quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

ENTRE HOMENS INTELIGENTES


Edson Negromonte

Esse vazio que me acomete dias seguidos... Quando deparo com ele, surge a imagem de um deserto. Então, exercito a criatividade, buscando nos livros o sopro criador. Nem sempre dá certo. Ultimamente, numa dessas crises, cheguei a questionar a estátua de Drummond, na calçada de Copacabana. Por que de costas para o mar? Nos últimos dias, a dor angustiante do vazio chega a ser física: de cabeça, na boca do estômago, lassidão nos braços.

Tentei escrever alguma coisa sobre o cachimbo. Não, nada a ver com Drummond; nem sequer cigarros o itabirano fumava. Assim, na tentativa de escrever sobre o cachimbo, como personagem principal, fui enfileirando cachimbadores famosos. Primeiro, o detetive inglês Sherlock Holmes; elementar. Descobri que o cachimbo curvo, do tipo calabash, sua marca registrada, é uma invenção do teatro, já na primeira encenação dramática da obra imortal de Conan Doyle, interpretado por William Gillette. Folheei o primeiro volume das suas obras completas em busca de algo que lera há muito tempo atrás e que ficara grudado nas paredes pegajosas da memória, desde a adolescência. Para mim, isso é de suprema importância, para saber se as lembranças de um tempo que some nas brumas não estarão me pregando peças. Abri “Um Estudo em Vermelho”, intuitivamente na página 24: Nessas ocasiões eu lhe notava nos olhos uma expressão vaga e sonhadora que poderia ser atribuída ao vício de algum narcótico, se a temperança e limpeza de toda a sua vida não impedissem semelhante ideia; palavras do Dr. Watson. Ainda não bastava, sabia que havia algo mais explícito. Ou seria mais uma invencionice da minha meninice? Folheei todo o volume, nada. Tomei nas mãos “O Signo dos Quatro”, disposto a esmiuçar o restante da coleção. Já na primeira página, encontro o motivo da busca.

Que é hoje? perguntei. – Cocaína ou morfina?

Arrá! Sim, eu acalentara essa certeza durante muitos anos. O sóbrio detetive era mesmo um viciado, nos primeiros anos de sua convivência com Watson. Constatei também que os dois capítulos iniciais, de ambos os livros, têm o mesmo título: “A Ciência da Dedução”. Muitos se perguntarão, com certeza, qual a serventia de tal informação. Nenhuma, nenhuma; pelo menos, por enquanto. Era somente algo que vinha sendo procrastinado e, agora, com tempo livre, resolvi solucionar. As coisas, pelo menos comigo, acontecem assim. É como a descoberta da paixão de Jorge Luis Borges pelos versos de “A Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, os quais ele ouviu, menino, da boca de um outro menino no porto do Rio de Janeiro. Alguém se perguntará sobre a importância desta informação, já que nunca se soube de Borges fumando cachimbo. Nenhuma. Por enquanto. Mas, como os cavalheiros que pretendemos parecer, admitamos que, durante a nossa existência, a memória vai coletando informações aparentemente inúteis, para deletá-las logo depois, pois inúteis são.

Retornando. Hemingway, Mark Twain, Jung, Freud, Cabrera Infante, Greta Garbo, todos cachimbeiros. Sobre a atriz, apesar de nunca fumá-lo em público, sabe-se que era dada ao vício do tabaco, palavra cuja origem remonta à ilha de Tobago, nas Antilhas, embora os dicionaristas discordem. Ao ver a foto de Sartre, segurando um desses artefatos, não pude resistir ao pensamento de que, segundo a crendice popular, o hábito do cachimbo deixa a boca torta. E os olhos também. Faulkner, Einstein, Simenon, Van Gogh, Gauguin, todos cachimbeiros. E a líder dos Panteras Negras, Angela Davis? E a escritora George Sand? Cachimbeiras de marca maior! Estas mulheres libertárias fumavam-no na frente de qualquer um. Simenon, não satisfeito com o próprio vício, transmitiu-o à sua criatura, o inspetor Maigret. Jack Lemmon, Bing Crosby, Arthur Miller, James Joyce, Roberto Carlos, todos cachimbeiros. Até Johann Sebastian Bach, sim, ele mesmo, o construtor de catedrais sonoras, era adepto de uma boa cachimbada, chegando ao cúmulo de compor uma ária, “So oft ich meine Tobackspfeife”, dedicada aos devaneios que só o hábito do cachimbo proporciona, segundo as anotações deixadas por sua segunda esposa, Anna Magdalena. Desculpe-me os parcos conhecimentos da língua alemã, mas me atrevo a perguntar se o título desta canção pode ser traduzido poeticamente como “Muitas vezes, eu e meu cachimbo”. Mallarmé e Rimbaud, cachimbadores. Baudelaire? Também! Traje tão chique como o smoking é uma redução de smoking jacket, ou seja, em tradução literal, paletó para fumar. Jim Anderson, o Papai Sabe Tudo, ao chegar em casa, depois do trabalho, trocava o paletó de trabalho por um smocking jacket e punha-se a dar gostosas baforadas diante dos membros da família. Outros tempos, os anos 50.

O saci, tio Barnabé, Popeye, o capitão Haddock e Mr. Hulot? Todos contumazes cachimbeiros. Nem o Papai Noel não abria mão de um bom tabaco, saboreando-o através desse artefato tão antigo, com origem nos primórdios da humanidade, desde a descoberta do fogo. Na minha infância, havia um brinquedo de plástico, em forma de cachimbo, no qual se soprava, em vez de aspirar, e uma bolinha ficava flutuando mágica no ar. Ah, ainda existe? Encontra-se nas feiras? Isso só vem comprovar que o cachimbo, como dizem os médicos, não é tão prejudicial à saúde quanto o cigarro. A Pan teve que limar das mãos dos meninos da embalagem os cigarrinhos de chocolate que eles seguravam entre os dedos indicador e médio, como fumantes inveterados. Assim, as crianças, desde a mais tenra idade, eram despertadas para o vício. Houve um tempo em que o cigarro era chique, até para as mulheres. Principalmente depois de se assistir a “Gilda”, com Rita Hayworth envolta em convidativos arabescos de fumaça. De cigarro, é claro, que acabou ficando démodé. Acredito que essa campanha toda contra o cigarro é mais uma artimanha da indústria para despertar principalmente os jovens, esses rebeldes por natureza, para o vício; nunca se fumou tanto neste país. Mais uma pequena informação. Sim, bem inútil: Barney e Fred, do desenho Os Flintstones, num antigo anúncio, ainda em p&b, para a TV americana, faziam propaganda dos cigarros Winston.

Como o fumante de cachimbo adquire uma aparência distinta, deixarei o cigarro. Num ritual, à beira do mar, sentado no casco de um barco, imagino-me, a encher de Half and Half o fornilho do meu Warrant. E, apesar de usar um isqueiro, não o ponho em contato direto com o cachimbo, mas, na falta de uma brasa, incendeio pequenas lascas de madeira ou galhinhos secos para atear fogo ao fumo. Devo dizer, para que não haja mal entendido, que não sou um conhecedor dessa prazerosa arte, a do cachimbo. Sou um pretendente, nem sequer passei pela esperada iniciação num clube de fumantes. Como disse o escritor William Thackeray: o cachimbo faz sair a sabedoria da boca do filósofo, fechando a boca do tolo. E você deve estar se perguntando por que aludi ao vício de Sherlock em cocaína e heroína. E também da paixão de Borges pelo poema de Gonçalves Dias. Nada em especial, só um pretexto para começar a escrever, como quem puxa aleatoriamente os fios de uma teia diante de espelhos. Ou, melhor, como quem dá profundas baforadas num calumet, o cachimbo da paz dos sioux. E Drummond? Continua lá, de costas para o mar. Devo acrescentar ainda que grande parte dessas informações foi colhida num antigo livreto, editado por um laboratório farmacêutico. E a sua leitura até aqui? Inútil! Agora, com licença, vou fumar um prosaico cigarrinho do lado de fora da casa, para não incomodar ninguém, que o inferno são os outros, como queria Sartre.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

O AVÔ PATERNO


Edson Negromonte

Íamos de trólebus para o centro da cidade, eu e meu avô Oscar. Nesse tempo ainda nem se ouvia falar na construção da ponte que ligaria Niterói à cidade do Rio de Janeiro e, fizesse sol ou chovesse, a estátua de Araribóia contemplava majestosamente a Baía da Guanabara. Atravessava-se para o outro lado nas chamadas barcas. Na estação, cartazes avisavam "Perca um minuto na vida, mas não perca a vida em um minuto". Nesse tempo, íamos os dois de trólebus, por ser mais econômico, lado a lado, no carro aberto, de bancos de madeira. Meu avô, depois de perder a fortuna, conquistada a duras penas, resolveu ensinar aos netos a arte da poupança. Andar nesses já então antiquados elétricos, deslizando sobre precários trilhos, soltando perigosas fagulhas dos cabos, era uma das suas mais costumeiras lições.

O avô pernambucano trabalhara desde menino. Primeiro, numa padaria, para ajudar no orçamento doméstico. Vendo-o comer um pãozinho durante o expediente, o dono da padaria ficou furioso e deu com uma ripa na cabeça dele. Na ponta da ripa havia um prego, enferrujado, que se enterrou na cabeça da criança. Despedido, arranjou-se, então, vendendo condimentos na feira. Após entregar o grosso do dinheiro para o pai, o meu futuro avô guardava as poucas moedas restantes num migalheiro, o tradicional cofre de barro do Nordeste. Depois de dois anos, curiosos, o menino e o pai resolveram quebrar o pesado migalheiro. Deu-se que puderam comprar uma pequena casa, a qual ainda está de pé na cidade de Paudalho, perto de Recife. Essa passagem da sua infância, meu avô fazia questão de contá-la todas as vezes em que ele ficava sabendo que eu torrara, em gibis e doces, a minha mesada e mais o dinheiro ganho com a venda de jornais e garrafas. Eu, insaciável, gastava tudo em Fantasma, Águia Negra, Nick Holmes, Texas Kid, Targo, Jerônimo, o herói do sertão (o meu favorito, por causa do Moleque Saci), maria-mole, torrone e uvas-passas da Sönksen.

Certa vez, passeando pelo Mercado Municipal, entre os cheiros desencontrados de café moído na hora, fumo e charque, com a mão angulosa em meu ombro, o homem calvo, magro e de orelhas de abano disse-me lapidar, sem mas nem porquê, mas fundamentado na sabedoria áspera de homem do sertão:

– Ninguém é seu amigo... a não ser o seu pai.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O AVÔ MATERNO


Edson Negromonte


– Ah, eu queria tanto morrer...

– É só desligar a tomada!

– Que tomada?...

– A tomada da vida!

– Ah, se fosse tão fácil assim, neto...

Era duro ver aquele homem que eu conhecera forte, em tudo o esplendor da vida, prostrado na antiga cama de casal, assim como ele, de ferro, o homem que eu não precisara aprender a admirar, a memória viva, em carne e osso, com as suas histórias da Guerra do Contestado, as andanças pelos sertões de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, tangendo gado, levando boiadas de um Estado a outro, o homem que gerara a minha mãe, que gerara mais dois filhos, que vira o irmão mais novo ser assassinado, que criara como seu o filho de outro irmão, tuberculoso, que morrera em seus braços, o homem que a vida toda fora a representação do cerne, no qual a lâmina do machado não penetra, não penetrava. Poderia dizer muito mais sobre o homem antigo, de valores cristalizados, que dera um dote às quatro irmãs, que só se casara após vê-las casadas, que levara a mãe para morar com ele, a qual minha mãe chamava também de mãe, a mãe velhinha que, vendo a neta com o nariz escorrendo, erguia uma das várias anáguas para limpar o pequeno nariz de bolinha, vermelho, da menina. Poderia eu contar muito mais sobre ele, que recebera de presente de casamento uma fazenda na Serra do Tamanduá, cuja casa ficava à beira de um rio caudaloso, cheio de mutucas, dos bugios a gritar em dias de chuva, macacos que invadiam a área da casa grande. Certa madrugada, meu avô sacudiu-me do sono para que eu assistisse ao espetáculo da macacada correndo assustada, por causa dos tiros de espingarda que disparava para o alto. Rimos a valer. Ele, o homem decidido que administrava com mão de ferro a peonada, mas que com eles compartilhava a cuia de chimarrão, que, com eles, à beira da fogueira, no curral, saboreava, depois de cozidos em água e sal, os colhões dos bezerros castrados. Contou-me também a história do filho do Silvino, o capataz, que encurralado pela polícia, no matagal, enraivecido deixara as marcas dos dentes no cano do próprio revólver sem balas. Noutra vez, seria o caso do filho mais novo do capataz, que tinha a testa afundada pelo coice de uma mula. Justo ele, o homem que amava os cavalos de corrida, que me deu de presente o seu relógio de algibeira, de prata, um Omega, com cronômetro (relógio que continua marcando as horas até hoje, independente do primeiro dono, e que assim continuará, independente de mim, de meus filhos, netos... Ele, o vaqueiro que me ensinou a montar tanto os baios quanto os tordilhos, para que, um dia, eu cavalgasse garboso as pradarias do mundo adulto. Assim, andávamos lado a lado, pelas estradas poeirentas, em visita aos seus amigos, de outras fazendas, aos quais me apresentava, como se eu fosse da mesma idade deles. Varandas, onde eu permaneço a ouvir incansável as mesmas histórias: de lobisomens, da égua que parira dois potrinhos e só parou de sangrar às custas da reza forte de nhá Totica, do sangue derramado no telhado, do porco capão, da fazenda onde morava a mulher-macaco, fugida do circo, apaixonada pelo meu tio. Ele, que também era amigo do velho Zé, cachaceiro de dentes podres e esverdeados, os quais nunca escovara, com quem meu pai dividiu um litro da pior aguardente numa noite de frio intenso, de cortar as entranhas. Era para mim muito doído ver aquele velho prostrado na cama, de ferro, ambos feitos da mesma matéria, a cama e o velho na cama, justamente ele que enfrentara os fantasmas mais terríveis, a fome, a geada, as contendas políticas, a incompreensão dos outros homens, justamente ele que me dera o primeiro beijo, quando do meu nascimento, em sua velha casa de madeira, no alto do morro, ao lado da igreja, a igreja dos padres com os quais brigara e jurara nunca mais lá pôr os pés. Ele que ia me buscar de jipe nas férias, que me deu a primeira garrucha, ele que aquecia os pés no beiral do fogão à lenha, enquanto o frio lá fora embranquecia o pasto antes verdejante, como lhe embranquecera também os cabelos. Ele que, num ímpeto, arremessara furioso o machado de rachar lenha em minha direção, ele que me chamava de manhã bem cedo para ordenhar as cabras, para assistir à matança do porco. Naqueles tempos, os homens eram feitos assim, da matéria da vida, a qual não exclui, em hipótese alguma, a morte. Ele que, jurado de morte pelo genro, o marido bêbado da filha mais velha, eu defendi com minha risível espingarda de ar comprimido. Ele, o compulsivo leitor de bangue-bangues, mas preocupado com a minha leitura voraz dos livros de crime e mistério da Coleção Amarela. Com o passar do tempo, talvez por covardia, não o visitei mais, para não vê-lo em estado tão deplorável, para resguardar em meu peito o retrato esmaecido do jovem, flanando, de terno e chapelão, pelas ruas de Curitiba. Naqueles tempos, os da sua juventude, era chique para o catarinense da fronteira ser fotografado pelas ruas da capital paranaense. Somente no necrotério revi novamente o grande amigo. Descansava ele comodamente sobre a morgue, sorrindo, indiferente ao choro convulso de parentes e amigos que lamentavam a esperada partida do ente querido, quando me veio à mente a capa do disco "Closer", do Joy Division, e os versos Love, love will tear us apart again.

– Ah, eu queria tanto morrer...

– É só desligar a tomada!

– Que tomada?...

– A tomada, vô, a tomada da vida.