o oportuno Lovecraft. Sobressaltei-me então com o fiscal, picotando os cartões e, para meu desespero maior, convenientemente ignorando o lemuriano. Por encontrar-me em outra classe, tive que pagar um valor a mais, o que fiz de bom grado, mesmo sabendo que não poderia mais me dar ao luxo de comer um pão com manteiga, acompanhado de uma média, após encerrar os afazeres na capital. Em momento algum, o estranho tirou os olhos da paisagem. Cheguei a imaginar que somente a sua carcaça estivesse ali, acomodada naquele banco de trem, tal e qual uma crisálida. O que estou pensando? Não posso deixar a fantasia tomar conta, sou um estudioso, um cético, só a concretude das coisas é digna do saber do homem.

As delicadas flores silvestres quase adentravam o vagão, obrigando os passageiros a se afastar das janelas, mas aquele estranho... Não, ele não movia-se um milímetro sequer, assustando-me mais e mais a sua serenidade.

– É um amongue...

Virei-me abruptamente para o banco de trás, de onde viera a voz. Meus olhos arregalados deram com um homenzinho franzino, de chapéu de feltro e paletó xadrez, de tweed. De bigode fino, óculos de fundo de garrafa e cavanhaque, tinha um quê de personagem de quadrinhos.

– Anda entre nós, mas poucos o percebem – disse o sujeitinho. – Meu nome é Astrogildo Bandeira, mas pode me chamar de Astro.

O quê? Astro?! – pensei eu. – Ora essa, chamar alguém que acabei de conhecer pelo apelido. Astro? Hahaha! Só se eu fosse lunático!

– Entendo que não tenha gostado da ideia – disse ele. – Não, não precisa se desculpar. Chame-me do que bem entender. O que é um nome? Não pude deixar de perceber o seu interesse no amongue e, como são poucos os que o veem, achei que podíamos então entabular uma palestra amigável, sabe, “uma conversação entre homens inteligentes”, como diria o poeta Ezra Pound.

Que pedantismo! – pensei com meus botões.

– Acha que só você leu Pound, e sobre lemurianos, atlantes, e tantas outras civilizações desaparecidas? Fique sabendo que, muito antes de você sair das fraldas, essa literatura já circulava entre os interessados. Veja bem, em momento algum eu direi “iniciados”. Se você pensa que Platão é o mais antigo a falar da Atlântida, é porque desconhece os autores árabes. Bem sei que não me dá crédito; é somente o ego a falar mais alto, você não consegue admitir que alguém externo ao seu distinto círculo de fumantes de cachimbo possa conhecer uma migalha sequer do que vocês desconhecem. Posso ler nos seus olhos a incredulidade. Poderíamos ser bons amigos, se não fosse a sua empáfia. Você é muito presunçoso! Da próxima vez que encontrar alguém de uma classe inferior ou que não fale tão brilhantemente quanto os seus amigos, segundo os seus parâmetros, por favor morda o lábio inferior em sinal de humildade. É o mínimo que um homem sensato pode fazer e, cá entre nós, como estamos carentes ultimamente de pessoas sensatas.

Dito isso, perscrutou-me. Antes que eu boquiaberto pudesse esboçar qualquer reação, ele recostou-se no banco, cruzou os braços sobre o abdômen, baixou a cabeça, como se estivesse há muito adormecido. Estávamos chegando à estação do Marumbi, o ponto mais alto da viagem, com o pico de mesmo nome erguendo-se altaneiro. Lembrei-me do ser iluminado e encontrei vazio o seu lugar. Descera na parada anterior? Impossível! O homenzinho não falara tanto assim. Ou falara? Antes de o trem parar totalmente, saí desabalado a procurá-lo pelos vagões. Nada, nenhum sinal. Busquei na plataforma, nos arredores, em todos os cantos, perguntando pelo estranho de trança, gesticulando, fazendo sinais com as mãos, como se estivesse num país estrangeiro, onde ninguém compreendesse a minha algaravia. Quando dei por mim, o trem já partira, deixando-me sozinho na gelada estação.

A literatura mística é useira e vezeira em confundir os caminhos quando o buscador não está preparado para continuar a ascensão; acontece que este não é um relato fantasioso, sendo tão somente as palavras sinceras de um devotado cientista, descrente de tudo e de todos. O que sei é que por culpa do tal homenzinho descuidei do ser fabuloso. Ou serei somente eu o culpado de minhas malfadadas ações? E o que vem a ser a culpa, essa gorda senhora sorridente que nos afasta da felicidade?

4 comentários: