quarta-feira, 19 de agosto de 2015

(SE EU FOSSE UM CISNE)...


Edson Negromonte

De repente, vi-me de volta à adolescência, quando eu vivia na casa de uma tia solteirona, com quem aprendi várias lições que me acompanharão pela vida toda, lições fundamentais para a idade adulta. Eu podia passar o dia como bem entendesse, ouvindo Pink Floyd, fumando um baseadinho, mas quando ela chegava em casa tudo devia estar em ordem, limpo, a louça lavada, a casa varrida, a mesa posta para o jantar. Depois da refeição, agradecíamos pelo alimento e, daí, ela desatava a falar, tomada por um espírito que tudo soubesse de moral e atitudes éticas, recitando de cor passagens do Velho Testamento, trechos de insuspeitados filósofos gregos, árabes, os quais ela não considerava hereges. Íamos dormir cedo, às oito horas, impreterivelmente. Na verdade, eu ia para a cama a essa hora, mas quem disse que conseguia conciliar o sono? Ficava a remoer as palavras terríveis da minha tia, sibilinas, as quais calavam fundo em meu coração ainda tenro, ficava também assuntando os ruídos dos bichos da noite, dentro e fora de casa, no sótão e na mata. Foi em uma noite dessas, eu estava a tentar discernir os sons de fora da casa, os quais eu julgava virem de uma mangueira centenária, próxima ao curral, mangueira que nunca dera manga, portanto, assombrada, quando fui me apercebendo de um choramingo humano, longínquo. Passei a prestar mais atenção, até ter certeza de que o choro vinha do quarto ao lado do meu. Corri, então, desesperado, ao quarto da minha tia. Ela chorava baixinho, sentada na cama, acesa a luz do abajur. Perguntei-lhe por que chorava, abraçando-a.

– Estou desempregada há várias semanas, tenho saído todos os dias em busca de uma ocupação qualquer para manter a casa... mas quem dá emprego a uma mulher velha? O dinheiro acabou e só nos resta vender o único bem que possuímos, a Mimosa.
– A Mimosa?!
– Sim, amanhã você irá à cidade para vendê-la.

No dia seguinte, rodei a feira, no mercado da praça, à procura de alguém que quisesse comprar a vaca por míseros mil reais, que não dariam nem para passar direito o mês.

– Ora, rapaz, quem vai querer essa vaca velha?
– Quanto você me paga para ficar com ela?
– Acho que eles estão te avacalhando, garoto, hehehe.
– Avacatueté? Hahahaha!

Cansado, amargurado, antes de começar o caminho de volta para casa, sentei-me à beira da estrada. Estava enrolando um cigarrinho do demônio, com o pensamento longe, quando acercou-se de mim um homem bem trajado, com ar de vivaldino, um finório, pode-se dizer. Sua proximidade me causou um arrepio na espinha, senti os cabelos da nuca arrepiarem, o que me fez ficar de sobreaviso.

– Eu venho lhe propor um negócio made in China, meu bom rapazola.

Permaneci em silêncio, segurando fortemente Mimosa pela corda.

– Troco a sua vaca por esses feijões mágicos. Pode pegá-los para se certificar se são mágicos mesmo. Você, de aparência tão inteligente, um ar tão sagaz, sabe certamente ver quando os feijões são feijões comuns, e quando feijões mágicos são verdadeiramente mágicos, não sabe?

– Ah, que essa história é tão velha...

O espertalhão depôs educadamente três grãos de feijão em minha mão. À primeira vista, não eram em nada diferentes dos outros caroços de feijão que eu já vira. Para não parecer mal-educado, olhei-os. Olhei-os mais demoradamente para não parecer ignorante. Palavra que os vi brilhar e rebrilhar ao lusco-fusco da tarde que caía. Logo, minhas convicções foram por água abaixo e a fantasia tomou conta dos meus pensamentos. Num átimo, comecei a me questionar onde começa a verdade e termina a mentira. Ou onde começa a mentira e termina a verdade. Será que o destino estava a sorrir para mim e eu, por superstições tolas, não estava a enxotar a sorte grande da minha vida? E da vida da minha pobre tia. Ela, tão boa comigo, que me tratava como um filho, não merecia que eu, por inépcia, a privasse de uma vida mais farta...

– Rico, você ficará rico com eles! – disse o homem, arrancando-me abruptamente das minhas conjecturas.
– E porque você, então, os está trocando por uma vaca velha, se esses feijões lhe trariam a riqueza? – respondi num assomo de desespero, utilizando-me do tênue fio de sanidade que ainda me ligava ao mundo real.
– Ora, meu rapaz, porque eu já sou rico, milionário. Não vê os meus trajes? É chegada a hora de passar adiante o motivo da minha fortuna, pois é assim que funciona a máquina do mundo. Como queremos manter a riqueza se não a dividimos com os irmãos necessitados que encontramos ao longo do caminho? Longe de mim a mesquinheza. Mas se não lhe apetece uma vida de fausto, luxo e riqueza, podendo ajudar as pessoas que lhe são queridas, devolva-me os meus preciosos feijões que hei de encontrar outro que por eles se interesse.

Foi o que bastou para que eu me decidisse a fechar o negócio, convicto da honestidade do cavalheiro. Não é sempre que encontramos alguém que, já enriquecido, esteja disposto a ajudar o próximo. Voltei para casa, todo contente, radiante, aos pulos. Pela primeira vez, eu tinha feito um negócio, e um bom negócio, excelente, que daria grande alegria para minha tia.

– Rico, finalmente rico! – gritei na estrada, para que todos soubessem. Imediatamente, percebi a grande besteira que tinha feito, os malfeitores estão sempre escondidos no vão das árvores à espera de incautos.

Ao chegar em nossa humilde casa, orgulhoso, um sorriso de orelha à orelha, postei-me diante de titia, a mão espalmada, onde reluziam os três feijões maravilhosos.

– O que significa isso? – perguntou-me a pobre mulher, olhos esbugalhados, a voz esganiçada: a ignorância é capaz de nos deixar aparvalhados diante do desconhecimento, diante da riqueza a espancar a nossa porta, pedindo entrada.
– São feijões mágicos, querida tia! Troquei-os pela Mimosa, com um bondoso...
– Ora, cale a boca, seu estúpido!

Eu nunca tinha visto minha tia tão irada. Deu-me um bofete e, ato contínuo, raivosa, atirou os feijões mágicos pela janela. Depois, surrou-me, como se eu ainda fosse uma criança. Fui dormir com o lombo quente, sem jantar, padecendo uma fome terrível. E eu que pensara muito mais nela que em mim, eu que só queria lhe dar uma vida mais folgada... Coimo é duro ser incompreendido.

No dia seguinte, percebi que não tínhamos realmente nada para comer. Nem mesmo pão duro, o qual titia tinha comido de madrugada, exasperada, sem deixar sequer uma migalha para mim, de propósito. De tão raivosa que estava, fizera questão de ignorar minha fome. Logo ela, que sempre me tratara como a um filho. Mas, conformado, não liguei para isso, meu coração é capaz de, sempre foi, compreender os atos impensados dos seres humanos na hora da raiva.

Lavei o rosto e olhei desconsolado pela janela. Foi quando avistei um enorme pé de feijão que se alongava verticalmente em direção aos céus. Estupefato, esfreguei os olhos e a visão prodigiosa não se desvaneceu. Tornei a esfregar os olhos, agora com mais força. O pé de feijão continuava ali, impassível, colossal. Se eu tivesse tomado um ácido, ainda vá, mas qual o quê. Chamei titia, desesperado, as pernas bambas.

– A senhora está vendo o mesmo que eu? – gritei, apontando para fora, pulando feito um macaco.
– Ora, deixe de sandice, menino! O que significa isso?
– Um pé de feijão que sobe em direção ao céu!
– Sim, isso eu estou vendo, apesar de não acreditar nos meus olhos. Como é que pode?
– Será coisa do Capiroto, minha tia?
– Beócio, não percebeu ainda que os feijões eram mesmo mágicos e que a história de João está se repetindo?
– Ah, então, dê-me o machado que vou cortá-lo porque, como disse Marx, a história só se repete como farsa...
– Estúpido, mil vezes estúpido! Idiota! – ela gritou na minha cara, esbofeteando-me. – É incapaz de perceber quando a sorte grande lhe sorri? Esse pé de feijão conduz certamente ao castelo do gigante, onde ele guarda a galinha dos ovos de ouro. E você vai até lá, para roubar essa maravilha dos contos de fada!
– Mas, titia... – tentei argumentar, usar da razão, como ela fizera comigo na noite anterior, mas ela me ameaçou novamente, agora com o punho fechado, como uma boxeadora. Achei por bem obedecê-la. E lá fui eu escalando aquela planta fantástica, depois de levar uns bons trompaços, para criar coragem, já convicto de que a história se repete, sim, contrariando o equivocado pensador alemão. As tias sempre têm razão, ainda mais quando fazem uso da força bruta.

A subida foi penosa. Cheguei à nuvem mais alta, bem perto do sétimo céu, onde se situa o castelo do gigante, no finalzinho da tarde, com um pouco de luz porque, como vocês devem saber, inteligentes que são, nas nuvens escurece um pouco mais tarde. Embarafustei portão adentro e logo me vi atravessando o salão do castelo, indo em direção à cozinha, seguindo as instruções de minha tia de que esquecesse as moedas e ouro e a harpa dourada, finitas, dando prioridade à “áurea e eterna poedeira”, segundo suas palavras. Ouvi, então, o inconfundível cacarejar de uma galinácea. Mesmo as galinhas que põem ovos de ouro fazem um escândalo dos infernos, nem mais nem menos que as penosas ordinárias. O ninho ficava ao lado do fogão, no qual a mulher do gigante cozinhava uma sopa assaz cheirosa, cujo adivinhado sabor aguçou mais ainda a minha fome de ontem, mas que me corroia como se fosse de anteontem. Como em um desenho animado, atraído pelo cheirinho inebriante do caldo grosso que a giganta preparava, descuidei e, quando dei por mim, estava aos pés da baita mulher.

– Ora, vejam só, o que temos aqui? Mais um dos ratinhos lá de baixo, que o gigante adorar comer fritinhos, os ossinhos torradinhos, croc croc.
– Por favor, não... – comecei a dizer, implorando pela vida.

Ela pegou-me rapidamente pelo fundilho das calças e ergueu-me diante dos olhos, como se eu fosse um camundongo.

– Já sei o que vieste buscar aqui: a galinha dos ovos de ouro. Certo? – disse, com um risinho zombeteiro. – Pelo menos, uma vez, a cada estação do ano, vem um dos teus amiguinhos larápios em busca dessa riqueza, desde que João deu com a língua nos dentes. Todos viraram tira-gosto para o meu marido. Mas você está com sorte, o gigante anda me batendo muito, espanca-me todos os dias, desde que arrumou uma namorada, uma guria mais nova; o trouxa está atravessando a crise dos quatrocentos anos. Ele vem para casa só para comer, a ninfeta não sabe cozinhar. Cansada de tanto apanhar sem nada dever, resolvi me vingar, só não sabia como. A tua chegada me deu uma boa ideia, vou ajudar-te a roubar a galinha encantada, o seu bem maior. Assim, o gigante será penalizado e quero ver que mulher vai querer aquele traste sem dinheiro. Ouça, já vem aí o gigante!

Imediatamente, a giganta enfiou-me decote adentro, escondendo-me entre os seios gordos e fartos.

Ao assomar à porta da cozinha, o brutamontes trovejou:

– Estou sentindo cheiro de menino!
– Ora, deixe de besteira, marido, você já deve ter comido todas as crianças de lá de baixo. Ou bebeu além da conta!
– Pare de tagarelar, mulher, e sirva-me logo esse caldo, que estou morto de cansaço e quero ir logo para a cama, se não quiser levar umas boas bordoadas.

Enquanto isso, eu permanecia ali quietinho, quase sem respirar, sentindo-me como Gulliver, colocado entre os seios suarentos das gigantescas cortesãs de Brobdingnag. Lembrei-me também do aventureiro de Swift cavalgando o bico do seio de uma das damas de companhia da rainha. Veio-me ainda à mente, nesse deleitoso momento de enlevo sensual, a sombra dos seios da giganta de Baudelaire. Foi, então, que, nesse torvelinho de imagens, um arrepio perpassou a minha espinha. Como não evocar os peitos assassinos de Chesty Morgan? Mas como o gigante era um perigo bem maior e certo, achei por bem ficar sem dar piti no meu sufocante esconderijo.

– Continuo sentindo cheiro de pirralho fedorento!
– Vai dormir que você ganha mais, gambazão, não há menino nenhum por aqui.

Logo em seguida, de bucho cheio, o gigante estava resfolegando, roncando que nem um porco capão. Então, a bondosa giganta trouxe-me à luz da vela que bruxuleava na mesa da cozinha.

– Aja com cuidado, aproveite a noite para levar daqui essa galinha; à noite, as galinhas encantadas não cacarejam.
– Dessa, eu não sabia...
– Você é jovem, há muitas coisas que ainda não sabe. Por exemplo, nunca traia uma mulher porque a mulher traída é capaz das maiores atrocidades.
– Mas você não pode ficar aqui, venha comigo! – disse-lhe, cavalheiresco, pois que, aos 17 anos, a intimidade e o calorzinho daqueles seios enormes tinham despertado em mim uma repentina paixão. Imagine que bela figura eu faria, rico e com um mulherão daquele.
– Não, eu devo ficar aqui para assistir a desgraça do gigante quando ele acordar e perceber que não tem mais a sua galinha mágica. Só não esqueça de, quando chegar lá em baixo, cortar o pé de feijão, para que o meu pobre marido não possa ir no seu encalço... Vá, antes que eu me arrependa!

Enfiei a galinha em um saco e despenquei pé de feijão abaixo. Ao chegar ao solo, apanhei o machado e cortei-o pela raiz.

Minha tia, como se pode deduzir, ficou radiante com o meu retorno, são e salvo. “Nossa vida de pobreza está no fim”, gritava ela. Só não acordou toda a vizinhança porque não tínhamos vizinhos, nossa casa era tão distante de tudo e de todos que posso dizer, sem medo de errar, que ficava no cu do mundo. E a vida de miséria acabou-se mesmo. Passamos a fazer quatro refeições por dia, incluindo o lanche da tarde, ou melhor, o chá das cinco, tal e qual nobres ingleses. E a galinha, tratada com a mais cara das rações, balanceada, enriquecida, ômega isso, ômega aquilo, tudo de direito, chegava a botar, algumas vezes, mais de um ovo por dia. Ouro puro, 24 quilates! Logo, estávamos morando em uma mansão na cidade, minha tia ia duas vezes por semana ao salão de beleza, pintar as unhas, o cabelo, fazer peeling, chapinha, academia, essas coisas de gente rica e desocupada. Titia deu um upgrade no visual, siliconizou os seios e o bumbum. Não posso dizer que tenha ficado bonita, mas como dinheiro chama dinheiro, acabou atraindo as atenções de um magnata da soja que por ela se apaixonou. Casaram-se em segredo e foram embora do país, desapareceram até da minha vista. Sabe-se lá para onde foram os dois pombinhos, se Bahamas, Miami, Las Vegas ou coisa parecida. Mas minha tia, precavida como ela só, levou consigo a galinha dos ovos de ouro, sem nem me avisar. Não posso dizer que a tenha roubado de mim, o que sei é que minha tia era de uma sabedoria salomônica: como repartir um ser vivo em dois e não matá-lo? Logo, para que não perdêssemos os dois, ela achou por bem levar a sua parte junto com a minha. Mas a sua bondade e preocupação com o meu futuro fez com que deixasse, para mim, um ovo de ouro, o qual eu soube administrar, vivendo modestamente: voltei à nossa antiga casa de madeira no fim do mundo, voltei a fazer uma única refeição por dia, porém substanciosa. O resto do dia passava comendo guloseimas, como jujuba e paçoquinha, para enganar a larica. Assim, novamente a vida me era risonha, eu não gostava mesmo da vida nababesca e ostentatória que passáramos a levar; o meu ideal de vida era mesmo passar o dia ouvindo Pink Floyd e fumando uma ganja. De minha tia, nunca mais tive a mais breve notícia, espero que esteja feliz, ela merece. Eu, por outro lado, depois que troquei no ourives a última raspinha do ovo de ouro que titia me deixou, tive, mesmo contra os meus princípios, que cavar um ganha-pão. Foi assim que fui parar na Johnston & Johnston. Durante muito tempo, dediquei-me de corpo e alma ao emprego, não cheguei a ganhar o prêmio de operário padrão, mas posso assegurar que estive perto disso.

Apesar da boa posição na multinacional, eu pedi demissão quando soube, através de um colega de trabalho, o qual, fiquei sabendo mais tarde, estava de olho no meu cargo, que o maior fabricante de fraldas descartáveis para bebês é também o principal fabricante de camisas de Vênus. Como pode isso? É, no mínimo, uma incongruência. Sou um errado mesmo nesse mundo de paradoxos. Não admito contradições, tornei-me um homem sério, graças à educação rígida que minha tia me proporcionou. Considero-me um paladino. Resultado: pedi as contas; eu não podia, de forma alguma, compactuar com tamanho absurdo. Estou novamente desempregado, mas acredito na boa-vontade de um amigo, que indicou meu nome para ser pastor na Igreja das Sacras Sementes de Tangerina dos Últimos Dias, uma das poucas instituições religiosas idôneas neste país. Enquanto isso, graças ao salário-desemprego, sigo pitando o meu cigarrinho de maconha e ouvindo Pink Floyd; Deus é pai.

If I were a swan, I’d be gone...

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O MENINO DO CHAPÉU DE SAPO


Edson Negromonte

Esta história que ora contarei é muito antiga, há muito tempo é contada e, durante muito tempo será contada, das mais diversas formas, nas mais variadas línguas e dialetos, por toda a eternidade. Essa história faz parte da natureza intrínseca da humanidade, seja nos primórdios de um tempo em que o homem ainda não tinha dominado o fogo e temia a escuridão da noite, seja em um futuro que nem o mais atilado dos perscrutadores divinatórios jamais alcançará sequer supor. Portanto, não atribuam a mim a sua autoria; eu a entrevi em um relâmpago momentâneo em que a mente diurnal cedeu espaço ao negror subjacente, como outros antes de mim perceberam, e outros mais certamente perceberão e a recontarão com suas próprias e lindas palavras, mais adequadas, mais refinadas, às gerações do porvir.

Esta é a história do Menino do Chapéu de Sapo, que vivia em estreita harmonia com o Universo. E o Universo, por sua vez, sentia-se gratificado por ter o Menino do Chapéu de Sapo em consonância com as forças cósmicas. As crianças, à imitação dos pais, quando o percebiam, aproximavam-se do menino e perguntavam, curiosas:

– Quem é você? De onde você vem?

– Podem me chamar de Menino do Chapéu de Sapo, como toda gente tem me chamado, vem me chamando, desde a aurora dos homens. De onde eu venho? Das brumas dos sonhos, essa região onde tudo pode acontecer e para onde vão as mentes cansadas dos homens depois de um dia extenuante de trabalho ou os corações exauridos de amores não correspondidos, ou talvez eu venha do sofrimento dos artistas incompreendidos que vêm antes do seu tempo para abrir as portas do amanhã para os contemporâneos. Venho da região à qual os homens vão em busca de lenimento para as suas dores. Eu sou aquele que às crianças é dado conhecer, na tenra idade, para que não esqueçam que, em seus momentos de amargura, na idade adulta, elas têm para onde correr, a quem recorrer. Eu ficarei gravado em suas recordações mais íntimas, embora disso não lembrem com nitidez, mas intuitivamente vocês seguirão, como buscadores, na noite escura de suas almas, a estreita estrada que leva ao jardim circular onde incessantemente desabrocham as rosas vermelhas da compreensão da missão de cada homem na terra. É necessário que, agora, brinquemos sem preocupação, pois somente uma única vez as crianças têm acesso a esse momento de folguedo, o qual deve ser e continuará sendo raro, uma única vez ele se manifestará. Mas não pensem que, por ser fugaz, esse momento deixará de ficar gravado em suas mentes: todas as vezes que um adulto desesperançado chegar à beira de um banhado e avistar um sapo, e ouvir o coaxar desse sapo, ele terá um vislumbre do caminho, da senda deveras estreita que o levará à compreensão da sua estada nesse plano terreno, à compreensão do Universo, do seu papel no grande esquema cósmico, se ele não se acovardar diante do espinheiro selvagem que obstrui o caminho ao castelo onde dormem os convivas da grande festa... Então, se esse homem ultrapassar todos os perigos, sendo o maior deles a sua própria descrença, descrença essa gerada pelo medo do desconhecido, ele não mais temerá o misterioso Universo porque ele é e será, como sempre foi, o próprio Universo, com todas as suas leis eternas e imutáveis, amorosas e maravilhosas. Eu, o Menino do Chapéu de Sapo, sou a marca indelével que se fará em seu coração de criança e que as pessoas, no dia a dia, no afã de a todos sujeitar à sua pequenez, farão questão de apequenar, de ridicularizar, até de me apagar, como se fosse possível, seja nas escolas, nos templos ou mesmo no seio familiar. Portanto, continuem brincando como se nada tivesse acontecido, como se eu fosse uma aragem que tivesse passado por seus corpos e, momentaneamente, apenas momentaneamente, os enregelasse. Eu sou a Morte que leva à Vida, à verdadeira Vida, à Vida que todos os homens, mais cedo ou mais tarde, terão de viver.